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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O LIXO, A MULHER E A POBREZA ENVERGONHADA

 

Rio das Sesmarias Junto à Ponte na Abrunheira
Pelos zambujeiros e oliveiras, abrunheiros e mulatas, cedros e choupos, caminhos e curvas que começam a ficar debruados de ricos carrascos porque de muita bolota lhe pesarão, e os silvados que, com a chegada das andorinhas, coloridos de amoras se hão de encher, que antes, mas mesmo muito antes, foi território do melro “Simão” e da melra “Micas” que, na idade do Caracol Velho, sua filha Judite e genro Coutinho que era Bernardino, voavam e controlavam a zona.

Agora, muitas gerações para a frente, lindos melros, melras e suas proles, lhes fazem honras e se apresentam em enchentes, quase bandos, chilreando desde que o Sol desponta nestas terras ao fundo do Caracol, do Peixoto, do João da Batata, do Azevino e da Arroteia.

Por ali, pela Gago Coutinho que é mesmo Coutinho em homenagem ao Bernardino da Judite, abeirei-me do nosso amigo Rio das Sesmarias —"bem-aventurado” confessor e adivinho da nossa Terra que, por estes dias, corre de (barriga) água cheia com pressa de chegar à Azenha do Ti Sebastião — para nos dizer as últimas parangonas do jornal da caserna.

Não disse, mas soprou-me que os caixotes do lixo andam muito remexidos.

— Remexidos?

Interroguei eu! Que quereria o meu amigo dizer? Eu só pensei, mas ele adivinhou a dúvida, e voltou a soprar-me ainda mais forte que mais parecia a volta da “nortada”

— Têm umas varetas com um gancho na ponta e remexem… remexem… até encontrarem alguma coisa que se coma.

— O quê, será que percebi bem?

E pela “nortada” insistiu

— Sim! Percebeste bem, sim! Andam à procura de comer. Naturalmente que sempre acabam por ir outras coisas que as pessoas atiram para o lixo, mas é a necessidade de encher a barriguinha, que os leva a procurar nos caixotes aquilo que não têm nas despensas.

Aí, certificando-me que não havia mais ninguém por perto, perguntei em voz alta:

— Oh! Meu amigo Rio das Sesmarias, partindo do princípio de que me entendes bem, diz-me: São sempre os mesmos? E quantos são?

— Alguns vêm sempre de manhã cedo e ao lusco-fusco, outros vêm às vezes e, há uma mulher também. Esta, muito vestida e quase toda tapada, é difícil ver-se-lhe o rosto.

— Uma mulher? Pois é Amigo Rio das Sesmarias, são tempos de pobreza e muita, é envergonhada.

— Juro, por esta água que há de chegar à costa do Estoril em São Pedro, que nem no tempo do Caracol Velho, do Simão e da Micas, havia assim tanta pobreza de comidinha.

— Tens razão Amigo, a pobreza era outra. Mesmo assim, para comida e outras coisas de primeira necessidade, hoje há alternativas aos caixotes do lixo. As famílias com estas carências podem contactar a Junta de Freguesia em São Pedro pelo telefone 219 105 810, em Sintra 219 100 390 ou mail:  acaosocial@uniaodasfreguesias-sintra.pt .

O meu Amigo Rio das Sesmarias, ficou confortável com esta dica e agora corre bem cheiinho direito à Azenha que já foi do Ti Sebastião (moleiro).

Silvestre Brandão Félix

26 de fevereiro de 2021    

sábado, 23 de novembro de 2019

UM PONTEIRO, S. MARTINHO E A ÁGUA-PÉ


Se eu fosse um ponteiro de relógio… a volta completa tinha dado… o Bernardino que não era Coutinho, no mesmo sentido e pelos mesmos caminhos, também, muitas voltas, deu.

Por esta altura do ano, com o suave aroma da “água-pé” do Pena, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/11/sao-martinho-e-agua-pe-do-pena.html) o nosso “Cientista-da-Pedra”, muitos S. Martinho’s comemorou. Dali, da “pedreira do Ti Miguel” — onde, exatamente, neste dezanove do XXI, existe um ótimo campo de jogos a nascente dum lindíssimo verde parque — o Bernardino que não era Coutinho, muito fiel ao ditado, “No São Martinho vai à adega e prova o vinho”, não provava o vinho, porque esse, já o emborcava o ano todo. Especialmente no dia de São Martinho, em vez de vinho, intervalava a labuta na “pedreira” e ia provar e bem beber, a afamada “água-pé” do Pena.

