terça-feira, 28 de novembro de 2017

DESTE LADO DA SERRA, A INSEGURANÇA E OS SONHOS DO CABOUQUEIRO

“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.

Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam, o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era “Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.

Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha metido na sacola, antes de sair de casa.

Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.

Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou para a direita?

— Que raio… onde é que eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)

— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga. É só, se vou para um lado ou para o outro!

Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja, para o lado direito.

Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a consciência estava-lhe pesadona.

Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.

Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.

Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR porque brincadeiras destas não se faziam.

E o das “Sesmarias” perguntava:

— Mas qual GNR? Não há aqui nada disso!

— Há, sim senhor! Eu posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR na Abrunheira. (dizia o Coutinho que era Bernardino)

Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.

Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.

Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.

Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.

«Um GNR e uma GNR, saíam do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira, debaixo do braço.

Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”, continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro, tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das ferramentas, que estava no sítio do costume.»

O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.

Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no sítio onde, no sonho, elas ficaram.

Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo (retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na Abrunheira-2001.


 

  

terça-feira, 21 de novembro de 2017

PARA CÁ DE QUELUZ E O SOSSEGO DA ABRUNHEIRA

Depois da Estação de Queluz, as janelas começavam a ser fechadas. O ar entrava fresquinho e sentia-se que, lá fora, o vento soprava. A temperatura e o cheiro de Lisboa, iam ficando para trás. O reboliço do Rossio, do Cais do Sodré, da Duque da Terceira, rua do Arsenal e do Alecrim, ficavam para o dia seguinte.

Fui-me “construindo” nesta dualidade de vivências. A ruralidade da Abrunheira e a urbanidade da grande Capital. Sempre gostei das duas.

Sabia-me bem participar nas movimentações de muitas pessoas; o comboio na hora-de-ponta, a Estação do Rossio, os passeios cheios e a necessidade de me desviar das que vinham de frente, sempre assim, subindo até ao Largo do Carmo, onde, em abril, o Capitão Salgueiro Maia pôs o antigo regime de joelhos, pela Trindade e Chiado e descendo até ao fundo da rua do Alecrim. O trabalho durante o dia, o convívio com os colegas e, ao fim da tarde, o regresso ao sossego de Sintra e da Abrunheira.
  
Das mangas-curtas pelo calor da beira Tejo, passava a manga cumprida ou mais uma peça de roupa para compensar o fresco da chegada a Sintra. Na Abrunheira, pelo Largo Chafariz e pela rua principal, ainda se pisavam muitas caganitas de ovelha e, não poucas vezes, era requerida habilidade, para ziguezaguear por entre “bostas” de vaca. Na Abrunheira, pelo Largo do Chafariz, pelo Santo António ou por outros caminhos, ainda se cheiravam “perfumes” do campo.

Nos terrenos à volta, para lá da ponte e até à colónia e aos celões, ou a seguir ao Ti Alexandre nas pateiras, ou para o caracol até à arroteia e aos quatro-donos, ou para lá do forno nas maçarocas, ainda vi ondulantes searas de cereais. Na altura do crescimento do trigo, cevada ou aveia, e com olhar abrangente, o vermelho das papoilas, o lilás dos lírios, o amarelo dos malmequeres e os azuis das alcachofras, completavam a beleza da nossa ruralidade. Eu não sabia que gostava tanto disto, mais ainda, quando as cigarras e os grilos não paravam de cantar.
 
E depois, beber a bica no Manel num copinho de vidro e, quando os mais velhos deixavam, uma partidinha de damas. Havia autênticos campeões. Lembro-me por exemplo, do Batista, do Caracinha, do Chico Chamiço ou do Durães e mais outros, que não me lembro os nomes. Da nossa classe, o campeão era o Rui.

