terça-feira, 13 de março de 2018

ENCAVALITADOS NOS SONHOS E AS LUVAS GRANDES


Impressionado ficava com aquelas grandes luvas vermelhas que, o homem de macacão azul, nas mãos enfiava depois de as ter retirado dum compartimento debaixo da cabine do enorme camião-cisterna da “Sacor”.

Depois puxava uma mangueira negra que na ponta tinha uma espécie de torneira que se ia desenrolando dando comprimento para o homem das luvas e de macacão, se encaminhar para o interior da mercearia do Álvaro e da Ti Lourdes.

Com o tempo fui percebendo que, do mistério, resultava o abastecimento de petróleo que, depois, íamos lá comprar para pôr nos candeeiros e no fogareiro, evidentemente dito; “fogareiro a petróleo”.

A Ti Augusta tinha um garrafão mais pequeno que servia para isso e, com o tempo que contávamos em anos, comecei, entre outras coisas, a trazer o petróleo do Ti Álvaro. Não sei qual era a quantidade do precioso líquido, mas, muitas outras coisas, eram às “quartas” (0,250 Lt ou 0,250 Kg); uma quarta de manteiga, uma quarta de banha, uma quarta de café (cevada), etc., etc.

O Camião do petróleo era branco e verde com “SACOR” escrito a grandes letras vermelhas ao longo da cisterna.

Os putos abrunheirenses como eu; o Rui, o Zé Augusto, o Zé Fernando, o Zé Eduardo, o Meno Caravaca, o Fernando Pedroso, o Mário, o Julinho, o Vitor do Eletricista, e outros que a memória levou, sabiam destas coisas e pelo Largo do Chafariz todos passavam.

Não sei se o camião da sacor os impressionava como acontecia comigo, mas que também não lhes era indiferente, isso, eu sei, porque muitas vezes acompanhado estava, na inspeção que lhe fazíamos.

Tem dias, que nos lembramos de coisas que só aparecem porque nos chegam encavalitados nos sonhos.

Silvestre Brandão Félix
13 março de 2018
Foto: Camião-cisterna da “SACOR” (google)  

quinta-feira, 8 de março de 2018

BOA VIAGEM, SINTRA E OUTRAS PARAGENS


Naquele tempo a “Boa Viagem” levava-nos diretamente até Sintra em 10 minutos e, a “Palhinha”, demorando mais ou menos o mesmo, até à estação de Algueirão-Mem Martins.

Nem nos apercebíamos a que distância estava o comboio, mas era muito perto.

Estávamos no rescaldo da revolução, muito atrasados em relação a tudo o que, finalmente, descobríamos existir por esse mundo fora.

A muitos anos de distância dos computadores, telemóveis e outras modernices, mas, em dez minutos, várias vezes por dia, podíamos utilizar os transportes públicos para rapidamente chegarmos a Sintra ou, simplesmente, ao comboio que nos levava a outras paragens.

Silvestre Brandão Félix
8 março de 2018

terça-feira, 6 de março de 2018

CÁGADO QUE NAQUELA ÉPOCA SE CHAMAVA MANEL

Cágado Mediterrânico

Aquele dia de quaresma, nascia com borriceira “molha-parvos”, e molha os outros também, digo eu. Não se tinha ficado, a borriceira, pela Serra. Desceu à Abrunheira, até ao lugar-de-baixo e mesmo ao “Caracol”.

Que o diga o Coutinho que era Bernardino que, ainda “lusco-fusco”, esticou a cabeça pelo postigo da porta da cozinha, como sempre fazia ao levantar-se, e logo sentiu o borriço na cara que, em boa hora, substituiu a ida matinal à bacia de esmalte, para, com dois dedos da mão direita, chapinhar na água gelada, diligentemente colocada pela Judite antes de se deitar, e esfregar, devagarinho, os dois olhos que a terra lhe havia de comer.    

Na certa, seria mais um dia igual aos outros daquele mês, fazendo jus ao ditado que muito se dizia e se ouvia: “Março, marçagão, de manhã inverno e à tarde, verão!”. Ou seja, ele, o dia, acordava molhado, mas, a pouco-e-pouco, ia abrindo e, ainda antes do almoço, estava limpo e solarengo.

A primeira quinzena de março anunciava a primavera e, já no dia anterior, a Judite lhe tinha dito, ter visto andorinhas a esvoaçar pelo lado do Peixoto, que é onde têm ninhos na varanda. O mesmo teria sido reparado pelo patriarca “Simão”, de negro brilhante e lindo bico alaranjado, e pela sua companheira, matriarca “Micas”, de negro menos brilhante quase castanho, e também bonito bico, mas amarelo, que, ao contrário do que os dois fazem durante o outono e inverno, desde há uns dias, já não passam a noite no cedro do muro, onde apanham os primeiros raios do sol nascente.

Quando as andorinhas chegam, eles, os dois inseparáveis, costumam passar mais tempo no cedro do lado do “zambujeiro” onde, durante duas ou três semanas, trabalham que nem uns desalmados, reabilitando o ninho do ano anterior nos “carrascóides” mais altos para, quando chegar a altura, ela lá pôr os ovinhos cinzentos quase azuis, donde, uns tempos depois, sairão os filhotes que, crescidos, aumentarão a família residente fixa de três casais ou, então, novos melros ao mundo darão, para outras paragens. Os outros dois casais, correspondem a duas fêmeas filhas do Simão e da Micas que, juntando os trapinhos com dois outros machos de fora, regressaram ao acolhimento dos seus pais e por aí têm feito a vida.

