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segunda-feira, 21 de junho de 2021

DOS PISÕES, DOS MILHÕES E OUTRAS QUINTAS QUE TAIS

Casa da Serra (Tapada do Roma)
Na “Serra”, o tempo estava ameno, era por esta altura do ano. Lembro-me do meu Tio Joaquim sentado na soleira da porta, com os cães à volta disputando-lhe as melhores “festas”, mas ao aperceberem-se da nossa chegada logo correram e ladraram, cumprindo a sua obrigação de guardadores. 

Para além do ladrar incessante dos cães, já de contentamento, o som que sempre me fascinava... lá estava; o barulho “metálico” da fresquinha água passando no bebedouro e, lá mais à frente caindo no riacho que pela encosta descia indo encontrar-se adiante com outros fios e nascentes. 

Por aquela rampa acima, entrando na “Tapada”, lindas camélias e hortências, ladeavam o caminho até ao pátio fronteiro à casa. Lá estava, a chaminé, brotando os fumos que o grande fogão - no meu ver de puto, impressionavam-me os dourados brilhantes das pegas do fogão - a lenha transformava em deliciosos almoços. Aquela hora, ainda não cheirava a bacalhau, mas cheirava e bem, aquele inesquecível café que sempre se bebia naquela casa. A meio da manhã, era o que íamos fazer logo de seguida. Eram sempre dias muito bem passados. 

A Ti Franquelina estava a preparar o célebre “Bacalhau à Gomes de Sá”. Para puto de seis ou sete anos, naquele tempo, a ementa do almoço não mobilizava os neurónios para trabalho extra, mesmo tratando-se dum “BGS” como nunca comi em lado nenhum, sendo feito pela minha Tia ou, depois dela partir do mundo dos vivos, pelo seu filho e meu primo Quim. Ele herdou, e bem, o jeito para fazer aquele “Bacalhau à Gomes de Sá”

Mas naquele dia, há volta de sessenta de tempo contado em anos, lá me puxou a Ti Augusta por esses caminhos acima até à Serra, a “Casa da Serra”. Foi lá que viveu desde os sete anos até casar com o meu Pai. Voltava sempre como se tivesse saído na véspera. Para ela, era a sua casa e quando chegou a hora de nascerem o meu irmão Vítor e a minha irmã Felicidade, a maternidade foi lá, na sua “Casa da Serra”. 

A saída daqui, da Abrunheira, era sempre em direção a Ranholas, por aquela que viria a ser a Rua da Abrunheira e que umas décadas mais tarde cortariam ao meio, acabando com a vizinhança entre as duas terras. 

De Ranholas, saíamos com muito cuidado para a velha estrada de Sintra, junto ao portão da “Quinta do Ramalhete” onde, uns anos antes, cheguei a receber um brinquedo pelo Natal. Não era uma playstation, não! Era uma mota-triciclo de lata que quase me cabia numa mão. Delirei com aquilo e, pequenina que era, a mota, acompanhou-me durante muito tempo. 

Na estrada, seguíamos bem junto à parede da Quinta do Ramalhão até ao cruzamento e, passávamos pelos “dois-irmãos” no túmulo, naquele tempo ainda do lado esquerdo, até ao Fetal onde numa primeira paragem a minha Mãe cumprimentava com muitos abraços e beijinhos, salvo erro uma prima, num lugar de fruta e hortaliça. Depois, passando o alto de São Pedro, começando a descer, havia outra paragem para se desfazer em abraços com outra tia ou prima. No Arrabalde também cumprimentava alguém. Talvez familiares do Amadeu. Depois, na “Gandarinha”, onde aprendeu a ler e a escrever, nunca deixava de me contar algumas peripécias no “convívio” com as freiras. 

A maior parte das vezes, descíamos pelo “Valenças” e, na Vila, falava a montes de gente. Muitas vezes ouvi tratarem-na carinhosamente pela Augustinha dos “Oliveiras”. Explicava-me sempre onde tinha nascido, numa casa das Escadinhas do Hospital e nunca deixávamos de ir visitar a minha Tia Branca e o meu Tio Narciso que trabalhavam no Palácio Nacional, por onde sempre andavam também, os meus queridos primos Luís e Casimiro. 

Depois, pela Quinta dos Pisões e logo a seguir, a Quinta do Milhões, hoje Regaleira. Aliás, quando ouvi pela primeira vez o nome de Regaleira, não sabia onde era. Nos Pisões, ficava sempre embasbacado com a cascata. Via, revia, e a Tia Augusta chamava, chamava. Na Quinta do Milhões, a minha Mãe explicava-me que tinha sido um homem com muito dinheiro que a tinha comprado, daí o nome... 

Para muitos vizinhos da Vila, a morada da Serra, era a “Casa dos Oliveiras”. Os meus avós e tios, com o apelido Brandão, eram conhecidos por “Oliveiras”. Assim eram, desde antes da “república”. Até 10 de outubro de 1910, não podiam usar o apelido “Brandão” porque a condenação do bem conhecido “João Brandão” João Brandão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) Incluía a erradicação do apelido de família, até à 5ª geração. Daí, o apelido Brandão, quando existia, era trocado por qualquer outro. No caso do avô da minha Mãe, meu bisavô, embora tivesse sido registado no Porto com Brandão, em Sintra, para onde veio na década de setenta do século XIX, trocou este apelido por “Oliveira”, daí, os seus descendentes, que foram muitos (entre 24 e 27), serem conhecidos por “Oliveiras”. Após a implantação da república, devagarinho, a maioria regressou ao apelido original, ou seja, ao Brandão. Ainda assim, alguns, não o fizeram e continuaram com os outros apelidos, entretanto adquiridos. 

A minha Avó Cândida ainda lá estava. Não viveria muito mais tempo. Vi-a a última vez no Hospital de Santa Maria onde a visitei com a minha Mãe. Foi de lá que os diabetes a levaram e, trinta e poucos anos depois, também havia de ser daquele hospital que a minha Mãe partiu para a derradeira caminhada. 

A meio da tarde, o meu Tio Joaquim, tirava o “dona-elvira” do telheiro (não sei que marca era, mas ainda era daqueles que tinha o pneu suplente em cima do guarda-lama da frente), e vinha trazer-nos a casa. A minha Mãe, Augustinha dos “Oliveiras da Serra” (que não eram), fazia anos neste mês de junho, na véspera do Santo António. 