Rio das Sesmarias (Foto minha-5.11.2019)
Logo que, bem de manhã, passava pelo amigo e companheiro Rio das Sesmarias, nesta altura do ano, bem aviado estava de água das chuvas e das nascentes a montante, o motivo da conversa era a “água-pé” do Pena.

 Até antes disso, quando ao sair de casa e no mesmíssimo momento em que o melro “Simão” e a sua companheira “Micas”, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html)batismo feito a meias, pelo seu sogro Caracol Velho e filha Judite — chegavam ao poiso habitual dando-lhe os bons dias com o característico “pianço”  e desejando-lhe um ótimo dia de São Martinho, já aí, a última parte, era pura imaginação, mas a sede da “água-pé” era tanta, que até lhe soube mal o vinho que a Judite, misturando com pão duro que nem os cornos do carneiro Baltazar, transformou em “sopas de cavalo cansado”.

O Caracol Velho reivindicava a exclusividade da interação com os melros, mas sem o “velho” saber, o Coutinho que era Bernardino foi conseguindo meter-se naquela “conversa”. Depois, uma parte, o simpático casal piava como lhe apetecia, a outra parte, o Coutinho que era Bernardino, punha a sua singular imaginação a trabalhar e, do Simão e da Micas, passava a ouvir o que muito bem queria. Naquele dia, de São Martinho, achou que estavam sintonizados com a sede de “água-pé” que ele tinha.

Se eu fosse um “ponteiro de relógio”, às oito horas, tinha atravessado a Arroteia — que continua combinada com as letras do alfabeto e numerais simples — de nascente para poente até ao das Sesmarias, paredes-meias, ou melhor, Rio-meias com a Beloura, que não a do Chico, no tempo do Coutinho de era Bernardino. No sentido do “ponteiro”, lá está o início da rua que o homenageia; Rua Gago Coutinho! Como havia ele de saber que muito tempo contado em anos lá para a frente, alguém se havia de lembrar porque chamaram Brasil, à Abrunheira. Porque foi ali, por cima das “Pateiras”, que um dos Zambujeiros mais altos, serviu de rampa de lançamento para — querendo imitar o feito do Gago Coutinho e Sacadura Cabral voando até ao Brasil — aproveitando uma “rabanada” de vento, iniciarem o memorável voo. Só que, em vez de voarem, escaqueiraram-se os dois do chão.
  
Pois bem, seguindo o sentido do “ponteiro” e pela da Colónia acima, à moderníssima Urbanização das Sesmarias, cheguei. Muito ali calcorreou o Coutinho que era Bernardino dando voltas e mais voltas pela pedreira do “Ti Miguel” que ali, cheia de entulho, foi!

Rua das Sesmarias, subindo a partir do Rio (Foto minha - 5.11.2019)
Com a devida vénia ao Rio das Sesmarias por cima dele passei com a lembrança do Ti Joaquim da fruta e começando a subir a rua a que o Rio também deu o nome. Tantas tropeça-delas o Coutinho que era Bernardino, por ali deu. A ânsia de chegar à Menina Emília ou lá acima ao Faial, para molhar a garganta, atrapalhavam-lhe o andamento, mas, neste dia, do que falamos é da “água-pé” do Pena. Pois bem, subindo a rua, à esquerda o Cipriano no Serrado do Penedo e à direita, o beco para a casa do Pena. Era lá, naquele dia de São Martinho, que “morava” a melhor “água-pé” da Abrunheira, deste mundo e arredores.

Muitas voltas de relógio que nem ponteiro, se podem dar, pisando as mesmas pedras do abrunhense que tinha a “Ciência-da-Pedra” — O Coutinho que era Bernardino.