Mais tarde, passamos a ir bebê-la ao Ramos/Cabaço e as jogatanas de matrecos e de kingue. Muitas horas de paleio. As conversas eram sérias. Até os namoricos eram sérios. Alguns vingaram, outros nem tanto. Tudo isto me confortava no regresso. Lembro-me de todos e todas, de cada um e de cada uma.

Algumas horas de cama e a Ti Augusta não me dava folga. Uma tigela de sopas de café (cevada) com leite e toca a andar, que se faz tarde.

De volta à Capital e, nas olhadelas pela “janela-do-terceiro-andar”, conseguia ver tudo. Já algumas vezes disse que, por lá, via o mundo. É uma maneira de lhe atribuir grandeza, por tantas imaginadas imagens, que me chegavam.

“Daquela-janela”, ainda vi fragatas e faluas no Tejo, provavelmente a pouco tempo de, definitivamente, desaparecerem, mas também vi muitos petroleiros ancorados no mar da palha, esperando pela vez de entrarem nas docas da “Lisnave”. Vi muitos “cacilheiros” trazendo e levando pessoas, entre as duas margens. Vi muitos “amarelos” subindo e descendo a rua do alecrim e outros “verdes” que já muito poluíam o ar, como o 8, o 44 ou o 45.

Lá, “da-janela”, via pessoas boas e más, homens e mulheres, adultos e crianças. Olhando mais para baixo, ligeiramente à direita, conseguia ver quem entrava e saía do “Bragança”, utilizando as escadinhas e a mesma porta do “Eça”, aquele, que era “Queiróz”. Ainda, mais por debaixo, via a “velha” Nova do Carvalho dos bares que, no tempo de agora, virou moderna, a abarrotar de gente bem-bebida e “cor-de-rosa”.

“Da-janela-do-terceiro-andar”, via, ao longe, muito longe, navegando pelo “Atlântico”, centenas de compatriotas a caminho da guerra. Na Rocha Conde de Óbidos, tinham-se despedido das mães, dos pais, das namoradas e, por aí fora, pelo mar, compunham expectativas bem incutidas nas cerebrais, pelos especialistas da matéria, em sessões contínuas.

No sossego da Abrunheira e do alto da nossa varanda, com o sol já atrás da Serra escondido, conseguimos um recorte único. Muitas vezes tive saudades desta visão. Este lado da Serra era e é, lindo e acolhedor.

Silvestre Brandão Félix
21 novembro de 2017
Foto: Minha-2010 Recorte da Serra de Sintra tirada da Abrunheira

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

MERCADO DE SÃO PEDRO, OS SONHOS E AS GRANDES SUPERFICIES

Estivesse a complicada máquina digestiva a funcionar como devia e, a, ainda mais complicada e importante tarefa e função intestinal no ponto certo do trânsito, e o “Artista Sapateiro”, bem cedinho, ao levantar o primeiro sinal de luz do dia, se chegava às traseiras, fora do leito corrente, viradinho para a horta e, de cócoras, em jeito confortável quanto bastasse, para que bem ficasse a perna mais curta, e assim cumprir o que de mais sagrado um homem podia fazer; aliviar o corpo do que já não presta e que ainda por cima, cheira mal.

Este momento diário, era tido como audiência ao grande amigo e possuidor de grande sabedoria: O Rio das Sesmarias!

O Ti J’oquim Cagachuva, fizesse sol ou “chuva”, fosse inverno ou verão, não lhe falhava esta meia-hora em cada santo dia. Muitas vezes, os sonhos eram vagos e nublosos, mas, outras, via-os com tal claridade que, melhor os sentia que a realidade do dia-a-dia.

Ido que está o seu tempo de andarilho pelas terras e terriolas, casas e casais, quintais e quintas na procura de calçado carente da sua arte, e gasta que está a juventude que lhe temperava as passagens pelas festas e bailaricos do Linhó, Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Amoreira, Abuxarda, Alcoitão, Bicesse, Manique de baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira e por aí fora que não lhe chegava a memória de tanto sítio por onde passou. Ficava-lhe então, muitas lembraduras e uma outra componente, não menos importante.