Tem dias que aparecem outros, mas, só vêm de visita. Sabe o Caracol, que, de entre esses outros casais, vem com alguma frequência, um também diferente. O macho, tem o bico com um tom alaranjado mais carregado, quase vermelho e, a fêmea, do seu lado direito a seguir ao bico bem amarelo, trás um conjunto de penas ou penugem, quase brancas. São inconfundíveis. Acha o Caracol que eles também o conhecem bem e que, se o Simão e a Micas não estivessem cá, eles ficariam por aí a fazer-lhe companhia.  

De todas estas andanças, é sabedor o Caracol Velho que, em virtude da constante presença a três, desde que por ali apareceram aquelas lindas criaturas, os olhares e rotinas ocorrem como se fossem bons entendedores da mesma espécie.

As dobradiças já andam um bocado ferrugentas e, as botas, já lhe pesam muito, de maneira que, boa parte do dia, de cachimbada sempre ativa e fumegante, senta-se no banco à entrada do alpendre, bem abrigado da aragem corrente e com o sol a bater-lhe só nos pés e nas pernas, reparando e apreciando tudo o que se passa com a “passarada”. Foi ele que batizou o casal de melros que, adora. Na brincadeira disse à filha Judite e, ela, nunca mais deixou de falar do Simão e da Micas, como se da casa fizessem parte.

Quando estão à vista, vão reagindo conforme ele se senta ou se levanta, anda ou está parado, acende o cachimbo, levanta o sacho ou o poisa. Todos os movimentos têm uma resposta. Mais interação têm os dois, mas o Simão primeiro, quando o Caracol ou mesmo a Judite, metem pevides, cevada, milho ou trigo num vaso de barro que está, para o efeito, encostado ao muro antes do portão de baixo. Ele, o Simão, deixa passar um bocado para dar tempo a que se afastem e esvoaça logo direto ao vaso. Ela, a Micas, também voa na mesma direção, mas só vai ao vaso quando o Simão, sai. Raramente ficam os dois juntos no vaso. Curiosamente, nenhum dos outros melros, que alguns serão filhos, filhas ou netos do Simão e da Micas, vão ao vaso, mesmo que lá tenha alguma coisa.

Eles, naquele dia logo cedo, ainda antes do Caracol aparecer, observaram o Bernardino que não é Coutinho que, alheio a toda esta vivência, depois de ter esfregado os olhos e emborcado as sopas de “cavalo-cansado” que a Judite lhe preparou, saiu porta fora, coberto com o oleado para não se molhar e rumou ao lugar de acima como era costume, para laborar mais um dia na abertura da vala que havia de transportar a água para as casas dos abrunhenses. O Simão e a Micas, como acontece quase todos os dias, miraram os passos pesados do marido da Judite, até aos zambujeiros acima das “Pateiras”. Há uns meses que o Coutinho que era Bernardino andava nisto e, o grande buraco, ainda estava agora a sair do Largo do Chafariz e a chegar ao João de Leião. Muita terra e muita pedra aqueles fortes braços removeram, desde que, de picareta ao alto, se decidiu por este trabalho.

Perto do almoço, paredes-meias com o Rio-das-Sesmarias antes de passar debaixo da ponte da Colónia, na horta, gozando os prazeres da água quase corrente que, alcatruzes abaixo e acima à custa das rodadas que a “Carocha” dava à volta do poço, o Manel, que naquela época era cágado, bem sossegado na beira do tanque, esperançado em apanhar uns minutos de sol por cima da borriceira da manhã, levantou devagarinho a cabeça, para olhar bem nos vivos olhos dos melros mais bonitos que alguma vez tinha conhecido.

E as bonitas aves, ele e ela, beberam água no tanque e, o Manel, que naquela época era cágado, observou, seguro e contente a presença daqueles dois. Junto a ele, no tanque, vinha este casal de melros, pintassilgos, rolas, pitinhas e até pardais de telhado. Ele gostava!

Quando o puto, “atirado” a hortelão lá ia, ele, simulava mergulhar, mas, conhecendo-lhe a bondade da companhia, não o fazia e até se deixava pegar e olhava nos olhos do puto que se ria a “bandeiras-despregadas”.

O Manel, que naquela época era cágado, gostava do puto e sabia do Caracol e da sua filha Judite. Sabia, que lá, no fundo do lugar-de-baixo onde eles moravam, a paz reinava no coração deles. Até o Coutinho que era Bernardino, rude e bruto nos seus modos, era do bem. Outros eram do mal e o cágado Manel, sabia.

Ele, o Cágado, que naquele tempo se chamava Manel, não via televisão, não lia jornais nem revistas, não tinha internet e, por incrível que pareça, nem Facebook, mas sabia tudo. A Abrunheira não tinha segredos para ele, mas como? Sendo o Manel, naquela época, cágado, como poderia saber das promessas não cumpridas e das mentiras constantemente metidas?

Oh inteligência! Então e o que iam fazer os melros, os pintassilgos e a outra pardalada, todos os dias, à beira do tanque da horta?

Silvestre Brandão Félix
6 de março 2018
Foto: Cágado Mediterrânico (Google)
(Escrito ficcionado. Alguns nomes e locais reais, outros não)