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Panorâmica da Abrunheira |
Aqui, também se jogava à bola. Pelo vale encaixado entre
Santa Eufémia com a Cruz Alta e a colina do Casal da Peça com o Cabeço de
Manique, bem vincado no leito do Rio das Sesmarias, quando engrossado era,
pelas águas nascidas no “Penedo”, acima de Vale de Porcas; pela “Chancuda”, mesmo
atrás do Chafariz da Charneca que a D. Maria, a primeira, abençoou; pela barrenta
que nascia nos “Barros”, muito longe de se adivinhar a feitura de jornais e
revistas que falam coisas e algumas verdades; pela enchida, até deitar por
fora, Mina do Lavadouro que primeiro dava de beber a esse “Lavadouro”, primeira
versão de “rede-social” cá no sítio que ainda não era “site” e, em cima, o poço
da bica do Santo António, tudo paredes-meias com as Hortas do Ti Mendes dum
lado e do Ti Manel da Virgínia, do outro e, lá mais à frente, vinda de cima, corre
a nascida junto à Quinta do Anjinho que vem depressa e até teve honra de túnel
sob o autoestrada, ao contrário da antiga e “assassinada” — porque os
habitantes pouco contam e nem lhes foi perguntado o que queriam — rua da Abrunheira
ligando esta, a Ranholas, por onde a minha Mãe me levou tantas vezes, para o
Mercado de São Pedro e, outras, até à “Casa-da-Serra” na Tapada do Roma, onde,
ao cimo da ladeira, a minha avó Cândida nos esperava enquanto a Ti Franquelina
já aprontava o café que cheirava e sabia, como nunca mais, noutro lugar, encontrei.
A seguir, todas as regueiras se juntam ao Das Sesmarias a
chegar aos “Quatro-Donos”, rente à “Arroteia” no fundo dos Celões que, seguindo
muito tempo em anos contados, havia de ser morada de condóminos bem resguardados
com o nome da “Beloura” que já não é do Chico.
Retomando a bola e indo ao ponto que me levou, hoje, a
despejar letras, palavras, pontos e vírgulas por aqui afora, recuo a pouco tempo
depois de finada a II Guerra Mundial, quando rolava e voava a bola de cabedal
que ao ouvido soava “catechum”, autêntico luxo comparado com as bolas de muitas
meias enfiadas umas nas outras e, nesse caso, ideais para jogar de pé descalço no
largo da Quinta do Olival onde também se festejava a inauguração da luz
elétrica na Abrunheira que, por isso, se chama “Beco da Saudade” ou no verde do
Carrascal, antes do Caracol, porque lá havia carrascos com fartura. A de “catechum”
era bem dura para ser rematada com botas que ainda não eram “chuteiras” com
pitons, mas que os abrunheirenses do Clube de Futebol, nas solas, aplicavam
umas travessas para eliminar a lisura e travar a escorregadela.
Os, “cinquenta” se foram e os “sessenta” chegaram. Na mesma
cadencia que outros portugueses, vindos de outras bandas, se iam instalando nesta
terra de abrunheiros e zambujeiros com fartura. O Jorge Farpela estava a deixar
de defender os postes da baliza dos futebolistas da Abrunheira que, em boa
verdade, se resumia a uns solteiros e casados e pouco mais, sendo, os últimos
anos, jogados no campo de futebol da Colónia.
À parte da estória, convém explicar que esta designação de “Colónia”,
não é de férias — neste início dos anos vinte do século vinte e um, pós troika
e em plena invasão de mais um “corona-vírus” que há cem anos, um antepassado direto,
batizado “pneumónica” ou “gripe-espanhola”, limpou o cebo a mais de 50 milhões
de indivíduos — como podem pensar, os Abrunheirenses ou Abrunhenses com menos de
40 anos, mas sim, prisão.
Era assim o nome antigo que agora se chama, “Estabelecimento
Prisional de Sintra”. Bem sei que, fazendo fé e acreditando no saber do
Dicionário da Porto Editora, “estabelecimento”, pode ser uma “instituição”, como
é o caso. Para mim, estabelecimento, será sempre uma mercearia, taberna, ou
qualquer outra loja com montra e tudo. Aqui, neste “estabelecimento”, a montra
até seria uma péssima ideia porque tudo o que o rodeia, está a cair aos
bocados. Só visto, porque contado, ninguém acredita. Os prédios do bairro e
todas as moradias onde habitam guardas prisionais, estão num estado de quase ruína
e outras já há muito, caíram.