Os sonhos! Isso, o Ti J’oquim não para de sonhar com as coisas idas e com as coisas vindas, ou melhor, que hão de vir.

Eu, que aqui estou no papel de narrador, ouvi muitas dessas cenas, algumas seriam reais, outras inventadas por ele e, ainda, outras, resultado dos contínuos sonhos que o “Artista Sapateiro” tinha com fartura.

Aquela manhã, tinha vindo com algum orvalho e, por isso, as ervas da margem do Rio das Sesmarias, estavam bem molhadas. O outono fazia o seu trabalho.

Depois das saudações habituais e de estabilizada a posição e a função acima descrita, o Ti J’oquim Cagachuva, requer a atenção do Amigo Rio, para lhe contar o inacreditável sonho daquela noite.

Tinha seguido “por esses caminhos acima” como era costume. Sem saber logo para onde ia, percebeu que tinha chegado a Ranholas, mas, ainda aí, muitos destinos podiam acontecer, até… valha-me Deus, até o Alto da Bonita. Depois do portão da Quinta do Ramalhete, ali bem na curva, o sonho logo o plantou na frente da “Campa-dos-Dois-Irmãos”. Percebeu logo que estava lá muito para frente no tempo, porque, a campa, estava do lado direito de quem sobe.

O sonho continuou e, embora o Ti J’oquim não conhecesse uma letra do tamanho dum comboio, garantiu ali, naquela posição de cócoras, que estava dezassete de tempo contado em anos a seguir ao ano dois mil, o tal que, sempre lhe disseram, nunca iríamos passar. A sua mulher, Margarida faladeira e sabe tudo, bem lhe dizia que tudo isso era mentira. Que haviam de passar o dois mil e o três, se preciso fosse.  

Pois é, dois mil e mais dezassete, segundo domingo de novembro, dia de mercado e às dez da manhã.

— Oh Amigo Rio das Sesmarias, tu que sabes destas coisas e conheces todos os abrunheirenses, diz-me cá; como é possível naquele dia, aquela hora, naquele sítio, não me cruzar com ninguém? Ainda no domingo passado fui ao mercado e, ao chegar ao Ramalhão, mais ou menos às dez da manhã, já não se podia andar, tal era a quantidade de gente.

O Ti J’oquim tinha ficado desapontado com o sonho que o atirou quarenta e sete em tempo contado em anos, para a frente, mas, por isso mesmo, fez questão de o contar todinho ao Amigo Rio das Sesmarias.

Bom, o que é certo é que o sonho continuou e, duma penada, estava encostado ao Chafariz da curva do alto de São Pedro a olhar para o mercado, ou melhor, para o sítio do mercado. Que via ele? Uns quantos toldos, muito poucos, que não ocupavam metade do largo.

Isso mesmo! Muito poucos, a quantidade não interessa, mas para quem conheceu o mercado a abarrotar e a sair pela 1º de dezembro até Chão de Meninos, com uma enorme lista de espera de lugares, é triste, muito triste, mesmo que fosse só num “sonho-mau” do Artista-Sapateiro da Abrunheira.

O pior mesmo, é que não é sonho, é mesmo verdade!

Será que ainda há tempo de salvar o mercado de São Pedro?


Silvestre Brandão Félix
16 novembro de 2017
Foto: Fonte de São Pedro (sintraroteiroturistico)-(Google)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PEIXE FRESCO, A TI AURÉLIA E O MANEL DA COLÓNIA

O Manel da Colónia, embora não o dissesse a ninguém, nem a mim, não “podia levar à paciência”, ter de levar com o cheiro de peixe, todos os dias, até ao fim da sua vida. Ainda escuro, só com o lampejo da madrugada, já a Ti Aurélia e a filha Lucinda ou Lucília, separavam o peixe trazido pelo Ti João “pexeiro”, da lota de Cascais.

