segunda-feira, 6 de julho de 2020

A BOLA, A SOCIEDADE ANTES DA URCA E OS FUNDADORES

Panorâmica da Abrunheira 

Aqui, também se jogava à bola. Pelo vale encaixado entre Santa Eufémia com a Cruz Alta e a colina do Casal da Peça com o Cabeço de Manique, bem vincado no leito do Rio das Sesmarias, quando engrossado era, pelas águas nascidas no “Penedo”, acima de Vale de Porcas; pela “Chancuda”, mesmo atrás do Chafariz da Charneca que a D. Maria, a primeira, abençoou; pela barrenta que nascia nos “Barros”, muito longe de se adivinhar a feitura de jornais e revistas que falam coisas e algumas verdades; pela enchida, até deitar por fora, Mina do Lavadouro que primeiro dava de beber a esse “Lavadouro”, primeira versão de “rede-social” cá no sítio que ainda não era “site” e, em cima, o poço da bica do Santo António, tudo paredes-meias com as Hortas do Ti Mendes dum lado e do Ti Manel da Virgínia, do outro e, lá mais à frente, vinda de cima, corre a nascida junto à Quinta do Anjinho que vem depressa e até teve honra de túnel sob o autoestrada, ao contrário da antiga e “assassinada” — porque os habitantes pouco contam e nem lhes foi perguntado o que queriam — rua da Abrunheira ligando esta, a Ranholas, por onde a minha Mãe me levou tantas vezes, para o Mercado de São Pedro e, outras, até à “Casa-da-Serra” na Tapada do Roma, onde, ao cimo da ladeira, a minha avó Cândida nos esperava enquanto a Ti Franquelina já aprontava o café que cheirava e sabia, como nunca mais, noutro lugar, encontrei.

A seguir, todas as regueiras se juntam ao Das Sesmarias a chegar aos “Quatro-Donos”, rente à “Arroteia” no fundo dos Celões que, seguindo muito tempo em anos contados, havia de ser morada de condóminos bem resguardados com o nome da “Beloura” que já não é do Chico.

Retomando a bola e indo ao ponto que me levou, hoje, a despejar letras, palavras, pontos e vírgulas por aqui afora, recuo a pouco tempo depois de finada a II Guerra Mundial, quando rolava e voava a bola de cabedal que ao ouvido soava “catechum”, autêntico luxo comparado com as bolas de muitas meias enfiadas umas nas outras e, nesse caso, ideais para jogar de pé descalço no largo da Quinta do Olival onde também se festejava a inauguração da luz elétrica na Abrunheira que, por isso, se chama “Beco da Saudade” ou no verde do Carrascal, antes do Caracol, porque lá havia carrascos com fartura. A de “catechum” era bem dura para ser rematada com botas que ainda não eram “chuteiras” com pitons, mas que os abrunheirenses do Clube de Futebol, nas solas, aplicavam umas travessas para eliminar a lisura e travar a escorregadela.

Os, “cinquenta” se foram e os “sessenta” chegaram. Na mesma cadencia que outros portugueses, vindos de outras bandas, se iam instalando nesta terra de abrunheiros e zambujeiros com fartura. O Jorge Farpela estava a deixar de defender os postes da baliza dos futebolistas da Abrunheira que, em boa verdade, se resumia a uns solteiros e casados e pouco mais, sendo, os últimos anos, jogados no campo de futebol da Colónia.

À parte da estória, convém explicar que esta designação de “Colónia”, não é de férias — neste início dos anos vinte do século vinte e um, pós troika e em plena invasão de mais um “corona-vírus” que há cem anos, um antepassado direto, batizado “pneumónica” ou “gripe-espanhola”, limpou o cebo a mais de 50 milhões de indivíduos — como podem pensar, os Abrunheirenses ou Abrunhenses com menos de 40 anos, mas sim, prisão.

Era assim o nome antigo que agora se chama, “Estabelecimento Prisional de Sintra”. Bem sei que, fazendo fé e acreditando no saber do Dicionário da Porto Editora, “estabelecimento”, pode ser uma “instituição”, como é o caso. Para mim, estabelecimento, será sempre uma mercearia, taberna, ou qualquer outra loja com montra e tudo. Aqui, neste “estabelecimento”, a montra até seria uma péssima ideia porque tudo o que o rodeia, está a cair aos bocados. Só visto, porque contado, ninguém acredita. Os prédios do bairro e todas as moradias onde habitam guardas prisionais, estão num estado de quase ruína e outras já há muito, caíram.