Silvestre Brandão Félix 

20 de junho de 2021 

Foto: Casa da Serra – Tapada do Roma (Salvo erro, foto do Casimiro)

quinta-feira, 4 de março de 2021

JAVALIS, CASA DA ÁGUA E A ELETRICIDADE


Javalis (Google-A-Médio Tejo)
Num destes dias, calcorreando como habitualmente faço, pela “fresquinha”, instruí os meus calcantes no sentido da Capa-Rota pelo antigo caminho que vai até à “casa-da-água”, como antigamente se dizia e era. Com a mudança dos tempos, fazendo jus à modernidade, virou transformação de eletricidade. Eletricidade, essa coisa que eu, teimosamente, não consigo ver. O meu saudoso irmão “não levava à paciência” que eu não visse, não sentisse, não cheirasse e não adorasse a eletricidade.

Que hei de eu fazer? Bater com a cabeças nas paredes? Autoflagelar-me com cavalo-marinho de pontas estreladas? Atirar-me das escadas abaixo? Claro que não! Quero lá saber se isso a que chamam eletricidade, se vê ou não. Eu não vejo, ponto final parágrafo.

Uns 100 metros após o final da rua Humberto Delgado, para lá da ponta do Bairro da Arroteia, entrei no tal caminho que me fez recuar mais-ou- menos, sessenta de tempo contado em anos, por onde algumas vezes acompanhei a minha Mãe e a burra Carocha, levando trigo ou milho para o Ti Sebastião Moleiro transformar em farinha na mó gigante que na azenha trucidava tudo o que lhe aparecesse à frente.

Fiquei impressionado porque os carrascos que ladeiam o caminho continuam sendo altos. Na verdade, eu, em “puto”, quando daquelas passagens, os carrascos pareciam-me árvores gigantes, tal era a sua envergadura. Agora, nestes tempos pandémicos, continuam sendo grandes.

Eram vários os caminhos assim, entre a Abrunheira, Linhó, Colónia, Ranholas, Casal da Beloura, Capa Rota e Manique de cima ou Casal da Peça, que se cruzavam e davam a necessária serventia a pessoas e animais, para se chegar aos vários sítios.     

Voltando à questão do ver ou não ver, “eis a questão”; é verdade que, muitas vezes, vemos aquilo que queremos e o que não queremos, mas o que conta mais é o nosso querer. Por exemplo, se eu vi uma vara de porcos domésticos, embora pretos, tranquilamente a pastar no campo à frente da minha casa, e por uma razão quaisquer, quiser ver uma vara de javalis grandes, gordos e bem aparelhados de perigosos cornos pontiagudos, vejo! É a minha vontade e outros que se lixem, ou acreditam na patranha ou “vão dar uma curva ao bilhar grande” ou pelo menos ao pequeno.

Ou seja, os caçadores que estejam sossegados e não se ponham a limpar e afinar as espingardas, porque os javalis ainda não chegaram á Abrunheira.

Levar a nossa vontade avante é muito bonito, agora, em nome dessa vontade, querer enfiar o gorro aos outros, aí, já é aldrabice e vigarice.

Silvestre Brandão Félix

04 março de 2021

Foto: Google (A. Médio Tejo)

segunda-feira, 1 de março de 2021

DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS

 

Quando, dando corda aos calcantes e acompanhando o canídeo pela área de abrangência de alguns candeeiros públicos das ruas ou ruelas da Abrunheira, eles, os candeeiros, como se de praga rogada se tratasse, castigo divino ou destino marcado, apagam-se!  

Sempre que me acontecem estes “apagões”, não deixo de me lembrar daquele monólogo do Vasco Santana no famoso filme, “O Pátio das Cantigas”. Será que é essa a intenção? Que eu me vergue e chegue ao ponto de pedir, por favor, aos que lá do alto do seu tamanho que se julgam tão importantes, me deem um bocadinho da sua luz?

É que, ainda por cima, como se gozassem, à medida que nos afastamos, os “caga-lume” lá do alto, voltam a botar luz!

Mas então, em que ficamos? A mesma coisa acontece com vários. Isto é coisa “armada”, será um “prémio” para os do lado de cá da Serra, ou do lado de lá, também é assim? E se for, é porquê?

Eu, que sou daqueles que sai de casa com um saco para apanhar o servicinho do cão, fico pulha quando o tipo resolve aliviar-se no exato momento em que vamos a passar por um daqueles que se apagam. Lá fico mirando, mirando, — e “de noite todos gatos são pardos” e os cagalhotos também — até acertar no objetivo.

Será que este fenómeno tem explicação ou sou eu que tenho uma energia tão, mas tão negativa, que até consigo apagar candeeiros públicos quando deles me aproximo?

Silvestre Brandão Félix

01 de março de 2021

Video: Youtube

sábado, 13 de junho de 2020

ALCACHOFRAS, CERRADO DA FONTE E O SANTO, O ANTÓNIO

Alcachofras no Cerrado-da-Fonte
Abrunheira - 06jun2020
Fosse eu conservador dum registo predial qualquer, e rebatizaria o “Cerrado da Fonte” para “Cerrado das Alcachofras”. Foi, “…da fonte”, que me ensinaram chamar-lhe ainda antes de roçar os fundilhos das calças, nas “carteiras” da antiga Escola da Abrunheira, mas devia ser “…das alcachofras”, tantas são, pela altura dos “santos” — sem respeitarem o distanciamento social nestes tempos dos “vinte” do “vinte-e-um” — no “Cerrado da fonte” e em tantos outros “cerrados” das bordas do nosso amigo “Rio das Sesmarias”.

Tantas vezes ouvi este nome, “Cerrado da Fonte” que, muito embora o meu eterno litígio com este lado do arquivo que guarda os nomes das coisas, sítios e pessoas, mil anos que viva, nunca o hei de esquecer. Ainda por cima, estava logo a seguir à “horta” por onde tantas vezes passava e passeava, umas vezes sozinho, outras acompanhado. Do lado de lá, estava (e está) o tanque de rega onde morava o meu Cágado “Manel”, pomposo nome para tão “rebaixado” ser, mas que eu adorava e ele a mim (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html ), como noutros escritos eu tenho deixado bem vincado.   