Todo o santo dia, tinha que levar com aquela cena. Era de tal maneira que, pelo cheirinho, já sabia o que a Aurélia e a Lucinda ou Lucília, iam vender naquele dia.

Não tínhamos nenhuma pena dele. Que levasse com o cheiro do peixe e de todos os piores cheiros do mundo que não nos importávamos com isso. Mais cheiro, menos cheiro, a vida continuava.

Os putos como eu, não “iam à bola” com o Manel da Colónia. Não “iam à bola”, nem lhe davam a bola, porque senão…

Ali, na ponta de cima do Largo do Chafariz, longe dos gansos do Ti Veríssimo — pertinho do Ti Miguel, da nova taberna da Menina Emília, da Deolinda e do João Tirapicos, do meu Tio António e da minha Tia Espírito Santo, do Chico e da Maria Augusta, da Gina e do Zé Eduardo que comigo alinhavam, do Zé da Natália e da Natália e, claro, do Manel da Colónia — os putos, às vezes, juntavam-se a dar uns toques na bola. O homem “tinha um pó” aquela coisa redonda, que só visto. Se, na altura em que ele ia a passar, a bola estivesse ao seu alcance, ou, “por mal dos nossos pecados”, a bola fosse parar ao quintal dele, era “certo e sabido” que, inteira (a bola), nunca mais ficava. Sacava da navalha e, zás! Era uma vez, uma bola.

Indiferentes às bolas e às contrariedades dos cheiros, a peixe ou outros, a Ti Aurélia e a Lucinda ou Lucínia, (a estratégia do “ou”, vai no sentido de desculpabilizar a falta de rigor desta memória para nomes, que, em culpa direta da PDI, digo eu, está cada vez mais abandalhada) lá vão percorrendo o lugar acima e abaixo, vendendo um chicharro aqui à Maria Augusta, umas fanecas ali à Ti Estrudinhas, umas sardinhas acolá à mulher do eletricista, umas pescadinhas de rabo na boca à Ti Augusta, uns carapaus à Ti Ermelinda, e, por aí iam as duas, apregoando baixinho, que não eram mulheres de gritaria: “Olhó vivinho da costa!” E era! Pescado na nossa costa, sempre, em pouco mais de doze horas.

Como as coisas são diferentes. Hoje, se quisermos comprar peixe, será com dois, três ou mais dias desde que foi pescado, sendo português, porque se for importado, ainda pode ser mais tempo.

Há uns tempos, em troca dum “saco de lentilhas”, foram-se: a pesca, a agricultura e alguma industria média-pesada e, agora, para além de consumirmos piores produtos, temos que levar com os que nos mandaram as “lentilhas”.

Silvestre Brandão Félix
13 novembro de 2017
Foto: Peixeira (Google)
Nota: Embora baseado em factos e pessoas reais, o texto que aqui reproduzo, é ficcionado.

sábado, 11 de novembro de 2017

SÃO MARTINHO E A ÁGUA-PÉ DO PENA

Naquele onze de novembro de mil novecentos e “troca-o-passo”, o Coutinho que era Bernardino saiu do Caracol, onde morava com a Judite, com o sol ainda escondido. Tinha engolido as “sopas-de-cavalo-cansado” mais depressa que o costume, para evitar que a Judite Caracoleta metesse conversa, por antecipação ao previsível bem-bebido final de dia, que era de São Martinho.

Ele foi p’rá pedreira do Ti Miguel como de costume e, porque era “cabouqueiro e tinha a ciência da pedra” — a toda a hora o dizia e, principalmente, quando de charretes e ciganas, já estava bem aviado — tinha que, também naquele dia, honrar a profissão e arte que tanto gosto e felicidade lhe têm dado ao longo de toda a vida. 