Silvestre Brandão Félix      
23 novembro de 2019

terça-feira, 6 de março de 2018

CÁGADO QUE NAQUELA ÉPOCA SE CHAMAVA MANEL

Cágado Mediterrânico

Aquele dia de quaresma, nascia com borriceira “molha-parvos”, e molha os outros também, digo eu. Não se tinha ficado, a borriceira, pela Serra. Desceu à Abrunheira, até ao lugar-de-baixo e mesmo ao “Caracol”.

Que o diga o Coutinho que era Bernardino que, ainda “lusco-fusco”, esticou a cabeça pelo postigo da porta da cozinha, como sempre fazia ao levantar-se, e logo sentiu o borriço na cara que, em boa hora, substituiu a ida matinal à bacia de esmalte, para, com dois dedos da mão direita, chapinhar na água gelada, diligentemente colocada pela Judite antes de se deitar, e esfregar, devagarinho, os dois olhos que a terra lhe havia de comer.    

Na certa, seria mais um dia igual aos outros daquele mês, fazendo jus ao ditado que muito se dizia e se ouvia: “Março, marçagão, de manhã inverno e à tarde, verão!”. Ou seja, ele, o dia, acordava molhado, mas, a pouco-e-pouco, ia abrindo e, ainda antes do almoço, estava limpo e solarengo.

A primeira quinzena de março anunciava a primavera e, já no dia anterior, a Judite lhe tinha dito, ter visto andorinhas a esvoaçar pelo lado do Peixoto, que é onde têm ninhos na varanda. O mesmo teria sido reparado pelo patriarca “Simão”, de negro brilhante e lindo bico alaranjado, e pela sua companheira, matriarca “Micas”, de negro menos brilhante quase castanho, e também bonito bico, mas amarelo, que, ao contrário do que os dois fazem durante o outono e inverno, desde há uns dias, já não passam a noite no cedro do muro, onde apanham os primeiros raios do sol nascente.

Quando as andorinhas chegam, eles, os dois inseparáveis, costumam passar mais tempo no cedro do lado do “zambujeiro” onde, durante duas ou três semanas, trabalham que nem uns desalmados, reabilitando o ninho do ano anterior nos “carrascóides” mais altos para, quando chegar a altura, ela lá pôr os ovinhos cinzentos quase azuis, donde, uns tempos depois, sairão os filhotes que, crescidos, aumentarão a família residente fixa de três casais ou, então, novos melros ao mundo darão, para outras paragens. Os outros dois casais, correspondem a duas fêmeas filhas do Simão e da Micas que, juntando os trapinhos com dois outros machos de fora, regressaram ao acolhimento dos seus pais e por aí têm feito a vida.

Tem dias que aparecem outros, mas, só vêm de visita. Sabe o Caracol, que, de entre esses outros casais, vem com alguma frequência, um também diferente. O macho, tem o bico com um tom alaranjado mais carregado, quase vermelho e, a fêmea, do seu lado direito a seguir ao bico bem amarelo, trás um conjunto de penas ou penugem, quase brancas. São inconfundíveis. Acha o Caracol que eles também o conhecem bem e que, se o Simão e a Micas não estivessem cá, eles ficariam por aí a fazer-lhe companhia.  

De todas estas andanças, é sabedor o Caracol Velho que, em virtude da constante presença a três, desde que por ali apareceram aquelas lindas criaturas, os olhares e rotinas ocorrem como se fossem bons entendedores da mesma espécie.

As dobradiças já andam um bocado ferrugentas e, as botas, já lhe pesam muito, de maneira que, boa parte do dia, de cachimbada sempre ativa e fumegante, senta-se no banco à entrada do alpendre, bem abrigado da aragem corrente e com o sol a bater-lhe só nos pés e nas pernas, reparando e apreciando tudo o que se passa com a “passarada”. Foi ele que batizou o casal de melros que, adora. Na brincadeira disse à filha Judite e, ela, nunca mais deixou de falar do Simão e da Micas, como se da casa fizessem parte.