Bom, voltando ao Jorge Farpela. Com as botas já a pesarem-lhe,
deixou-se ficar, e bem, pela colaboração na direção da “Sociedade”. Organizavam,
ele e mais alguns, uns bailaricos com as imperdíveis atuações do Ti João Baleia,
do jovem filho Augusto, do Adelino Baleia, do Ti Faneca (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2011/03/um-corridinho.html)
e um dos seus filhos. O Jorge
Farpela e o meu tio Rafael, que tantas vezes por aqui tenho escrito a seu
propósito, faziam a gestão da “Sociedade” à sua maneira.
Com a chegada da televisão, a “Sociedade” passou a ter trabalho
todos os dias e a presença deles os dois e mais alguns que a memória me “roubou”,
era assídua. Portanto, da bola, se encarregavam outros abrunheirenses.
Antes de continuar, embora já o tenha dito e escrito muitas
vezes, é importante lembrar mais uma vez — Faço o possível por referir factos e
pessoas verdadeiras, mas muito tempo contado em anos já por mim passaram, pelo
que, o “arquivo” já não está nas melhores condições; ou as letras estão
sumidas, ou não entendo bem a caligrafia, ou as pilhas dos neurónios estão
gastas, enfim, são muitas as razões que me levam a manter um antigo litígio com
a “lembradura” de nomes de pessoas e lugares, levando-me a fazer umas trocas, a
esquecer-me e a inventar outras. Espero que me desculpem.
Feito o “relembro”, voltamos ao futebol. À frente da baliza
dos abrunheirenses futebolistas, estava, e bem consolidado no lugar, o Zé
Maria. Ele, jogador na posição de guarda-redes, mas também diretor, organizador,
roupeiro, massagista e treinador. O Zé Maria, nos anos sessenta, foi realmente
o grande impulsionador da criação da equipa de futebol da Abrunheira, naquela época,
devidamente organizada e integrada no Grupo Desportivo da Abrunheira, como
muito bem me lembrou o Zé Nascimento.
O Zé Maria, casado com a Dina, filha da Ti Maria (do
Florindo) e, claro, do Ti Florindo. A Ti Maria do Florindo, de quem me recordo
com muita saudade, era a “alma” do “Santo António”. Mau grado o desaparecimento
precoce de alguns mais próximos, era uma mulher sempre com um sorriso nos
lábios. O seu filho mais novo, Zé Manel Dionísio, é muito ativo aqui, nas redes
sociais, onde nos cruzamos de vez em quando.
Voltando ao futebol e recuando aos anos cinquenta, é
importante referir a chegada à Abrunheira de algumas famílias oriundas de outras
regiões do país, designadamente da Beira Alta. É importante porque, mais tarde,
os filhos dessas famílias, principalmente e de quem me lembro, os filhos do
Alexandre Nascimento; David, António e o mais novo Zé e, do Zé da Cruz, o
Francisco e o tio deste, o Martins, que vão ser decisivos para, em conjunto com
o Zé Maria, o Carlos Jorge, filho mais velho da Deolinda e do Ti João Tirapicos,
o João Balagueiras filho mais velho do Ti Balagueiras, guarda prisional da Colónia,
O Baptista, que da mais alta “estrela” também desceu, e outros, desenvolverem e
consolidarem o Grupo Desportivo da Abrunheira. A propósito, da mesma região
beirã e na mesma altura, chegaria e assentaria morada na Abrunheira, o Zé “Celorico”
e a mulher. O Ti Zé, era “artista” sapateiro e, durante muitos anos, exerceu a
sua arte correspondendo à grande procura a que o Ti Jo’quim “Cagachuva”, não
dava vencimento. O apelido “Celorico” assim seria, devido à sua origem de
Celorico da Beira. Este casal não tinha filhos e pela segunda metade dos anos
sessenta, fui encontrar o Ti Zé e com ele convivi alguns meses, na Fábrica de
Plásticos Atil, onde tive o meu primeiro emprego durante cerca de seis meses.