Todos os dias, pelas mais variadas razões, ouvia alguém falar no “Cerrado da Fonte”. Muitas vezes, tantas quantas um “puto” daqueles anos 50/60 do antigo século vinte, numa boa terra como a abrasileirada — por via das aventuras do Coutinho que era Bernardino e do Borrego que não era Sacadura — Abrunheira, tinha tino e curiosidade para perguntar, porque raio lhe chamavam “fonte”, se não havia por lá nenhuma? Bom, na verdade, ainda hoje o mistério, para mim, se mantém. Sempre que por lá passo, repito, mentalmente, a pergunta; porquê, “…da fonte”? Onde esteve a fonte?

Naquele tempo também havia, com certeza, alcachofras, no Cerrado da Fonte. Só que, aquela área, tinhas outras ocupações por esta altura do ano, antes de se transformar em “eira” para debulha e enfardamento dos cereais do Silvestre-Velho e do “Sapateiro-de-Manique” trazer o rebanho para pisar bem a terra e de comer, que muito bem lhe sabia, as batatas com bacalhau que a minha avó Gertrudes fazia naquela ocasião; “oh patroa, o que pôs nas batatas que elas escorregam que é uma beleza”? Repetia do “Sapateiro-de-Manique”, enquanto metia à boca, garfadas atrás de garfadas de batatas e bacalhau.  

Antes disso, havia seara de trigo, cevada ou aveia, ondulada pelo vento que ali batia e bate e, por isso, as ditas alcachofras não sobressaíam porque serpenteavam por entre os caules que engrossavam e já formavam a espiga que, numa quinta-feira da “Ascensão”, se haviam juntado, num raminho, a lindas  papoilas vermelhas, malmequeres, outras belezas campestres e um triângulo de pão, para casa levado, ficando a fartura de comer garantida até ao ano seguinte.   
  
O forno de cal também estava calado. Nesta altura, este, descansava da sua labuta mais para o tempo frio que de calor, já bastava o braseiro da fornalha a muitos graus de temperatura para transformar pedra em alva cal. 

Neste dia 13 de junho, celebra-se o primeiro dos santos, o “António”, que é também o da Abrunheira. Por todo o lado, a “pandemia” lixou tudo, incluindo as comemorações dos Santos Populares, mas as alcachofras é que não se importam com isso. Com vírus, ou sem ele, elas aí estão para que não nos esqueçamos que é junho, a passagem para o verão.   

Silvestre Brandão Félix
13 junho de 2020

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PELA FRESQUINHA, ACORDANDO O SOL...


Pela fresquinha, “por esses caminhos abaixo”, acordando o Sol, muito se descobre… e recorda…

O Centro Social era para ter sido e não foi, mas a rua, que estava mesmo à mão (e ao pé), não a deixamos fugir. Não havia Centro Social, mas pelo menos havia rua.

Antes da ladeira, as Maçarocas, que na semeadura não me lembro de as ver, as de milho, mas recordo-me bem do grão-de-bico. De pedras era farta e, por isso e pela secura, a adequada seara do seco e rijo grão-de-bico. E aí, pelas Maçarocas, que nunca consegui perceber, para além do grão, também havia fartura de grilos. Era uma contínua cantoria de grilos e, para entremear, também de cigarras.

Ao alto fui, e a um “passo” do Casal-da-Peça, fiquei. Não desci, porque muito longa e desprotegida, no que toca a bermas, a caminhada ficava. Que soberba panorâmica se topa de toda a Abrunheira em direção à Serra. A luz do Sol, ainda rasteira, dá-lhe um brilho que só dali se pode apreciar. 

Pela do Casal Novo em estrada velha, caminhei. Ensaibrada, desgastada e esburacada. É uma das pontas do que conhecemos por “Parque Industrial da Abrunheira”. E dali se vê tudo! São dezenas de unidades industriais e armazéns de todo o tipo. Das Maçarocas ao IC 19, muita gente ali trabalha todos os dias.

Quando, pelo final dos cinquenta do século vinte, o Rafael que não era coxo, entrou pelo portão da novíssima Fábrica de Lixas e Colas Sincal, e uns poucos anos depois, chegados da pérola do Atlântico — Madeira, o pai do Virgílio ou o pai do Costa, entraram na, acabada de construir, Fábrica de Borracha Leacock Rosa, estavam longe de imaginar que sessenta anos depois, estas já não existiam e, em vez delas, outras quarenta, cinquenta, sessenta ou mais empresas, ocupavam os antigos espaços e todo o perímetro nascente da Abrunheira.

Genérico da primeira telenovela portuguesa, nos
estúdios da Edipim
Rente ao que foi a Átil do Gomes, consigo passo ligeiro pela do Thilo Krasmann, até olhar a placa de venda da velha Edipim. Ideia e construção do saudoso Thilo. Ouve-se o genérico da telenovela “Vila Faia”, os aplausos dos “parabéns” do Herman e, finalmente, o sucesso do “Conta-me como foi”. Tudo acaba, mas é sempre melhor quando acontece com dignidade.

Ainda antes das sete da matina, já ia alinhado com os muros, a nascente, da “Quinta Lavi”. Dali, sentia o agradável cheiro a pêssego, a maça ou a pera. Estavam do outro lado do muro, mas senti-os, os cheiros, mesmo junto a mim. Os dez anos de idade, não inventavam outra maneira de me distrair do medo. Era noite escura como breu e para a escola no Cacém tinha de ir. A Helena Monteiro não perdoava atrasos. A carreira “Eduardo Jorge”, na paragem da “Adreta”, me levava até ao comboio. À minha Mãe, doía-lhe ver-me sair de casa sozinho aquela hora, mas “dos fracos não reza a história” e os putos daquele tempo, tinham de ser fortes e bem cedo, como se pode ler:  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/10/estacao-de-sintra-o-cyntia-e-lambreta.html)

Por ali fui, pelas traseiras do “Leroy”, contornando o bem cuidado ajardinado até passar por debaixo do IC 19 com o intuito de mirar o “Chafariz da Charneca” que já não é Charneca e há de ser qualquer coisa entre a República da Coreia e a, merecida Raul Solnado. Podia estar melhor. Como a esperança fica sempre para a frente, acredito que ainda hei de ver aquele “monumento”, bem tratado, com o destaque merecido e, para fazer jus ao seu destino, a deitar água, porque agora está sequinho! Já lá vai o tempo em que a nascente da “Chancuda” lhe dava toda a água precisa. Muitas pançadas de água fresquinha do “Chafariz da Charneca”, as burras “Carocha”, mãe e filha, ali beberam como há uns anos contei no link já a seguir: https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/09/mobilidade-adiada-charneca-esquecida-e.html 
    