Quando estão à vista, vão reagindo conforme ele se senta ou se levanta, anda ou está parado, acende o cachimbo, levanta o sacho ou o poisa. Todos os movimentos têm uma resposta. Mais interação têm os dois, mas o Simão primeiro, quando o Caracol ou mesmo a Judite, metem pevides, cevada, milho ou trigo num vaso de barro que está, para o efeito, encostado ao muro antes do portão de baixo. Ele, o Simão, deixa passar um bocado para dar tempo a que se afastem e esvoaça logo direto ao vaso. Ela, a Micas, também voa na mesma direção, mas só vai ao vaso quando o Simão, sai. Raramente ficam os dois juntos no vaso. Curiosamente, nenhum dos outros melros, que alguns serão filhos, filhas ou netos do Simão e da Micas, vão ao vaso, mesmo que lá tenha alguma coisa.

Eles, naquele dia logo cedo, ainda antes do Caracol aparecer, observaram o Bernardino que não é Coutinho que, alheio a toda esta vivência, depois de ter esfregado os olhos e emborcado as sopas de “cavalo-cansado” que a Judite lhe preparou, saiu porta fora, coberto com o oleado para não se molhar e rumou ao lugar de acima como era costume, para laborar mais um dia na abertura da vala que havia de transportar a água para as casas dos abrunhenses. O Simão e a Micas, como acontece quase todos os dias, miraram os passos pesados do marido da Judite, até aos zambujeiros acima das “Pateiras”. Há uns meses que o Coutinho que era Bernardino andava nisto e, o grande buraco, ainda estava agora a sair do Largo do Chafariz e a chegar ao João de Leião. Muita terra e muita pedra aqueles fortes braços removeram, desde que, de picareta ao alto, se decidiu por este trabalho.

Perto do almoço, paredes-meias com o Rio-das-Sesmarias antes de passar debaixo da ponte da Colónia, na horta, gozando os prazeres da água quase corrente que, alcatruzes abaixo e acima à custa das rodadas que a “Carocha” dava à volta do poço, o Manel, que naquela época era cágado, bem sossegado na beira do tanque, esperançado em apanhar uns minutos de sol por cima da borriceira da manhã, levantou devagarinho a cabeça, para olhar bem nos vivos olhos dos melros mais bonitos que alguma vez tinha conhecido.

E as bonitas aves, ele e ela, beberam água no tanque e, o Manel, que naquela época era cágado, observou, seguro e contente a presença daqueles dois. Junto a ele, no tanque, vinha este casal de melros, pintassilgos, rolas, pitinhas e até pardais de telhado. Ele gostava!

Quando o puto, “atirado” a hortelão lá ia, ele, simulava mergulhar, mas, conhecendo-lhe a bondade da companhia, não o fazia e até se deixava pegar e olhava nos olhos do puto que se ria a “bandeiras-despregadas”.

O Manel, que naquela época era cágado, gostava do puto e sabia do Caracol e da sua filha Judite. Sabia, que lá, no fundo do lugar-de-baixo onde eles moravam, a paz reinava no coração deles. Até o Coutinho que era Bernardino, rude e bruto nos seus modos, era do bem. Outros eram do mal e o cágado Manel, sabia.

Ele, o Cágado, que naquele tempo se chamava Manel, não via televisão, não lia jornais nem revistas, não tinha internet e, por incrível que pareça, nem Facebook, mas sabia tudo. A Abrunheira não tinha segredos para ele, mas como? Sendo o Manel, naquela época, cágado, como poderia saber das promessas não cumpridas e das mentiras constantemente metidas?

Oh inteligência! Então e o que iam fazer os melros, os pintassilgos e a outra pardalada, todos os dias, à beira do tanque da horta?

Silvestre Brandão Félix
6 de março 2018
Foto: Cágado Mediterrânico (Google)
(Escrito ficcionado. Alguns nomes e locais reais, outros não)
   

sábado, 11 de novembro de 2017

SÃO MARTINHO E A ÁGUA-PÉ DO PENA

Naquele onze de novembro de mil novecentos e “troca-o-passo”, o Coutinho que era Bernardino saiu do Caracol, onde morava com a Judite, com o sol ainda escondido. Tinha engolido as “sopas-de-cavalo-cansado” mais depressa que o costume, para evitar que a Judite Caracoleta metesse conversa, por antecipação ao previsível bem-bebido final de dia, que era de São Martinho.