Na ida, de manhã, entrando no alcatrão e depois do Santo António, do Espanhol e do Silvestre Velho, costumava meter à esquerda a seguir ao Rafael-Coxo, junto à casa da fruta do Pechincha, continuava juntinho ao Amigo Rio das Sesmarias e atravessava-o no sítio do costume, lá, ao fundo do caminho do Cipriano, entre a Horta do Manel Lopes e a casa do Ti Joaquim da fruta.

Mas, naquele dia, a primeira pessoa que viu foi o J’oquim Cagachuva, antes do Santo António e, no Rafael Coxo, não virou à esquerda e seguiu até ao Largo do Chafariz, desviando-se de dois gansos do Ti Veríssimo que, de pescoços esticados e bicos assanhados na direção dele vinham. Saudou o Tavinho que, àquela hora, dava água às vacas, no chafariz.

Depois, resistindo à tentação de ir dizer “bom-dia” ao Álvaro, contornou a casa do meu Tio António que, com o Chico, tinha acabado de ordenhar as ovelhas, e, quase esbarrando com a Ti Maria Ferreira, foi pela travessa do Ti Miguel passando e recebendo uma grande saudação do Guilherme barbeiro, que estava a sair de casa para ir para a sua, barbearia, em Ranholas.

Praticamente ao mesmo tempo, mas do lado direito, saía a Menina Emília, que tinha quase pronta a abrir, a nova taberna naquela esquina. Admirados também por verem o Coutinho que era Bernardino, ali aquela hora, a Ofélia e o Albino, que saiam de casa, saudaram-no com satisfação. Ao fundo, ainda cumprimentou o Ti Abílio, pai do Zé Fernando e, em passo acelerado, foi pelo caminho do Cipriano abaixo, passando em frente da travessa do Pena, à esquerda, só para sentir o cheirinho daquele delicioso líquido que, mais tarde, havia de provar.

O Coutinho que era Bernardino, cabouqueiro, e que tinha a “ciência da pedra”, não resistiu o dia todo. Ao meio-dia, já estava à porta do Pena. Para não se sentir sozinho, já lá estavam outros, ansiosos pela prova, como ele.

Entretanto, sem ter explicação para tal, a Judite Caracol (eta), só ao fim da tarde se apercebeu da especificidade daquele dia. Pois, se, nem nos dias normais o Coutinho que era Bernardino precisava de incentivos ou pretextos para meter muito vinho pela goela abaixo, como é que não o havia de fazer no dia de São Martinho?

Meteu as mãos à cabeça, disse meia-dúzia de impropérios que até o Velho Caracol se eriçou todo e, ainda de mãos na cabeça, saiu porta-fora com o lusco-fusco de novembro, bem instalado.

A dúvida do costume, baralhava o pensamento da Judite Caracol(eta); por onde ia começar?

Começou pelo Álvaro. “Como-quem-não-quer-a-coisa”, espreitou lá para dentro. Dum lado para o outro, dentro do balcão, andava o Ti Álvaro, com a caneta pendurada na orelha, via e ouvia alguns clientes, mas, de Coutinho que era Bernardino, nada! De mansinho, foi pela direita à frente do Frouxo, curvou e, logo ali, a Ti Celeste Pardal(a) com dois rebentos agarrados ao avental. Pergunta daqui e dacolá, mas despachou-se depressa e a tempo de não ter que falar à mulher do Dinisinho que vinha a sair de casa naquela altura.

Chegada ao Osvaldo ou Faial ou Ramos, fez a mesma cena do Álvaro, mas o marido continuava a não estar lá. Estava a ficar preocupada e não se lembrava da famosa água-pé do Pena. Para não ir pelo mesmo sítio, deu a volta pela curva e enfiou em direção à Quinta do Olival. Passou-a e, quando estava em frente ao Casal de Santo António, quem havia de estar logo ali a conversar; o Ti Abílio e o Sigamó. Muito admirados de verem a Judite ali, perguntaram-lhe se precisava de alguma coisa. A Judite um bocado a medo e com muita vergonha, disse-lhes que não sabia do marido.