Esta “faladura” diz respeito à “Carocha-Filha”, mas a “Carocha-Mãe”, muito contaria e, decerto, corroboraria as façanhas encavalitadas “salvo-seja” porque, embora em correrias dadas a galope, nada tinha de cavalar, mesmo não parecendo, era só prima, uma burra, uma jumenta, mas animal inteligente. Assim que via o meu irmão, logo sabia o que havia de fazer. Ela estava sempre ao dispor das investidas do Vítor, qual D. Quixote que, por entre searas e ventanias, em pelo, “galopava” até a Carocha se cansar. Mais a sério, (naquele tempo o adjetivo ainda era masculino), todos os dias a Carocha-Mãe se deixava albardar para, devagarinho, com o meu irmão bem encaixado no lombo, levar as bilhas cheias de leite — bem entaladas em cada um dos lados da pança — que a minha Mãe tinha acabado de mungir das suas vaquinhas. Aí iam, desde o Casal Novo em Vale-de-Porcas, virado Vale-de-Flores, e que já não existe, até à Abrunheira, ao posto de receção do leite, ali, onde hoje, é o Café O Combatente. 

Chafariz da Charneca visto por mim . outubro 2019
Na volta, nem sempre os alforges iam vazios. O Vítor levava os recados que a minha Mãe lhe encomendara e a paragem no Faial servia de descanso. De regresso voltavam a passar pelo Chafariz da Charneca e, com o Casal do Ti Zé da Charneca à frente, viravam à esquerda para entrar no fundo da horta do Casal Novo, passando por cima da pequena ribeira.  

Ora, o Chafariz da Charneca, construído em 1781 a mando do Presidente do Senado da Câmara de Cintra, José Diniz de Oliveira, reinava há 4 anos a Rainha D. Maria I, está sempre na encruzilhada das nossas caminhadas, sejam apeadas ou encavalitadas nas burras Carochas, Mãe ou Filha. Neste dia também lá passei, antes de regressar, “a butes”, à Abrunheira, ainda pela fresquinha.



30 outubro de 2019
Silvestre Brandão Félix

sábado, 27 de julho de 2019

À DISTÂNCIA DE MEIO SÉCULO


Há meio século, tudo tinha outra “cor-embaciada”.

No dia seguinte, a Ti Augusta completava mais um ano de vida. Ia nos cinquenta e cinco. “Essa vida”, cheia de trabalho e sofrimento, mas também de muitas alegrias, como fazia sempre questão de dizer. O incentivo da minha Mãe foi decisivo para aceitar a “proposta” do Chico.

E, querendo, era para o dia seguinte, porque naquele 10 de junho de 1969, como era tradição, estava o Terreiro do Paço cheio com uma gigantesca parada de militares, comemorando o “célebre-dia-da-raça”.

Muitos — a propósito dos quais o Almirante e o “Professor da oportunidade perdida” e da primavera chamada “esperança”, espetaram medalhas no peito dos pais, das mães, das viúvas ou dos filhos e filhas — não puderam responder à chamada, porque os desígnios do império os transformaram em heróis depois de os levarem desta terrena vida. Quase todos os que responderam de viva voz para receberem a medalha, os heróis vivos, foi, porque transportaram no corpo o resultado das balas ou dos estilhaços que os haviam atingido.

Parece-me, agora, que tudo se passou noutra “encarnação”. O “Botas”, demente terminal, ainda vivia. Só se “apagaria”, um ano depois, também num 27 de julho.

A hora da despedida - Ida para a Guerra - Imagem RTP
Aquela Guerra Colonial, que ao tempo se chamava (baixinho porque algum “bufo” podia ouvir) “Guerra do Ultramar”, estava ativa em todas as frentes e, do Cais da Rocha Conde d’Óbidos e de Alcântara, continuavam a zarpar “paquetes” das companhias: Colonial de Navegação e Nacional de Navegação, carregados de tropa para combater os movimentos de libertação nas franjas do império. As despedidas, comportavam o cais cheio de lenços brancos acenando aos seus, até que o mastro mais alto desaparecesse no horizonte. De todos os que partiam, e porque iam para a guerra, nem todos regressariam.    
    
Ainda não tinha feito os quinze, mas lembro-me bem que por aqueles primeiros dias de trabalho na STAR, no 10 da Rua do Alecrim, que por ali ia no seguimento da boleia na lambreta do Chico até Oeiras, o comboio esteve parado alguns minutos à frente do “Cais da Rocha”, e assisti, embasbacado, a um daqueles tristes espetáculos. Naquele momento, impressionado, pareceu-me não faltar muito tempo para eu próprio, poder ser protagonista de cena idêntica.  

O meu primo Chico, depois de se ter safado das cheias do “Cacheu” e dos tiros nas emboscadas dos guerrilheiros do PAIGC, e ter tido a sorte de desembarcar em Alcântara, na volta, voltou para a marcenaria onde já trabalhava antes de “assentar-praça”.

Um dos clientes habituais onde ele se deslocava muitas vezes, era a STAR. Numa dessas idas, o Sá Rodrigues, homem da contabilidade e pessoal (ainda não tinham inventado a expressão-recursos humanos) da STAR na Rua do Alecrim, seu bem conhecido, aceitou que ele, o Chico, levasse lá o primo de catorze anos para preencher a vaga de “paquete” na secção dele. O primo de 14 anos era eu e assim lá fui! Naquele 11 de junho de 1969 e depois das perguntas e respostas, fiquei aprovado e comecei nesse mesmo dia a trabalhar e a ver o mundo pela “janela do terceiro andar”.

Tenho uma relação péssima com datas, mas, “mil anos que viva”, não me esquecerei daquele dia. Fez cinquenta de tempo contado em anos. O mesmo tempo, assim contado, do primeiro salto na Lua.

Como um simples comentário ou recado pode ser tão importante na vida duma pessoa. Se o Sá Rodrigues não se tivesse cruzado com o Chico naquele dia, o meu percurso de vida teria, certamente, sido diferente.

Desde aqueles dias e pelos outros dias, semanas, meses e anos seguintes, com o “trago” da dose de cafeína emborcada no Cyntiaantes bem medida e tirada pelo Ti Rodolfo e mais tarde pelo Ti João — e depois embalado no comboio até ao Rossio, lá ia à procura da experiência e do conhecimento que me transformaram em homem, fosse na carruagem da “sueca” e “bisca-lambida”, das “gordas do Diário de Notícias” ou de leitura em livro censurado  e “forrado” por causa dos “mirones”, ou na de bancos castanhos com os engravatados e “flausinas” com  as bochechas cheirosas e “empoadas”.

