Por entre; serras e outras ferramentas elétricas, grandes
tábuas em madeira bruta ao alto, outras tábuas já cortadas, mais ripas e
ripinhas e muita serradura pelo chão, nós dançamos, dançamos até estarmos cansados.
O Saraiva da serração, por mais duma vez, deu-nos essa
“abébia”. Não era para todos, só ele. Naquela época, era especial e gostava de
colaborar com a juventude. Muitas vezes recorremos à sua boa vontade e
generosidade.
Pelo menos, por duas vezes, disponibilizou o espaço de
trabalho da serração, para fazermos lá baile. Imagine-se à sexta feira; ele e
os empregados a arrumarem tudo para, no sábado seguinte, chegar a malta nova e
montar o bailarico. Os Zés encarregavam-se da “playlist” em grandes discos de
vinil e depois, cada um à sua vez, para poderem dançar todos, “empapelavam-se”
de DJ’s.
Todos os jovens disponíveis da Abrunheira e não só —
lembro-me de um ou outro rapaz e duas ou três raparigas, de fora. Os nomes é
que… ficaram no tempo — estavam lá e os bailes foram um sucesso. Se tivesse
havido oportunidade para isso, o Ti Saraiva tinha sido levado em ombros e
saudado pelos jovens e adultos abrunhenses ou abrunheirenses.
Por outras duas vezes, ou mais, disponibilizou-nos uma outra
dependência com entrada pela que viria a ser, Rua Ferreira de Castro e onde,
mais tarde, salvo-erro, serviu para “abancar” o primeiro recenseamento
provisório depois do 25 de abril de 1974 e, depois, para “Assembleia Eleitoral”
das primeiras eleições livres, as constituintes, no dia 25 de abril de 1975.
Mas, dizia eu, que por algumas vezes nos emprestou esse espaço para fazermos
pequenos espetáculos de teatro que, na prática, foi o “embrião” do que, algum
tempo depois, já na URCA, viria a ser o GITU. Os jovens da Abrunheira, neste
tempo, foram, culturalmente, muito ativos na Abrunheira e fora.
Não foi só, mas foi grande a contribuição do Saraiva da
serração para que os abrunhenses dessa época — entre 1972 e 1976 — tivessem um
envolvimento e empenhamento cultural, como nunca tinha acontecido antes, nem,
com a mesma intensidade, depois.
O intervalo dos anos que mencionei (4 anos) foram, do ponto
de vista cultural e político, na Abrunheira, ricos e, ao mesmo tempo,
explosivos. Até abril de 1974, a necessidade de descobrir, aprender e, por
consequência, de contestar, numa movimentação que tinha que ter em conta o
regime de ditadura existente.
Quarenta e quatro anos depois, em que a liberdade de
expressão e de associação, é tão natural como o ar que se respira, não é fácil
perceber as circunstâncias em nos movíamos.
Qualquer manifestação que pusesse em causa o estabelecido
pelo regime, mesmo culturalmente falando, era proibida se detetada com
antecedência, ou reprimida se só descoberta na hora, com intervenção da polícia
política do regime, a PIDE que, por mais pequena que fosse a suspeita, poderia
transformar-se em dias de detenção com interrogatórios sucessivos e, numa
grande parte das vezes, levado a sessões de tortura. Principalmente se estava
em causa a “tropa” ou a Guerra Colonial que, na altura, simplesmente se
ignorava o termo “guerra” e, muito menos, “colonial”.
A este propósito, lembro-me, por exemplo, de ter comprado uma
coleção de livros filosóficos sobre a “história das ideologias”. O vendedor, a
quem, quando tinha orçamento, ia comprando um ou outro livro, avisou-me que
aqueles, os das ideologias, eram clandestinos, ou seja; em tempos tinham sido
recolhidos pela PIDE, portanto, se andasse com eles publicamente, devia
forrá-los, de forma a não se ver o que era. Noutras ocasiões, o livreiro
Olímpio, tornou a dar-me o mesmo recado.
Até abril de 1974, os rapazes da Abrunheira, como eu,
debatiam-se com a certeza de ida para uma guerra que não queriam, fosse em
África ou noutro sítio qualquer e, disso, conversavam às escondidas na maior
parte das vezes, durante a noite, para que os riscos de sermos vistos por algum
“bufo”, fossem menores.
O 25 de abril chegou nesta fase da nossa vida (eu tinha 19
anos) e, para além de tudo o que já se disse e passou à história, mal ou bem
contada, para mim e para outros rapazes da Abrunheira, foi um alívio; já não
éramos obrigados a ir para guerra nenhuma!
O nosso trabalho cultural continuou graças à ajuda de muita
gente. Neste escrito, apeteceu-me lembrar a generosidade do Saraiva da Serração
naqueles anos da minha juventude.
Gosto de pensar que, independentemente da evolução natural da
comunidade abrunhense ou abrunheirense, homens e mulheres com nome, deixaram o
seu selo no que somos hoje, mesmo que alguns, ou algumas instituições, achem
que só eles sabem o que o povo precisa e quer.
Silvestre Brandão Félix
14 outubro de 2018
Gravura: Google