— O Coutinho que é Bernardino?

— Sim! Quem havia de ser? Não tenho outro!

— Tá no Pena! (Disse o Ti Abílio.)

— No, Pena? Mas? Ah! Pois é! Na água-pé? (perguntou a Judite)

— Sim! Isso mesmo!

— Ai, valha-me Deus, deve estar bonito, deve!

Ainda ia a meio da travessa e já ouvia homens a falar e, entre eles, conheceu a voz do marido. Estava com medo e com muita, muita vergonha. Mas, assim que meteu a cabeça dentro da adega, recebeu logo um “Benvinda” do Pena e, olhando para trás, o Coutinho que era Bernardino, todo feliz, desatou: Chega-te cá mulher, anda cá provar estas castanhas e esta água-pé do Pena.

Para grande admiração da Judite, o Coutinho que era Bernardino, não estava a arrastar a voz nem cambaleava. Estava contente sim, mas muito afinado para um dia de São Martinho que, fosse ela muito crente, teria acreditado ser milagre do Santo. Ele depois contou-lhe que almoçou lá e continuaram sempre a petiscar. Não deu para ficar de “caixão-à-cova” como acontecia tanta vez. A água-pé do Pena era tão boa que a Judite levou uma garrafa para o Caracol Velho provar.

Por estes dias do ano, todos os abrunheirenses amantes da boa pinga, percorriam várias vezes o caminho do Cipriano, guiados pelo inigualável aroma da “água-pé” do Pena. Nesta altura, faziam jus ao provérbio popular — “No São Martinho, vai-se à adega e prova-se o vinho” — e a “água-pé” do Pena, digo eu!

Silvestre Brandão Félix
11 novembro de 2017

Foto: Lenda do S. Martinho (Google)

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A MOTORETA E O SENHOR CORREIO DE RIO DE MOURO

A motoreta era, acho, cinzenta e não tinha quadro, como as “lambretas”, sendo o depósito do combustível recuado, por debaixo do assento que era daqueles triangulares e, atrás, tinha um apoio metálico de bagagem que, o “correio” (carteiro), usava para colocar duas grandes malas de cabedal, evidentemente, uma de cada lado, ligadas uma à outra, por uma larga tira também de cabedal. As malas vinham sempre muito cheias de envelopes e pequenas encomendas, bem como o saco, igualmente de cabedal, que o “Senhor correio” trazia, à, tiracolo.  

Não tenho ideia de alguma vez ter visto o “correio” montado na motoreta. Andava com ela pela mão e ia parando à medida que distribuía as cartas, os aerogramas ou encomendas.

A central distribuidora do correio da Abrunheira era de Rio de Mouro. O “correio”, era assim que a gente se referia a ele, porque do nome não me lembro. Recordo-me sim, da cara bonacheirona do simpático senhor. Vinha com aquela farda cinzenta e conhecia todos os abrunheirenses. Sabia dos mais velhos, dos pais, dos filhos e, principalmente, dos que estavam na tropa.

Naquela época, a Abrunheira não tinha placas toponímicas logo, o Senhor “correio”, sabia onde morava toda a gente. Pelo tipo de correspondência que entregava, sabia se estava a dar boas ou más notícias.

Era ele, o tal Senhor “correio” de Rio de Mouro com cara redonda, que entregava os aerogramas enviados pelo meu Primo Chico desde a Guiné, à minha Tia Ermelinda. Se estivesse por perto, dávamos, porque sabia que era eu que os lia à minha Tia. Aerogramas, era a correspondência da “guerra”. Para facilitar a troca de notícias entre os militares na guerra colonial e os seus familiares aqui em Portugal, o regime criou os aerogramas. Era uma folha azul/cinzento em que, num dos lados, se escrevia o que queríamos e, no outro lado, nos locais já definidos, escrevia-se o destinatário e o remetente. Depois, dobravam-se em três, tinham cola como os envelopes no topo e nos lados que, molhando e apertando, colava-os e ficava tudo fechado. Abri e fechei muitos à minha Tia Ermelinda.  