Praça Duque da Terceira (Cais do Sodré) - Google
Da “janela do terceiro andar”, via o bem e o mal. Com a “janela” aberta à minha frente, escolhia o caminho. Umas vezes bem, outras nem por isso, mas ouvia sempre um sopro atrás da orelha que me punha no certo. O Cais do Sodré ensinava tudo. Mesmo que não quisesse, aprendia sempre alguma coisa. Dos bitoques e imperiais do “Califórnia”, dos bás-bás do “Caneças”, dos pastéis de nata da “Zarzuela”, das bicas do “Recife” ou da “Brasília”, dos digestivos do “Brithis Bar”, das fresquinhas do “Atlântico, da loiça partida do “Grego”, das vieirinhas do “Porto de Abrigo”, do frango no espeto do “Rio Grande”, das sardinhas do “Carvoeiro”, das cabeças de peixe da “Tasca da Ribeira”, das bifanas do “Escondidinho”, do SG gigante da “Inglesa” e dos livros do Eduardo Olímpio.

Enfim! Sendo o ponto de partida do lado de cá da Serra, nas bordas do “Das Sesmarias” e Abrunheira dita “Brasil” por lembrança do voo escaqueirado protagonizado pelo Coutinho que era Bernardino e pelo Sacadura que era Borrego, mais tinha era de aprender.   

Desde a “janela do terceiro andar” via, ouvia e sentia tudo. Dos amores nados e desfeitos, até às debandadas à frente da Pide/DGS e seu “exército” de “bufos”, passando pelas angústias e ansiedades com a tropa e uma ida certa e obrigada para a Guerra.

Como é que, alguns, ainda podem querer dar “colorido” aquele tempo de há meio século?

Silvestre Brandão Félix
27 julho de 2019



quarta-feira, 14 de novembro de 2018

DE OLHOS FECHADOS


O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde estavam.

À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”, sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico.  Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.

E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.

O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido, certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e, fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.

Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.

E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.

Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à “Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …

Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”, para chegar à hora do chefe?

O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.

Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google

domingo, 21 de outubro de 2018

O FADO HILÁRIO, A LÉLÉ E O ZEQUINHA E O PEIXE FRESQUINHO


Na imaginação de puto, e porque naquele rádio a pilhas, assim, todo bege, que ficava sempre, todo “aperaltadinho”, em cima do armário da loiça na cozinha lá de casa, muitas vezes tocava fado e no meio deles, havia o do Hilário, ou seja, “O Fado Hilário”. Por isso, achava que o Ti Hilário da Natália, havia de saber cantar o fado.

Desse rádio a pilhas, ouvia-se, no Rádio Clube Português, estação que o meu pai sintonizava por causa dum programa rural que começava às seis da manhã, alguns clássicos como: O programa da manhã do Fialho Gouveia onde passava muita música portuguesa, os parodiantes de Lisboa à hora do almoço e, logo a seguir, o teatro radiofónico que podemos comparar às telenovelas de hoje porque prendiam milhares de pessoas ao rádio aquela hora e, ao final do dia, do Igrejas Caeiro, o Zequinha e a Lélé, nos Companheiros da Alegria e, também, o Comboio das seis e meia.  

Mas não! A música do Ti Hilário, era outra! Copinhos de dois, tinto, ao balcão do Ti Álvaro, que eu bem via quando por lá lia o “Século”, treinando para as leituras mais complicadas dos livros escolares.

Na altura, ainda não havia o “Plano Nacional de Leitura” nem nada que se parecesse e as alternativas eram, o jornal do Ti Álvaro e os de “quadradinhos” do Major Alvega, e outros heróis da aviação da primeira e segunda guerra mundial, mas também dos cowboys e índios, que o meu irmão comprava.
Então, é verdade, eu tinha a mania que o Ti Hilário era fadista. Assim à distância, nem entendo bem porquê, se calhar só porque se chamava Hilário. Será que o vi alguma vez cantarolar depois dalguma sequência avantajada de copinhos de “dois-tinto”? Não sei, mas assobiar, isso ouvi!
Não me lembro, que o nome de outra mulher fosse dito e ouvido tanta vez no Largo do Chafariz, como o da Ti Natália. Quando se queria falar do Ti Hilário, era o Hilário da Natália, o filho Zé, era o Zé da Natália, o outro filho João, João da Natália. Era uma mulher com um ascendente sobre os homens lá de casa, como não havia igual. Era de tal maneira que, até eu, que a ouvia gritar com eles, tinha um certo medo dela. Coitada! Não era má pessoa, mas tinha que se impor, senão, estava desgraçada.

O Ti Hilário, era aquela figura. De fato-macaco ganga-azul, pintalgado de estuque, cimento, cal ou outros produtos usados no último biscate. Sempre educado, pouco falador e muito fumador, mas realmente não cantava o fado, só assobiava.

Sentados no degrau do que naquela época era o armazém do Ti Álvaro, eu e o Zé Augusto ou o Rui, tínhamos uma visão global do Largo do Chafariz. Víamos quem entrava na mercearia e na taberna como o Ti Hilário, quem passava para, ou do lado do “Frouxo” ou da menina Emília e, acima de tudo, quem ia ao Chafariz buscar água ou dar água aos animais.

Era, como se fosse uma plateia e, daí, assistíssemos ao filme do dia-a-dia dos abrunhenses. A voz ou as gargalhadas do Tavinho com as travessuras do carneiro “Baltazar”, o bater do sacho do Ti Veríssimo no chão e o andar muito rápido da Ti “Estrudinhas”, o “quá” esganiçado dos ganços e o balir das ovelhas do meu Tio António. Também dava para observar a lida do Ti João de Leião. Ora saía com o grande tratar vermelho ou com o seu Opel que acho era Kadette. Ainda, até à curva, se descortinava o Ti João Peixeiro a chegar de motorizada com o atrelado vazio, ou com alguma sobra, isso é que nós não conseguíamos ver. Duma maneira ou doutra, à noite, lá ia ele até à lota de Cascais para trazer produto fresquinho e, depois, dividir com a Ti Aurélia, para, literalmente à porta de cada um dos abrunhenses, “vender-o-seu-peixe”.