Ele foi p’rá pedreira do Ti Miguel como de costume e, porque era “cabouqueiro e tinha a ciência da pedra” — a toda a hora o dizia e, principalmente, quando de charretes e ciganas, já estava bem aviado — tinha que, também naquele dia, honrar a profissão e arte que tanto gosto e felicidade lhe têm dado ao longo de toda a vida. 

Na ida, de manhã, entrando no alcatrão e depois do Santo António, do Espanhol e do Silvestre Velho, costumava meter à esquerda a seguir ao Rafael-Coxo, junto à casa da fruta do Pechincha, continuava juntinho ao Amigo Rio das Sesmarias e atravessava-o no sítio do costume, lá, ao fundo do caminho do Cipriano, entre a Horta do Manel Lopes e a casa do Ti Joaquim da fruta.

Mas, naquele dia, a primeira pessoa que viu foi o J’oquim Cagachuva, antes do Santo António e, no Rafael Coxo, não virou à esquerda e seguiu até ao Largo do Chafariz, desviando-se de dois gansos do Ti Veríssimo que, de pescoços esticados e bicos assanhados na direção dele vinham. Saudou o Tavinho que, àquela hora, dava água às vacas, no chafariz.

Depois, resistindo à tentação de ir dizer “bom-dia” ao Álvaro, contornou a casa do meu Tio António que, com o Chico, tinha acabado de ordenhar as ovelhas, e, quase esbarrando com a Ti Maria Ferreira, foi pela travessa do Ti Miguel passando e recebendo uma grande saudação do Guilherme barbeiro, que estava a sair de casa para ir para a sua, barbearia, em Ranholas.

Praticamente ao mesmo tempo, mas do lado direito, saía a Menina Emília, que tinha quase pronta a abrir, a nova taberna naquela esquina. Admirados também por verem o Coutinho que era Bernardino, ali aquela hora, a Ofélia e o Albino, que saiam de casa, saudaram-no com satisfação. Ao fundo, ainda cumprimentou o Ti Abílio, pai do Zé Fernando e, em passo acelerado, foi pelo caminho do Cipriano abaixo, passando em frente da travessa do Pena, à esquerda, só para sentir o cheirinho daquele delicioso líquido que, mais tarde, havia de provar.

O Coutinho que era Bernardino, cabouqueiro, e que tinha a “ciência da pedra”, não resistiu o dia todo. Ao meio-dia, já estava à porta do Pena. Para não se sentir sozinho, já lá estavam outros, ansiosos pela prova, como ele.

Entretanto, sem ter explicação para tal, a Judite Caracol (eta), só ao fim da tarde se apercebeu da especificidade daquele dia. Pois, se, nem nos dias normais o Coutinho que era Bernardino precisava de incentivos ou pretextos para meter muito vinho pela goela abaixo, como é que não o havia de fazer no dia de São Martinho?

Meteu as mãos à cabeça, disse meia-dúzia de impropérios que até o Velho Caracol se eriçou todo e, ainda de mãos na cabeça, saiu porta-fora com o lusco-fusco de novembro, bem instalado.

A dúvida do costume, baralhava o pensamento da Judite Caracol(eta); por onde ia começar?

Começou pelo Álvaro. “Como-quem-não-quer-a-coisa”, espreitou lá para dentro. Dum lado para o outro, dentro do balcão, andava o Ti Álvaro, com a caneta pendurada na orelha, via e ouvia alguns clientes, mas, de Coutinho que era Bernardino, nada! De mansinho, foi pela direita à frente do Frouxo, curvou e, logo ali, a Ti Celeste Pardal(a) com dois rebentos agarrados ao avental. Pergunta daqui e dacolá, mas despachou-se depressa e a tempo de não ter que falar à mulher do Dinisinho que vinha a sair de casa naquela altura.

Chegada ao Osvaldo ou Faial ou Ramos, fez a mesma cena do Álvaro, mas o marido continuava a não estar lá. Estava a ficar preocupada e não se lembrava da famosa água-pé do Pena. Para não ir pelo mesmo sítio, deu a volta pela curva e enfiou em direção à Quinta do Olival. Passou-a e, quando estava em frente ao Casal de Santo António, quem havia de estar logo ali a conversar; o Ti Abílio e o Sigamó. Muito admirados de verem a Judite ali, perguntaram-lhe se precisava de alguma coisa. A Judite um bocado a medo e com muita vergonha, disse-lhes que não sabia do marido.