Mas, o tempo em que o “correio” (carteiro) conhecia toda a gente e não deixava que nada se extraviasse, já lá vai há uns bons quarenta e muitos ou cinquenta, de tempo contado em anos.

Agora, com estes correios, a coisa fia doutra maneira. Como empresa privada que é, o grande objetivo é obtenção de lucro para dar bons dividendos aos seus investidores. Muito depois disso, vem o interesse das pessoas comuns. Bem sei que, grande parte do que era o negócio, na época acima descrita, hoje não existe, mas, duma forma geral, todo o cidadão gostaria de ser tratado como gente e, infelizmente, nem sempre acontece.

Há uns anos, começaram a surgir nos envelopes uns grandes carimbos, aconselhando à colocação dos endereços corretos, sob pena da mesma correspondência ser devolvida.

No que me tocava, a coisa mais ou menos estava controlada. Mesmo assim, ainda tinha um ou outro caso com o endereço anterior à atribuição do número de polícia ou que não indicavam o “número de bloco” e, o novíssimo excesso de zelo dos “correios”, ainda me pregaram algumas partidas com devoluções, incómodas para quem enviou e para quem nunca recebeu. É que, era tudo igual, o meu nome e tudo, mas o que querem? Faltava o bloco ou uma vírgula e confundia-se com o piso, enfim, tretas!

Também não é preciso voltar aos correios do tempo do “Senhor correio de Rio de Mouro” e a sua motoreta, mas, que raio, um bocadinho de bom senso, não faz mal a ninguém.

Silvestre Brandão Félix
6 novembro de 2017

Fotos: Carteiro (Google)

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

MILITAR ME FIZERAM, O IMPÉRIO E A VANGUARDA ABRUNHEIRENSE

Verão quente ficou e PREC se chamou! Militar me fizeram, a contragosto, por princípio, e porque o “império” ainda durava.

— “Ai! Ai! Eles andem aí!” Gritava o mais gordinho do pelotão, enquanto, dobrado para trás na medida em que a farta barriga o permitia, mirava os céus tentando descortinar algum avião, daqueles que tinham disparado sobre o RALIS naquele dia onze de março.

Aqueles dois ou três dias a seguir, foram de alerta constante e pretexto para me entregarem uma arma, descarregada, mas era uma arma na mesma.

Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia da minha festa de despedida de mancebo, no dia dois, véspera de “assentar-praça”. Também não me esquecia das juras de amor, ou nem por isso, e das voltas que o estômago e as tripas deram naquela noite. A última vez que “chamei-pelo-gregório”, já o comboio, na Estação do Cacém, estava pronto para partir. Pelo “Oeste” acima, sono não me faltou e, como o destino era o fim-de-linha, não havia problema.

Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia dos projetos para o desenvolvimento da nossa URCA, fundada três meses antes na velha “sociedade”.

Uns tempos depois, na terça-feira da semana das primeiras eleições democráticas, que seriam na quinta-feira seguinte, a 25 de abril, a carta que recebi encaminhava a URCA para a “quinta do João da batata”.

“João da batata”? Perguntava eu. Fiquei muito confuso com o “puzzle” que — o C. Silva e a Celeste, o Zé e o Fernando, a Fernanda, a Catarina e o Zé, a Gina e o Zé, a Cristina e o Zé, a Odete e o Joaquim, o outro Zé Alentejano, o Mário e Paulo, o Tomás, o João da borracha, o Luís Mariano, Pombo I, o II e o III, o Zé Nascimento e o António, o Chico, o Vicente, o Virgílio e o Eleutério, o Zé Manel outros e outras que a memória atrapalha, mas que estão cá bem arrumados e considerados — me enviaram, mas, como vim votar na Abrunheira, a vinte e quatro à noite, descobri tudo.