Lembraduras que o vento ainda não levou…

Silvestre Brandão Félix
21 outubro de 2018
Foto: Chafariz da Abrunheira (de: Zé Dionísio)

domingo, 14 de outubro de 2018

BAILES, AJUDA DO SARAIVA DA SERRAÇÃO, RECENSEAMENTO E CONSTITUINTES


Por entre; serras e outras ferramentas elétricas, grandes tábuas em madeira bruta ao alto, outras tábuas já cortadas, mais ripas e ripinhas e muita serradura pelo chão, nós dançamos, dançamos até estarmos cansados.

O Saraiva da serração, por mais duma vez, deu-nos essa “abébia”. Não era para todos, só ele. Naquela época, era especial e gostava de colaborar com a juventude. Muitas vezes recorremos à sua boa vontade e generosidade.

Pelo menos, por duas vezes, disponibilizou o espaço de trabalho da serração, para fazermos lá baile. Imagine-se à sexta feira; ele e os empregados a arrumarem tudo para, no sábado seguinte, chegar a malta nova e montar o bailarico. Os Zés encarregavam-se da “playlist” em grandes discos de vinil e depois, cada um à sua vez, para poderem dançar todos, “empapelavam-se” de DJ’s.

Todos os jovens disponíveis da Abrunheira e não só — lembro-me de um ou outro rapaz e duas ou três raparigas, de fora. Os nomes é que… ficaram no tempo — estavam lá e os bailes foram um sucesso. Se tivesse havido oportunidade para isso, o Ti Saraiva tinha sido levado em ombros e saudado pelos jovens e adultos abrunhenses ou abrunheirenses.

Por outras duas vezes, ou mais, disponibilizou-nos uma outra dependência com entrada pela que viria a ser, Rua Ferreira de Castro e onde, mais tarde, salvo-erro, serviu para “abancar” o primeiro recenseamento provisório depois do 25 de abril de 1974 e, depois, para “Assembleia Eleitoral” das primeiras eleições livres, as constituintes, no dia 25 de abril de 1975. Mas, dizia eu, que por algumas vezes nos emprestou esse espaço para fazermos pequenos espetáculos de teatro que, na prática, foi o “embrião” do que, algum tempo depois, já na URCA, viria a ser o GITU. Os jovens da Abrunheira, neste tempo, foram, culturalmente, muito ativos na Abrunheira e fora.

Não foi só, mas foi grande a contribuição do Saraiva da serração para que os abrunhenses dessa época — entre 1972 e 1976 — tivessem um envolvimento e empenhamento cultural, como nunca tinha acontecido antes, nem, com a mesma intensidade, depois.

O intervalo dos anos que mencionei (4 anos) foram, do ponto de vista cultural e político, na Abrunheira, ricos e, ao mesmo tempo, explosivos. Até abril de 1974, a necessidade de descobrir, aprender e, por consequência, de contestar, numa movimentação que tinha que ter em conta o regime de ditadura existente.

Quarenta e quatro anos depois, em que a liberdade de expressão e de associação, é tão natural como o ar que se respira, não é fácil perceber as circunstâncias em nos movíamos.

Qualquer manifestação que pusesse em causa o estabelecido pelo regime, mesmo culturalmente falando, era proibida se detetada com antecedência, ou reprimida se só descoberta na hora, com intervenção da polícia política do regime, a PIDE que, por mais pequena que fosse a suspeita, poderia transformar-se em dias de detenção com interrogatórios sucessivos e, numa grande parte das vezes, levado a sessões de tortura. Principalmente se estava em causa a “tropa” ou a Guerra Colonial que, na altura, simplesmente se ignorava o termo “guerra” e, muito menos, “colonial”.

A este propósito, lembro-me, por exemplo, de ter comprado uma coleção de livros filosóficos sobre a “história das ideologias”. O vendedor, a quem, quando tinha orçamento, ia comprando um ou outro livro, avisou-me que aqueles, os das ideologias, eram clandestinos, ou seja; em tempos tinham sido recolhidos pela PIDE, portanto, se andasse com eles publicamente, devia forrá-los, de forma a não se ver o que era. Noutras ocasiões, o livreiro Olímpio, tornou a dar-me o mesmo recado.

Até abril de 1974, os rapazes da Abrunheira, como eu, debatiam-se com a certeza de ida para uma guerra que não queriam, fosse em África ou noutro sítio qualquer e, disso, conversavam às escondidas na maior parte das vezes, durante a noite, para que os riscos de sermos vistos por algum “bufo”, fossem menores.

O 25 de abril chegou nesta fase da nossa vida (eu tinha 19 anos) e, para além de tudo o que já se disse e passou à história, mal ou bem contada, para mim e para outros rapazes da Abrunheira, foi um alívio; já não éramos obrigados a ir para guerra nenhuma!  

O nosso trabalho cultural continuou graças à ajuda de muita gente. Neste escrito, apeteceu-me lembrar a generosidade do Saraiva da Serração naqueles anos da minha juventude.

Gosto de pensar que, independentemente da evolução natural da comunidade abrunhense ou abrunheirense, homens e mulheres com nome, deixaram o seu selo no que somos hoje, mesmo que alguns, ou algumas instituições, achem que só eles sabem o que o povo precisa e quer.

Silvestre Brandão Félix
14 outubro de 2018
Gravura: Google

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O SPEED GONZALEZ E O MANEL A TIRAR UMA BICA...


Este fim-de-semana, estive a arrumar arquivo. Ou seja, aliviar de ficheiros e mesmo, pastas de arquivo, do PC para o disco externo e pen’s. A minha “velha” e muitas vezes, maltratada massa cinzenta, muita dificuldade teria, se eu tivesse a ousadia, de a levar a imaginar mudar de sítio, o equivalente, em folhas papel A4, álbuns de fotos e respetivas caixas de cartão. Como seria e quanto tempo demoraria.

Esta reflexão transporta-me no tempo…

Antes de abrir o café do Manel, só víamos televisão na “Sociedade”. Todos os dias, ao começo da noite, alguém da direção abria a porta, varria as beatas da noite anterior, alinhava os grandes bancos-corridos de madeira com o necessário corredor ao meio e, com alguma paciência e sapiência, ligava o aparelho de televisão.

Era um grande “caixote” colocado numa prateleira larga, no topo da empena poente e tinha uma imensidão de coisas lá dentro. Quando botava as coisas cá para “fora”, eu, nos meus 7 ou 8 anos, matutava como os tipos conseguiam pôr tudo lá dentro. A caixa era grande, mas caber lá tanta coisa, era obra! 