— O Coutinho que é Bernardino?

— Sim! Quem havia de ser? Não tenho outro!

— Tá no Pena! (Disse o Ti Abílio.)

— No, Pena? Mas? Ah! Pois é! Na água-pé? (perguntou a Judite)

— Sim! Isso mesmo!

— Ai, valha-me Deus, deve estar bonito, deve!

Ainda ia a meio da travessa e já ouvia homens a falar e, entre eles, conheceu a voz do marido. Estava com medo e com muita, muita vergonha. Mas, assim que meteu a cabeça dentro da adega, recebeu logo um “Benvinda” do Pena e, olhando para trás, o Coutinho que era Bernardino, todo feliz, desatou: Chega-te cá mulher, anda cá provar estas castanhas e esta água-pé do Pena.

Para grande admiração da Judite, o Coutinho que era Bernardino, não estava a arrastar a voz nem cambaleava. Estava contente sim, mas muito afinado para um dia de São Martinho que, fosse ela muito crente, teria acreditado ser milagre do Santo. Ele depois contou-lhe que almoçou lá e continuaram sempre a petiscar. Não deu para ficar de “caixão-à-cova” como acontecia tanta vez. A água-pé do Pena era tão boa que a Judite levou uma garrafa para o Caracol Velho provar.

Por estes dias do ano, todos os abrunheirenses amantes da boa pinga, percorriam várias vezes o caminho do Cipriano, guiados pelo inigualável aroma da “água-pé” do Pena. Nesta altura, faziam jus ao provérbio popular — “No São Martinho, vai-se à adega e prova-se o vinho” — e a “água-pé” do Pena, digo eu!

Silvestre Brandão Félix
11 novembro de 2017

Foto: Lenda do S. Martinho (Google)

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

AZENHA, CAPA ROTA, MANIQUE DE CIMA E NOSSA SRA DA AFLIÇÃO

“Por-esse-caminho-abaixo”, em pouco menos de mil metros e um quarto d’hora depois, estávamos na Capa Rota. A saca cheia de milho ou trigo, conforme a altura do ano e necessidade da minha mãe, ia no “lombo” da Carocha em cima da albarda onde, na volta, se ela para aí estivesse disposta, eu viria encavalitado, devidamente “monitorizado” pela Ti Augusta, claro. O Ti Sebastião já sabia, pelo costume, como é que a minha mãe queria a farinha e, assim, ajustava as distâncias e apertos da “maquinaria” da sua azenha, para as mós fazerem o trabalho a contento.

Como acontecia noutros locais, a Carocha não gostava de ir à Azenha da Capa Rota. O Ti Sebastião tinha um burro que, como bom macho que era, assim que sentia a Carocha, não mais sossegava. Nunca calhou, que eu percebesse, irmos lá estando ela com o cio. Por isso, enquanto o burro do moleiro zurrava que nem um desalmado e uma “manga” lhe saia do meio da barriga em direção ao chão, a Carocha guinchava, puxava e fazia força para irmos embora porque não lhe interessava nem estava recetiva ao “galanteio” do outro.

Ao contrário da Carocha, sempre gostei muito daquele sítio. A última vez que lá fui, há muito tempo em anos contado, talvez em funções autárquicas, já não estava o Ti Sebastião, mas o “Casal da Azenha” ainda era da família, situação que, desconheço, se mantêm.

Perguntar-me-ão:

— Então, mas nos teus escritos tens de falar sempre da burra Carocha?

E eu respondo:

— Nem sempre, mas se escrevo sobre a época a partir da meia-dúzia de tempo de idade em anos contado, até dez ou onze do mesmo tempo, é quase certo que a Carocha entra na estória. Ou seja, não fiquem impacientes porque muitas mais vezes, esta Carocha-filha, que de burra não tinha nada, será personagem dos meus contos.

Continuando por “esses-caminhos-abaixo”.

