Naquele onze de novembro de mil novecentos e “troca-o-passo”,
o Coutinho que era Bernardino saiu do Caracol, onde morava com a Judite, com o
sol ainda escondido. Tinha engolido as “sopas-de-cavalo-cansado” mais depressa
que o costume, para evitar que a Judite Caracoleta metesse conversa, por
antecipação ao previsível bem-bebido final de dia, que era de São Martinho.
Ele foi p’rá pedreira do Ti Miguel como de costume e, porque
era “cabouqueiro e tinha a ciência da pedra” — a toda a hora o dizia e,
principalmente, quando de charretes e ciganas, já estava bem aviado — tinha
que, também naquele dia, honrar a profissão e arte que tanto gosto e felicidade
lhe têm dado ao longo de toda a vida.
Na ida, de manhã, entrando no alcatrão e depois do Santo
António, do Espanhol e do Silvestre Velho, costumava meter à esquerda a seguir
ao Rafael-Coxo, junto à casa da fruta do Pechincha, continuava juntinho ao
Amigo Rio das Sesmarias e atravessava-o no sítio do costume, lá, ao fundo do
caminho do Cipriano, entre a Horta do Manel Lopes e a casa do Ti Joaquim da
fruta.
Mas, naquele dia, a primeira pessoa que viu foi o J’oquim
Cagachuva, antes do Santo António e, no Rafael Coxo, não virou à esquerda e
seguiu até ao Largo do Chafariz, desviando-se de dois gansos do Ti Veríssimo
que, de pescoços esticados e bicos assanhados na direção dele vinham. Saudou o
Tavinho que, àquela hora, dava água às vacas, no chafariz.
Depois, resistindo à tentação de ir dizer “bom-dia” ao
Álvaro, contornou a casa do meu Tio António que, com o Chico, tinha acabado de
ordenhar as ovelhas, e, quase esbarrando com a Ti Maria Ferreira, foi pela
travessa do Ti Miguel passando e recebendo uma grande saudação do Guilherme
barbeiro, que estava a sair de casa para ir para a sua, barbearia, em Ranholas.
Praticamente ao mesmo tempo, mas do lado direito, saía a
Menina Emília, que tinha quase pronta a abrir, a nova taberna naquela esquina.
Admirados também por verem o Coutinho que era Bernardino, ali aquela hora, a
Ofélia e o Albino, que saiam de casa, saudaram-no com satisfação. Ao fundo,
ainda cumprimentou o Ti Abílio, pai do Zé Fernando e, em passo acelerado, foi
pelo caminho do Cipriano abaixo, passando em frente da travessa do Pena, à
esquerda, só para sentir o cheirinho daquele delicioso líquido que, mais tarde,
havia de provar.
O Coutinho que era Bernardino, cabouqueiro, e que tinha a “ciência
da pedra”, não resistiu o dia todo. Ao meio-dia, já estava à porta do Pena.
Para não se sentir sozinho, já lá estavam outros, ansiosos pela prova, como
ele.
Entretanto, sem ter explicação para tal, a Judite Caracol
(eta), só ao fim da tarde se apercebeu da especificidade daquele dia. Pois, se,
nem nos dias normais o Coutinho que era Bernardino precisava de incentivos ou
pretextos para meter muito vinho pela goela abaixo, como é que não o havia de
fazer no dia de São Martinho?
Meteu as mãos à cabeça, disse meia-dúzia de impropérios que
até o Velho Caracol se eriçou todo e, ainda de mãos na cabeça, saiu porta-fora
com o lusco-fusco de novembro, bem instalado.
A dúvida do costume, baralhava o pensamento da Judite
Caracol(eta); por onde ia começar?
Começou pelo Álvaro. “Como-quem-não-quer-a-coisa”, espreitou
lá para dentro. Dum lado para o outro, dentro do balcão, andava o Ti Álvaro,
com a caneta pendurada na orelha, via e ouvia alguns clientes, mas, de Coutinho
que era Bernardino, nada! De mansinho, foi pela direita à frente do Frouxo,
curvou e, logo ali, a Ti Celeste Pardal(a) com dois rebentos agarrados ao
avental. Pergunta daqui e dacolá, mas despachou-se depressa e a tempo de não
ter que falar à mulher do Dinisinho que vinha a sair de casa naquela altura.
Chegada ao Osvaldo ou Faial ou Ramos, fez a mesma cena do
Álvaro, mas o marido continuava a não estar lá. Estava a ficar preocupada e não
se lembrava da famosa água-pé do Pena. Para não ir pelo mesmo sítio, deu a
volta pela curva e enfiou em direção à Quinta do Olival. Passou-a e, quando
estava em frente ao Casal de Santo António, quem havia de estar logo ali a
conversar; o Ti Abílio e o Sigamó. Muito admirados de verem a Judite ali,
perguntaram-lhe se precisava de alguma coisa. A Judite um bocado a medo e com
muita vergonha, disse-lhes que não sabia do marido.
— O Coutinho que é Bernardino?
— Sim! Quem havia de ser? Não tenho outro!
— Tá no Pena! (Disse o Ti Abílio.)
— No, Pena? Mas? Ah! Pois é! Na água-pé? (perguntou a Judite)
— Sim! Isso mesmo!
— Ai, valha-me Deus, deve estar bonito, deve!
Ainda ia a meio da travessa e já ouvia homens a falar e,
entre eles, conheceu a voz do marido. Estava com medo e com muita, muita
vergonha. Mas, assim que meteu a cabeça dentro da adega, recebeu logo um
“Benvinda” do Pena e, olhando para trás, o Coutinho que era Bernardino, todo
feliz, desatou: Chega-te cá mulher, anda cá provar estas castanhas e esta
água-pé do Pena.
Para grande admiração da Judite, o Coutinho que era
Bernardino, não estava a arrastar a voz nem cambaleava. Estava contente sim,
mas muito afinado para um dia de São Martinho que, fosse ela muito crente,
teria acreditado ser milagre do Santo. Ele depois contou-lhe que almoçou lá e
continuaram sempre a petiscar. Não deu para ficar de “caixão-à-cova” como
acontecia tanta vez. A água-pé do Pena era tão boa que a Judite levou uma
garrafa para o Caracol Velho provar.
Por estes dias do ano, todos os abrunheirenses amantes da boa
pinga, percorriam várias vezes o caminho do Cipriano, guiados pelo inigualável
aroma da “água-pé” do Pena. Nesta altura, faziam jus ao provérbio popular — “No
São Martinho, vai-se à adega e prova-se o vinho” — e a “água-pé” do Pena, digo
eu!
Silvestre Brandão Félix
11 novembro de 2017
Foto: Lenda do S.
Martinho (Google)