Estive lá muitas vezes aquela hora porque, até aos meus 10 anos, morávamos na atual Rua do Olival, entre a Quinta de Santo António e a Quinta do Olival. Era uma casinha antiga de traça saloia, com um grande quintal, meia-dúzia de figueiras, um grande cedro e dois grandes eucaliptos. Foi o sítio onde gostei mais de morar. 

Então, enquanto a minha mãe acabava de tratar dos animais, eu esperava-a na Sociedade. Era a hora daquelas séries antigas ou desenhos animados: Robim dos Bosques, o Último dos Moicanos, Gato Silvestre, Gato Félix, Speed Gonzalez, etc., etc. É claro que era preciso, primeiro, que a televisão fosse ligada. Quando recordo estes momentos, vejo sempre o Ti Jorge Farpela. Ele era alto, mas não tanto que tocasse na televisão. Puxava um banco, subia para cima e, assim, chegava ao aparelho. Lá ligava o interruptor, mas nunca dava à primeira. Era sempre uma carga de trabalhos. É preciso ver que estávamos no início da década de sessenta. Mas, jeitinho daqui, pancadinha dacolá, as válvulas aqueciam e lá “começava a jorrar a corrente elétrica” como se canalização de água se tratasse.

Depois do jantar, a Sociedade enchia-se de gente e de fumo de tabaco. Naquela idade, não eram muitas as vezes que tinha autorização de lá ir aquelas horas. Só quando, na qualidade de “pau-de-cabeleira” da Felicidade e do Alfredo. O que é certo é que uma parte considerável da Abrunheira daquela altura, incluindo já, algumas mulheres, despejava ali. Os donos das tabernas, no que respeitava aos homens, começaram por não achar graça à coisa e, lá mais para a frente, também tiveram que “abrir-os-cordões-à-bolsa” para comprarem aparelhos de televisão. Nos primeiros tempos, para além da televisão da Sociedade, só havia uma outra na Abrunheira. Era do Raposo, um abrunhense que morava ao lado do que é hoje, o café “Combatente”. Acho que o Raposo também era “Rádio Amador” e muito dado às “novas” tecnologias da época.

O Manel, quando abriu o “Café-Brasil”, para nós sempre o “Café-do-Manel”, já lá tinha o dito aparelho, bem alto, na parede do lado direito quando se entrava a porta. A primeira televisão, já era bem mais moderna que a velhinha da Sociedade. Para além disso, o pecúlio do — em boa-hora achado e aconselhado — sogro Ti Sabino, era muito mais “atestado” do que o dos sócios da Sociedade.

O Café do Manel passou então a ser a “plateia” preferida dos abrunhenses, para ver televisão. Com uma bica ou um garoto, ambos servidos num copinho de vidro sem asa, com as calmas do Manel, dava direito a assistir, a toda a programação ao longo do serão.

O Manel era único a tirar os cafés. A máquina era daquelas quase manuais; ele metia o pó de café — sempre muito devagar — dentro do recipiente da máquina com uma colherzinha, só para aquele efeito, depois pegava num calcador e, devagar, calcava o pó na medida exata. Só depois — passavam uns minutos — levava o manípulo à máquina e, com um jeito que só ele tinha, encaixava-o devidamente. Depois de bem medida a distância a que o seu corpo estava da máquina, puxava, de cima para baixo, um “braço” da máquina, que fazia pressão e provocava a saída do café. Ele manobrava o tal braço, para cima e para baixo — sempre devagar — até o café estar como queria. Era uma manobra complicada e demorada. Se alguém protestasse com a demora, tinha sempre resposta: — Se tens pressa, vai ao Cabaço! (ou ao Ramos, conforme a altura).

A partir de determinada hora, não era fácil arranjar uma cadeira para alguém se sentar. As cadeiras e as mesas eram grandes, pesadas e de madeira. As mesas tinham um tampo em mármore.

Pouco tempo depois, o Manel arranjou uma sala interior onde se jogava bilhar, laranjinha de mesa e matraquilhos. Na sala principal, havia sempre um ou dois tabuleiros de damas que, especialistas, ignorando o espetáculo da “televisão”, jogavam em silêncio. Das “damas”, arrisco nomes, mas por antecipação, peço já desculpa por algum engano ou esquecimento. Lembro-me, por exemplo; do Durães, do Xico Chamiço e do Caracinha. Havia mais, mas não consigo recordar-me quem eram. Na sala interior, nos matraquilhos, e considerando o pessoal mais velho, recordo: O Baptista, os meus primos Fernando e António (Pézinhos), Xico Cruz, Xico Pardal… e não consigo mais…

Aquela caixa, que penduravam em prateleiras altas e tinha a suas manhas para trabalhar em condições, começou a mudar a nossa vida.

Como podíamos imaginar que, passados quase 60 anos, tudo o que a televisão nos dava, poderia ser multiplicado muitos milhões de vezes em capacidade, e apresentado num pequeno “chip”, numa “pen” ou, vá lá, num vulgar telemóvel?

Silvestre Brandão Félix
8 de outubro de 2018
Gravura: Google

terça-feira, 18 de setembro de 2018

A ASA DA XÍCARA E A CARREIRA 446


Durante boa parte da minha vida, nunca me pareceu, que alguém tivesse dúvidas da serventia daquela parte saliente em argola, como se orelha fosse, das chávenas, canecas ou xícaras, como ainda se diz no Brasil.

Há, algum tempo, comecei a reparar, que algumas das personagens que nos entram todos os dias pela casa dentro — sim, porque eu também vejo telenovelas — pegam nas chávenas pelo lado contrário da asa; ou seja, ignoram de propósito a “orelha” da dita e bebem assim.

As teorias são muitas, como, aliás, costuma acontecer em relação a tudo o que não tem explicação.

Já ouvi dizer — à laia de desculpa pela distração — de outro(a)s que não aparecem pela TV, que é para não pôr os lábios do mesmo lado da generalidade das pessoas que, naturalmente, pegam pela asa. Até podia ir nessa, mas a cena é que já tenho visto esses mesmos, pegarem na chávena e levarem aos lábios com a mão esquerda. Ou seja; o efeito (dito) pretendido, é anulado pela base.

Mas então, porque será? É moda? Fica bem? Para ser diferente? Ou, simplesmente, porque o, ou a, (atenção ao género) elemento está meio a dormir? Ou então, numa dedução mais lógica, se acontecesse só nas telenovelas; o recipiente pegado, nem líquido tem dentro, porque se tivesse e quente, da boca lhe saia palavrão na certa!

Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, nos deparamos com o que “parece”, e, não é? Se repararmos bem, muitas!

É como a carreira 446!

O que é que a carreira 446 tem a ver com a serventia da “orelha” da chávena? Estarão vocês a perguntar.

Tem a ver, sim! Também é uma coisa que parece, e, não é!

Parece uma carreira, ou transporte público, para servir (embora paga) a população, mas não é! Pelo menos, entre a Abrunheira e Chão de Meninos, não serve para nada.

Para os abrunheneses, que serventia tem uma carreira que num pulinho está em Chão de Meninos e não vai mais para baixo. Em dois ou três minutos estava na Estefânia e muita gente se podia servir dela.

Realmente, diminuíram o tamanho da camioneta, agora é quase sempre mini. Pudera, ninguém a usa!  

Ponham lá a 446 até à Estefânia, dando a volta na rotunda/fonte ou Estação de Sintra, de qualquer maneira, é preciso é que não fique a meio caminho, em Chão de Meninos. Ah, e já agora, reponham o trajeto Abrunheira/Ranholas/Chão de Meninos/Sintra e a preços razoáveis, da que vem de Oeiras 467 e que — com certeza que não foi para servir a “povinho” — há uns tempos a desviaram para Mem Martins/Ouressa/Portela.

Conclusão: No que diz respeito a transportes públicos, a Abrunheira tem várias soluções para Mem Martins e Rio de Mouro, mas para Sintra, sede do concelho e com todos os serviços de que os abrunhenses necessitam, incluindo Centro de Saúde, não tem uma única ligação direta dos seus 6/7 kms e 10/12 minutos e, as alternativas até à Estação da Portela via Ouressa, estão a mais do dobro em distância, e, em tempo, com trânsito normal, 30/40 minutos, quando faz circular, a tal (446) que parece e não é, até Chão de Meninos e que não serve a ninguém. 

Silvestre Brandão Félix
18 setembro de 2018
Fotos: Google



domingo, 16 de setembro de 2018

NUM DESTES DIAS


Num destes dias, um “camarada de armas” (escrita), desafiou-me para não estar tão ausente, na colocação de “postagens” nos blogues e no FB.

Desculpei-me, com o argumento de que são poucas as ocasiões para festejar, comemorar ou felicitar, acontecimentos abrunhenses ou que tenham a ver com a melhoria da qualidade de vida da nossa população.

É claro que o meu padrão de escrita (perdoem-me a presunção, “escrita” é demasiado para quem rabisca uns textos soltos) não se limita à Abrunheira, seja no lugar de baixo ou sul, do meio, de cima ou norte ou até, simplesmente aldeia, como alguns ainda lhe chamam. Só que, considerando a abrangência de “zona” (superior à freguesia e inferior ao concelho), tornou-se cada vez mais difícil para mim, opinar sobre o que quer que seja.

Considerando algumas exceções que não irão além de dez por cento, o que aparece sobre a zona/região ou mesmo sobre Sintra, nos formatos crónicas, postagens, comentários, respostas ou simples textos, nas RS e principalmente no FB, é tudo colorido, ou seja; a primeira motivação é partidária ou preconceituosa.

Não quer dizer que, mesmo carimbados como acabei de referir, os escritos não correspondam à verdade e ao que está certo. De maneira nenhuma, senão era o preconceito ao contrário. Não! Essas opiniões ou críticas são muitas vezes oportunas e corretas, mesmo levando o selo partidário.

O que me chateia solenemente, é que não é essa a regra, antes pelo contrário. A “clubite” e a “partidarite”, manipulam a “verdade” conforme o lado e o “mandato” em questão. O que hoje está errado, poderá estar certo amanhã, se a cor mudar.

Bom, mas voltando à Abrunheira, quem não sabe pode pensar que estou a ser irónico, mas não estou; as carências são tantas e com o poder tão longe, damos por nós a rejubilar de contentamento com a substituição dum, já célebre, poste de madeira por outro de cimento, na Rua do Forno. O serviço ainda não está concluído, mas o de cimento já está colocado, meio caminho andado. O velho, coitado, carregado de cabos elétricos, teve vida longa e vai morrer sem paliativos, mas, para nosso contentamento, já não nos cairá em cima.

Outro motivo de satisfação, foram os Festejos da URCA. Mesmo com os tímpanos avariados, pois o quarto é mesmo aqui ao lado, tenho que reconhecer e capacidade de trabalho dos promotores e diretores da URCA. Obrigado e muitos parabéns!    
   
Silvestre Brandão Félix
16 de setembro 2018

domingo, 24 de junho de 2018

ENTRE AS BRUMAS DA MEMÓRIA


“Entre as brumas da memória”;

as boas sardinhas nas Festas de São Pedro, o caos no estacionamento à entrada, a bela “Juveniana”, agora, transformada num monte de entulho, a “Boa Viagem” a abarrotar até à Estação de Sintra e, agora, a scotturb 446 sempre vazia quando vai da Abrunheira, só para Chão de Meninos, as estórias do “Caga-à-Chuva” pelas manhãs de domingo à hora da missa, água corrente no Rio das Sesmarias e os pêssegos rosa da horta, as saborosas amoras no caminho para os “Celões”, as fogueiras dos “Santos” com as alcachofras a arder, o Sporting cativo de BdC, já era e a Junta de Freguesia do lado de cá, da Serra.

Mesmo agora, neste ano dezoito, cem depois do armistício da primeira, alguns dos campos sobrantes à roda da Terra onde o Coutinho que era Bernardino, levava os dias entre a Judite e a pedreira, seu laboratório exclusivo, onde desenvolvia as investigações, a coberto do único tratado alguma vez elaborado e compilado para a “Ciência da Pedra”, mesmo agora… dizia, ou melhor, escrevia; deparamos com ondas de lindo lilás que brota das dezenas ou centenas de alcachofras em flor. 
  
Se a flor da alcachofra, qual fénix reflorida, depois de queimada na fogueira do Santo devoto, o amor era verdadeiro com certeza.

Costumes que a memória guarda, com todas as incertezas do mundo.

Certo! Certo! Só outra coisa: O Bernardino que não era Coutinho era Cabouqueiro e tinha a “Ciência da Pedra”.

O resto, são palavras e leva-as o vento que, por cá, até sopra com fartura!

Silvestre Brandão Félix
24 de junho de 2018 (Dia de São João do lado de cá, da Serra)
Foto: Google