Desde o fundo da Abrunheira, onde eu estou agora, na direção da Capa Rota e Manique, havia dois caminhos que, neste momento, estão irreconhecíveis e, pelo menos um, o que desembocava na estrada ao lado do Rio das Sesmarias, “privatizado” há muito tempo. O contacto entre a população da Abrunheira, a Capa Rota e Manique de Cima, era permanente. Por isso, a existência de caminhos abertos e de serventia, era real e de uso frequente ao longo dos dias, por quem trabalhava para os empregadores da Abrunheira e morava em Manique ou ao contrário.

A ligação entre as duas “Terras” e o uso dos caminhos, era, tão normal, que, na época do meu pai, (décadas de 30/40 e talvez começo da de 50, do século XX) parte considerável da Comissão de Festas em honra da Nossa Senhora da Aflição da Capela de Manique de Cima, era constituída por habitantes da Abrunheira. Digamos que, o lugar de culta católico dos abrunhenses, até final da primeira metade do século XX, era a Capela de Manique e a Nossa Senhora da Aflição.

Esta relação entre a Abrunheira e Manique de Cima vai, a pouco-e-pouco, desaparecendo. Penso que, muito “por-conta” do início das carreiras da “Palhinha”, com a ligação pela estrada alcatroada, através do “Casal-da-Peça” e Albarraque e paragem um bocadinho mais à frente, de onde é hoje, o Café Brasil.

Nem o nosso bem conhecido Coutinho que era Bernardino, que muito usava esses caminhos em trabalho, conseguiu garantir a sua continuidade. Podia ser que o chamasse, o fervor religioso, mas também não era por aí. É que, desde a sua casa e da Judite na “Quintinha” do velho Caracol, que emprestava o nome à zona, a distância até Manique de Cima não seria muito diferente do que ir à procura duma “cigana” ou “charrete”, em cima do balcão do Osvaldo ou do Faial, ao lado da Padaria. Só que, no Lugar-de-Cima, havia mais tabernas e, assim, dava para variar. Gostava muito de ir à “Menina-Emília”. Sentia-se perto do Ti Miguel e, como tinha a “ciência-da-pedra” como tanto gostava de dizer, principalmente quando já tinha o “bandulho” remediado de vinhaça, o homem e a filha, aproximavam-no da pedreira onde passava tantos dias da sua vida. 

A propósito do Ti Caracol, pai da Judite, mulher e cuidadora do Bernardino que não era Coutinho, tenho pena que, da memória abrunhense, também se tenha ido. Na verdade, para além da pessoa simples que era, “cachimbeiro” de vício e hortelão do seu quinhão, o apelido “Caracol” identificava aquela zona da Abrunheira. Havia outros moradores: A Quinta do Zambujeiro (que ainda existe) dum lado, a Quintinha do Azevino (também ainda existe), o Peixoto, etc., etc., mas, quando se queria identificar a zona, por exemplo, se alguém perguntava; onde é que mora o Azevino ou o Peixoto? A resposta saía mais ou menos assim; é lá p’ró Caracol!

No lugar da sua quintinha, foram construídos edifícios modernos onde residem muitos abrunhenses novos. O Condomínio não tem nenhuma referência ao Velho Caracol como, aliás, é normal, mas, considerando a importância do nome, num passado não muito distante, ficaria muito contente e feliz, assim como muitos outros abrunhenses se, numa próxima escolha para atribuição toponímica nesta zona, fosse considerado homenageável, este destacado abrunhense.

Por aqui, pelo “Caracol”, se calcorreava por entre as silvas de amoras coloridas e carrascos de bolotas cheios, para chegarmos a Manique num estantinho.

Quem me dera, hoje, quando quero ir a Manique ou para aqueles lados, por exemplo, ao Cascais Shoppping, ao Autódromo, a Cascais, Estoril, etc., poder fazer o mesmo caminho de carro, que há mais de meio-século fazia com a Carocha, e num minuto estar na Capa Rota, em vez de ter de dar a volta por Albarraque e Casal da Peça, três quilómetros e sete ou oito minutos depois. 


Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2017

Fotos: 1 – Eu e a Carocha-Filha, ainda bebé. 2 – Capela Nª Srª da Aflição em Manique de Cima (Google)