Para muitos anos e eleições sem “senhas-de-presença”, foi o único que não participei nas mesas. Depois, deixou de ser dever cívico e passou a ser trabalho pago, até hoje.

A atividade cultural tinha sido o “nosso-nascimento” e, depois, com outras possibilidades, outros espaços e condições, a função social mobilizava outra parte de nós. O grande objetivo passou a ser a construção dum “Centro Social” que, para além da URCA, criaria estruturas de apoio à infância e à terceira-idade e desenvolveria diligências para a instalação duma extensão do Centro de Saúde de Sintra.

E eu, marchava, marchava… com algumas intermitências. No meio do quente de setenta e cinco, para Luanda me mandaram com destino certo, mas como?? Se; “nem-mais-um-soldado-para-as-colónias” e, assim, não fui!

E eu, marchava… embora menos, mas marchava. Finalmente liberto com mais duzentos e passaporte nas mãos, lá para 27 ou 28 de novembro com os “roncos” dos “jaimites” à volta, já o verão tinha acabado há uns meses, mas, nem por isso, foram dias muito “quentes”.

Todas as vontades se juntavam na URCA. Entre a construção do pavilhão e a realização dos famosos “bailaricos”, tudo o resto se ia fazendo. “Até à Libertação”, “Menino Tonecas”, “barbeiro sabichão” e, noutro “departamento”, folclore, marchas e marchinhas para graúdos e minorcas, com telhado “Ramalho” e muitas outras coisas “António-da-Estância”, inauguração feita no dezoito do glorioso mês de abril de setenta e seis.

Da vanguarda abrunheirense no princípio do último quartel do século XX, a caminho do fim do primeiro do XXI, em que patamar estamos?

As perguntas fazem-se para terem respostas, mas, às vezes, ficam sem resposta.



Silvestre Brandão Félix
3 novembro de 2017
Fotos dos meus arrumos: 1 – Tropa 1975, 2 + 3 – Inauguração do pavilhão da URCA 18 abril 1976

P.S. (Se me ajudarem a identificar o(a)s fotografada(o)s, coloco-as com os nomes)

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

PÃO-POR-DEUS!

Grupos de miúdos e miúdas, “lugar” abaixo, “lugar” acima, carregando as suas sacolas, sacos de pão e outros, poucos, feitos pelas mães de propósito para aquele dia, batendo às portas e pedindo:

— PÃO-POR-DEUS!

A porta se abria e lá vinham, conforme as posses, as mais variadas guloseimas como, rebuçados, caramelos, fruta, bolachas, biscoitos, figos secos, nozes, amêndoas, amendoins e, às vezes, chocolates.

Hoje, também me cruzei com espigadotes rapazes e raparigas, batendo às portas e outros mais pequenos com as mães e os pais por perto, mas, para muitos dos meninos e meninas da Abrunheira de há cinquenta e muitos de tempo contado em anos, o dia do “Pão-por-Deus”, era o único em que provavam algumas daquelas coisas e, noutros casos, o dia em que a fome não os visitava.

Agora, as “catedrais” do consumo, construídas e oferecidas às classes médias, para, que, aí gastem o que ganharam em dias inteiros e acrescentados de “bancos-de-horas” infinitos, oferecendo aos seus meninos e meninas, usos e costumes importados que vão substituindo as nossas recordações e engordando os “fundos” dos que não têm rosto e, muito menos, morada certa.

Nestes últimos dias, fomos bombardeados com máscaras e mascarilhas, bruxas e bruxinhas, abóboras furadas e iluminadas, varões e varinhas que transformam o real em fantasia, mas, o que continua sendo muito verdade, são a míngua das contas bancárias e o saldo do cartão de crédito.

Silvestre Brandão Félix
1 novembro de 2017

Foto: Google