Bom, voltando ao Jorge Farpela. Com as botas já a pesarem-lhe, deixou-se ficar, e bem, pela colaboração na direção da “Sociedade”. Organizavam, ele e mais alguns, uns bailaricos com as imperdíveis atuações do Ti João Baleia, do jovem filho Augusto, do Adelino Baleia, do Ti Faneca  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2011/03/um-corridinho.html) e um dos seus filhos. O Jorge Farpela e o meu tio Rafael, que tantas vezes por aqui tenho escrito a seu propósito, faziam a gestão da “Sociedade” à sua maneira.

Com a chegada da televisão, a “Sociedade” passou a ter trabalho todos os dias e a presença deles os dois e mais alguns que a memória me “roubou”, era assídua. Portanto, da bola, se encarregavam outros abrunheirenses.

Antes de continuar, embora já o tenha dito e escrito muitas vezes, é importante lembrar mais uma vez — Faço o possível por referir factos e pessoas verdadeiras, mas muito tempo contado em anos já por mim passaram, pelo que, o “arquivo” já não está nas melhores condições; ou as letras estão sumidas, ou não entendo bem a caligrafia, ou as pilhas dos neurónios estão gastas, enfim, são muitas as razões que me levam a manter um antigo litígio com a “lembradura” de nomes de pessoas e lugares, levando-me a fazer umas trocas, a esquecer-me e a inventar outras. Espero que me desculpem.

Feito o “relembro”, voltamos ao futebol. À frente da baliza dos abrunheirenses futebolistas, estava, e bem consolidado no lugar, o Zé Maria. Ele, jogador na posição de guarda-redes, mas também diretor, organizador, roupeiro, massagista e treinador. O Zé Maria, nos anos sessenta, foi realmente o grande impulsionador da criação da equipa de futebol da Abrunheira, naquela época, devidamente organizada e integrada no Grupo Desportivo da Abrunheira, como muito bem me lembrou o Zé Nascimento.

O Zé Maria, casado com a Dina, filha da Ti Maria (do Florindo) e, claro, do Ti Florindo. A Ti Maria do Florindo, de quem me recordo com muita saudade, era a “alma” do “Santo António”. Mau grado o desaparecimento precoce de alguns mais próximos, era uma mulher sempre com um sorriso nos lábios. O seu filho mais novo, Zé Manel Dionísio, é muito ativo aqui, nas redes sociais, onde nos cruzamos de vez em quando.

Voltando ao futebol e recuando aos anos cinquenta, é importante referir a chegada à Abrunheira de algumas famílias oriundas de outras regiões do país, designadamente da Beira Alta. É importante porque, mais tarde, os filhos dessas famílias, principalmente e de quem me lembro, os filhos do Alexandre Nascimento; David, António e o mais novo Zé e, do Zé da Cruz, o Francisco e o tio deste, o Martins, que vão ser decisivos para, em conjunto com o Zé Maria, o Carlos Jorge, filho mais velho da Deolinda e do Ti João Tirapicos, o João Balagueiras filho mais velho do Ti Balagueiras, guarda prisional da Colónia, O Baptista, que da mais alta “estrela” também desceu, e outros, desenvolverem e consolidarem o Grupo Desportivo da Abrunheira. A propósito, da mesma região beirã e na mesma altura, chegaria e assentaria morada na Abrunheira, o Zé “Celorico” e a mulher. O Ti Zé, era “artista” sapateiro e, durante muitos anos, exerceu a sua arte correspondendo à grande procura a que o Ti Jo’quim “Cagachuva”, não dava vencimento. O apelido “Celorico” assim seria, devido à sua origem de Celorico da Beira. Este casal não tinha filhos e pela segunda metade dos anos sessenta, fui encontrar o Ti Zé e com ele convivi alguns meses, na Fábrica de Plásticos Atil, onde tive o meu primeiro emprego durante cerca de seis meses.

O nosso campo de “casa” era o “pelado” da Colónia. Naquela época, a Colónia ainda não tinha bairro residencial. Só havia uma ou outra moradia, pelo que a maioria dos guardas morava na Abrunheira, mas também no Linhó e Ranholas. Na Abrunheira moravam muitos e, boa parte, acabaram por cá ficar e mais os seus descendentes. Deste grupo de Abrunheirenses, são alguns dos meus melhores amigos até hoje. Quero com isto dizer, que havia uma forte ligação da população da Abrunheira à Colónia, daí, o ser absolutamente natural a utilização deste campo de futebol.

