“Por-esse-caminho-abaixo”, em pouco menos de mil metros e um
quarto d’hora depois, estávamos na Capa Rota. A saca cheia de milho ou trigo,
conforme a altura do ano e necessidade da minha mãe, ia no “lombo” da Carocha
em cima da albarda onde, na volta, se ela para aí estivesse disposta, eu viria
encavalitado, devidamente “monitorizado” pela Ti Augusta, claro. O Ti Sebastião
já sabia, pelo costume, como é que a minha mãe queria a farinha e, assim, ajustava
as distâncias e apertos da “maquinaria” da sua azenha, para as mós fazerem o
trabalho a contento.
Como acontecia noutros locais, a Carocha não gostava de ir à Azenha
da Capa Rota. O Ti Sebastião tinha um burro que, como bom macho que era, assim
que sentia a Carocha, não mais sossegava. Nunca calhou, que eu percebesse,
irmos lá estando ela com o cio. Por isso, enquanto o burro do moleiro zurrava
que nem um desalmado e uma “manga” lhe saia do meio da barriga em direção ao
chão, a Carocha guinchava, puxava e fazia força para irmos embora porque não
lhe interessava nem estava recetiva ao “galanteio” do outro.
Ao contrário da Carocha, sempre gostei muito daquele sítio. A
última vez que lá fui, há muito tempo em anos contado, talvez em funções
autárquicas, já não estava o Ti Sebastião, mas o “Casal da Azenha” ainda era da
família, situação que, desconheço, se mantêm.
Perguntar-me-ão:
— Então, mas nos teus escritos tens de falar sempre da burra
Carocha?
E eu respondo:
— Nem sempre, mas se escrevo sobre a época a partir da
meia-dúzia de tempo de idade em anos contado, até dez ou onze do mesmo tempo, é
quase certo que a Carocha entra na estória. Ou seja, não fiquem impacientes
porque muitas mais vezes, esta Carocha-filha, que de burra não tinha nada, será
personagem dos meus contos.
Continuando por “esses-caminhos-abaixo”.
Desde o fundo da Abrunheira, onde eu estou agora, na direção
da Capa Rota e Manique, havia dois caminhos que, neste momento, estão
irreconhecíveis e, pelo menos um, o que desembocava na estrada ao lado do Rio
das Sesmarias, “privatizado” há muito tempo. O contacto entre a população da
Abrunheira, a Capa Rota e Manique de Cima, era permanente. Por isso, a
existência de caminhos abertos e de serventia, era real e de uso frequente ao
longo dos dias, por quem trabalhava para os empregadores da Abrunheira e morava
em Manique ou ao contrário.
A ligação entre as duas “Terras” e o uso dos caminhos, era,
tão normal, que, na época do meu pai, (décadas de 30/40 e talvez começo da de
50, do século XX) parte considerável da Comissão de Festas em honra da Nossa
Senhora da Aflição da Capela de Manique de Cima, era constituída por habitantes
da Abrunheira. Digamos que, o lugar de culta católico dos abrunhenses, até
final da primeira metade do século XX, era a Capela de Manique e a Nossa
Senhora da Aflição.
Esta relação entre a Abrunheira e Manique de Cima vai, a
pouco-e-pouco, desaparecendo. Penso que, muito “por-conta” do início das
carreiras da “Palhinha”, com a ligação pela estrada alcatroada, através do “Casal-da-Peça”
e Albarraque e paragem um bocadinho mais à frente, de onde é hoje, o Café
Brasil.
Nem o nosso bem conhecido Coutinho que era Bernardino, que
muito usava esses caminhos em trabalho, conseguiu garantir a sua continuidade. Podia
ser que o chamasse, o fervor religioso, mas também não era por aí. É que, desde
a sua casa e da Judite na “Quintinha” do velho Caracol, que emprestava o nome à
zona, a distância até Manique de Cima não seria muito diferente do que ir à
procura duma “cigana” ou “charrete”, em cima do balcão do Osvaldo ou do Faial,
ao lado da Padaria. Só que, no Lugar-de-Cima, havia mais tabernas e, assim,
dava para variar. Gostava muito de ir à “Menina-Emília”. Sentia-se perto do Ti
Miguel e, como tinha a “ciência-da-pedra” como tanto gostava de dizer,
principalmente quando já tinha o “bandulho” remediado de vinhaça, o homem e a
filha, aproximavam-no da pedreira onde passava tantos dias da sua vida.
A propósito do Ti Caracol, pai da Judite, mulher e cuidadora
do Bernardino que não era Coutinho, tenho pena que, da memória abrunhense,
também se tenha ido. Na verdade, para além da pessoa simples que era,
“cachimbeiro” de vício e hortelão do seu quinhão, o apelido “Caracol”
identificava aquela zona da Abrunheira. Havia outros moradores: A Quinta do
Zambujeiro (que ainda existe) dum lado, a Quintinha do Azevino (também ainda
existe), o Peixoto, etc., etc., mas, quando se queria identificar a zona, por
exemplo, se alguém perguntava; onde é que mora o Azevino ou o Peixoto? A resposta
saía mais ou menos assim; é lá p’ró Caracol!
No lugar da sua quintinha, foram construídos edifícios
modernos onde residem muitos abrunhenses novos. O Condomínio não tem nenhuma
referência ao Velho Caracol como, aliás, é normal, mas, considerando a
importância do nome, num passado não muito distante, ficaria muito contente e
feliz, assim como muitos outros abrunhenses se, numa próxima escolha para
atribuição toponímica nesta zona, fosse considerado homenageável, este destacado
abrunhense.
Por aqui, pelo “Caracol”, se calcorreava por entre as silvas
de amoras coloridas e carrascos de bolotas cheios, para chegarmos a Manique num
estantinho.
Quem me dera, hoje, quando quero ir a Manique ou para aqueles
lados, por exemplo, ao Cascais Shoppping, ao Autódromo, a Cascais, Estoril,
etc., poder fazer o mesmo caminho de carro, que há mais de meio-século fazia
com a Carocha, e num minuto estar na Capa Rota, em vez de ter de dar a volta
por Albarraque e Casal da Peça, três quilómetros e sete ou oito minutos
depois.
Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2017
Fotos: 1 – Eu e a
Carocha-Filha, ainda bebé. 2 – Capela Nª Srª da Aflição em Manique de Cima (Google)
bem visto, muito ajuda quem lá mora e os que não lá morando podiam de forma fácil e escorreita entrar, frequentar o comercio local, ajudando a dinamizar o bairro.
ResponderEliminarGrato por ter acedido ao blogue e por ter lido o meu texto. Vou fazendo o que posso noutros palcos, como este aqui. Pelos tempos pós-25 abril, muito se falou, discutiu, escreveu e o argumento era sempre o mesmo: Que muito trânsito invadiria a localidade e blá, blá, blá.... passaram-se 45 anos, as circunstâncias são completamente diferentes (na minha opinião, mais favoráveis à ligação), mas o argumento mantem-se. É um assunto polémico e esquecido há muito tempo pelas forças em "presença". Abraço, Ilídio!
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