O nosso campo de “casa” era o “pelado” da Colónia. Naquela
época, a Colónia ainda não tinha bairro residencial. Só havia uma ou outra
moradia, pelo que a maioria dos guardas morava na Abrunheira, mas também no Linhó
e Ranholas. Na Abrunheira moravam muitos e, boa parte, acabaram por cá ficar e
mais os seus descendentes. Deste grupo de Abrunheirenses, são alguns dos meus melhores
amigos até hoje. Quero com isto dizer, que havia uma forte ligação da população
da Abrunheira à Colónia, daí, o ser absolutamente natural a utilização deste
campo de futebol.
Já nos anos sessenta e com o desenvolvimento industrial na
zona, começaram a chegar cá outros futuros futebolistas vindos do Alentejo e da
Madeira.
As fábricas começaram a aparecer em Mem Martins: A Adreta, a
Resiquímica, a Comportel, a Messa, etc., etc., a Sincal e a Borracha Leacok, na
Abrunheira.
Do Alentejo, devido às condições de vida adversas, muitas
famílias inteiras trocaram o trabalho do campo por estas novas oportunidades e
aqui se instalaram com os seus filhos. Passaram pela equipa de futebol, pelo
menos, vários membros da família Lagarto que seguiram as pisadas do Gilberto, o
Chico Cobecas e a entrar os “setenta” o Valentim, o Vicente, o Vítor “Negrete”,
o Fernando e o Zé Marques talvez um pouco mais tarde, e outros.
Da Madeira, em virtude da construção da fábrica de borracha dum
industrial madeirense — Leacok Rosa, Lda — que, por escassez de mão de obra no
continente, de lá, da Madeira, trouxeram alguns especialistas e operários. Vieram
com as famílias e com muitos filhos.
Da Madeira, também já pelos “setenta”, lembro-me do Virgílio
(Jimmy), do Eleutério (autêntico craque), dos irmãos Sousa com o Bruno na
baliza, do Costa e dos Pombos.
Que não se pense que os nascidos e criados na Abrunheira, não
chutavam na bola. Todos, uns mais que outros, jogavam à bola. Até eu, o Rui, o
Zé Fernando, os Pardais, o Julinho, o Vítor do eletricista e, principalmente o
Mário. Ele era bom de bola e foi um grande entusiasta da secção desportiva da
URCA, depois acompanhado pelo irmão Paulo.
Pelos últimos dias de 1974 e primeiros de 1975, muitas conversas
se desenvolveram entre vários elementos do Grupo Desportivo, lembro-me bem do Chico
Cruz e do António Nascimento, e do emergente Grupo Cultural. Muita força se fez
para unir os dois grupos, de forma a não dispersar o esforço e a concentrar a
capacidade de organização e de trabalho, numa única coletividade. Foi assim que nasceu a URCA—UNIÃO RECREATIVA E
CULTURAL DA ABRUNHEIRA a 3 janeiro de 1975.
Por esta altura já alguns craques jogavam pelos clubes a
sério da zona; 1º de Dezembro, Mem Martins Sport Clube e, acho, até no
Sintrense que na altura já militava na 2ª Divisão do Campeonato Nacional. Mais
tarde, na passagem da década de setenta para oitenta, apareceu outra fornada de
bons futebolistas. Por essa altura, a URCA teve uma equipa de futebol nos
distritais.
Na verdade, a fundação desta nova coletividade, selou a UNIÃO
dos abrunheirenses socialmente mais ativos.
São estes os fundadores da URCA. Onde andarão eles? Alguns, mais
ligados ao futebol, conseguem encontrar-se e confraternizar, pelo menos uma vez
por ano, mas… e os outros, os que não jogavam futebol, onde estão?
Há uns anos, garantiram-me e eu acreditei, que todo o acervo
escrito de, pelo menos, duas décadas, desde a fundação, tinha desaparecido. Dezenas
ou centenas de fotos, correspondência, livros de atas e outros documentos
importantes da URCA e do projeto do Centro Social, ou seja, a história da
coletividade e o legado dos fundadores, tinham sido “apagados”!
Esta época pandémica, completamente anacrónica, faz-nos
refletir sobre a pouca valorização que atribuímos a coisas importantes da nossa
vida. Só mais para a frente, damos conta disso.
O papel que tivemos naquele tempo, os desportistas e os mais
dados à cultura e recreio, fundando e organizando a URCA e projetando e
construindo os alicerces do Centro Social que, infelizmente, nunca avançou, foi
muito importante, mas hoje, pouco ou nada resta!
Silvestre Brandão Félix
6 julho de 2020