Já nos anos sessenta e com o desenvolvimento industrial na zona, começaram a chegar cá outros futuros futebolistas vindos do Alentejo e da Madeira.

As fábricas começaram a aparecer em Mem Martins: A Adreta, a Resiquímica, a Comportel, a Messa, etc., etc., a Sincal e a Borracha Leacok, na Abrunheira.

Do Alentejo, devido às condições de vida adversas, muitas famílias inteiras trocaram o trabalho do campo por estas novas oportunidades e aqui se instalaram com os seus filhos. Passaram pela equipa de futebol, pelo menos, vários membros da família Lagarto que seguiram as pisadas do Gilberto, o Chico Cobecas e a entrar os “setenta” o Valentim, o Vicente, o Vítor “Negrete”, o Fernando e o Zé Marques talvez um pouco mais tarde, e outros.

Da Madeira, em virtude da construção da fábrica de borracha dum industrial madeirense — Leacok Rosa, Lda — que, por escassez de mão de obra no continente, de lá, da Madeira, trouxeram alguns especialistas e operários. Vieram com as famílias e com muitos filhos.

Da Madeira, também já pelos “setenta”, lembro-me do Virgílio (Jimmy), do Eleutério (autêntico craque), dos irmãos Sousa com o Bruno na baliza, do Costa e dos Pombos.
Que não se pense que os nascidos e criados na Abrunheira, não chutavam na bola. Todos, uns mais que outros, jogavam à bola. Até eu, o Rui, o Zé Fernando, os Pardais, o Julinho, o Vítor do eletricista e, principalmente o Mário. Ele era bom de bola e foi um grande entusiasta da secção desportiva da URCA, depois acompanhado pelo irmão Paulo.

Pelos últimos dias de 1974 e primeiros de 1975, muitas conversas se desenvolveram entre vários elementos do Grupo Desportivo, lembro-me bem do Chico Cruz e do António Nascimento, e do emergente Grupo Cultural. Muita força se fez para unir os dois grupos, de forma a não dispersar o esforço e a concentrar a capacidade de organização e de trabalho, numa única coletividade.  Foi assim que nasceu a URCA—UNIÃO RECREATIVA E CULTURAL DA ABRUNHEIRA a 3 janeiro de 1975.

Por esta altura já alguns craques jogavam pelos clubes a sério da zona; 1º de Dezembro, Mem Martins Sport Clube e, acho, até no Sintrense que na altura já militava na 2ª Divisão do Campeonato Nacional. Mais tarde, na passagem da década de setenta para oitenta, apareceu outra fornada de bons futebolistas. Por essa altura, a URCA teve uma equipa de futebol nos distritais.

Na verdade, a fundação desta nova coletividade, selou a UNIÃO dos abrunheirenses socialmente mais ativos.

São estes os fundadores da URCA. Onde andarão eles? Alguns, mais ligados ao futebol, conseguem encontrar-se e confraternizar, pelo menos uma vez por ano, mas… e os outros, os que não jogavam futebol, onde estão?

Há uns anos, garantiram-me e eu acreditei, que todo o acervo escrito de, pelo menos, duas décadas, desde a fundação, tinha desaparecido. Dezenas ou centenas de fotos, correspondência, livros de atas e outros documentos importantes da URCA e do projeto do Centro Social, ou seja, a história da coletividade e o legado dos fundadores, tinham sido “apagados”!

Esta época pandémica, completamente anacrónica, faz-nos refletir sobre a pouca valorização que atribuímos a coisas importantes da nossa vida. Só mais para a frente, damos conta disso.

O papel que tivemos naquele tempo, os desportistas e os mais dados à cultura e recreio, fundando e organizando a URCA e projetando e construindo os alicerces do Centro Social que, infelizmente, nunca avançou, foi muito importante, mas hoje, pouco ou nada resta!

Silvestre Brandão Félix
6 julho de 2020




sábado, 13 de junho de 2020

ALCACHOFRAS, CERRADO DA FONTE E O SANTO, O ANTÓNIO

Alcachofras no Cerrado-da-Fonte
Abrunheira - 06jun2020
Fosse eu conservador dum registo predial qualquer, e rebatizaria o “Cerrado da Fonte” para “Cerrado das Alcachofras”. Foi, “…da fonte”, que me ensinaram chamar-lhe ainda antes de roçar os fundilhos das calças, nas “carteiras” da antiga Escola da Abrunheira, mas devia ser “…das alcachofras”, tantas são, pela altura dos “santos” — sem respeitarem o distanciamento social nestes tempos dos “vinte” do “vinte-e-um” — no “Cerrado da fonte” e em tantos outros “cerrados” das bordas do nosso amigo “Rio das Sesmarias”.

Tantas vezes ouvi este nome, “Cerrado da Fonte” que, muito embora o meu eterno litígio com este lado do arquivo que guarda os nomes das coisas, sítios e pessoas, mil anos que viva, nunca o hei de esquecer. Ainda por cima, estava logo a seguir à “horta” por onde tantas vezes passava e passeava, umas vezes sozinho, outras acompanhado. Do lado de lá, estava (e está) o tanque de rega onde morava o meu Cágado “Manel”, pomposo nome para tão “rebaixado” ser, mas que eu adorava e ele a mim (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html ), como noutros escritos eu tenho deixado bem vincado.   

Todos os dias, pelas mais variadas razões, ouvia alguém falar no “Cerrado da Fonte”. Muitas vezes, tantas quantas um “puto” daqueles anos 50/60 do antigo século vinte, numa boa terra como a abrasileirada — por via das aventuras do Coutinho que era Bernardino e do Borrego que não era Sacadura — Abrunheira, tinha tino e curiosidade para perguntar, porque raio lhe chamavam “fonte”, se não havia por lá nenhuma? Bom, na verdade, ainda hoje o mistério, para mim, se mantém. Sempre que por lá passo, repito, mentalmente, a pergunta; porquê, “…da fonte”? Onde esteve a fonte?

Naquele tempo também havia, com certeza, alcachofras, no Cerrado da Fonte. Só que, aquela área, tinhas outras ocupações por esta altura do ano, antes de se transformar em “eira” para debulha e enfardamento dos cereais do Silvestre-Velho e do “Sapateiro-de-Manique” trazer o rebanho para pisar bem a terra e de comer, que muito bem lhe sabia, as batatas com bacalhau que a minha avó Gertrudes fazia naquela ocasião; “oh patroa, o que pôs nas batatas que elas escorregam que é uma beleza”? Repetia do “Sapateiro-de-Manique”, enquanto metia à boca, garfadas atrás de garfadas de batatas e bacalhau.  

Antes disso, havia seara de trigo, cevada ou aveia, ondulada pelo vento que ali batia e bate e, por isso, as ditas alcachofras não sobressaíam porque serpenteavam por entre os caules que engrossavam e já formavam a espiga que, numa quinta-feira da “Ascensão”, se haviam juntado, num raminho, a lindas  papoilas vermelhas, malmequeres, outras belezas campestres e um triângulo de pão, para casa levado, ficando a fartura de comer garantida até ao ano seguinte.   
  
O forno de cal também estava calado. Nesta altura, este, descansava da sua labuta mais para o tempo frio que de calor, já bastava o braseiro da fornalha a muitos graus de temperatura para transformar pedra em alva cal. 

Neste dia 13 de junho, celebra-se o primeiro dos santos, o “António”, que é também o da Abrunheira. Por todo o lado, a “pandemia” lixou tudo, incluindo as comemorações dos Santos Populares, mas as alcachofras é que não se importam com isso. Com vírus, ou sem ele, elas aí estão para que não nos esqueçamos que é junho, a passagem para o verão.   

Silvestre Brandão Félix
13 junho de 2020

sábado, 14 de março de 2020

INTELIGENTES, SABICHÕES E O NOVO CORONAVIRUS


Estou completamente banzado com a quantidade de pessoas que a toda a hora aparecem, sabedoras e com inteligência suficiente para erradicar a pandemia.

Mas, ainda mais, segundo estes “inteligentes”, o vírus nunca teria cá chegado, porque eles, os “sabichões”, tinham derrubado todos os obstáculos para aplicarem essas “sagradas” medidas infalíveis.

Tanta sabedoria perdida… como é possível que os governantes deste país não reparem neles?

Silvestre Brandão Félix    
14 março de 2020 – Época da pandemia
Gravura: Google