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domingo, 24 de janeiro de 2021

CHICO DA BELOURA, CALADINHO E A UNIÃO

 


Àquela hora, não era normal o Chico da Beloura estar ali, pensou e admirou-se o Ti J’aquim Artista que do servicinho à chuva, vinha. O sol ainda não se via por cima da casa do Silvestre Velho. É certo que ainda era janeiro, portanto nunca (o sol) subiria muito, mas, ainda assim, cedo marcava o batente lá de casa.

— Eh! Chico! Bom dia! Então, já mungiste o rebanho todo?

— Bom dia Ti J’aquim! Já! E por isso mesmo é que me encontra aqui a esta hora. Dei por falta de três ovelhas e, logo se fez dia, “desatei” à procura delas.

— Então e vieste logo por aqui? Ainda se te lembrasses de trazeres uns queijinhos frescos, mas assim, a seco?

— Vim direito do Casal da Beloura para aqui, indo o janeiro tão seco, podiam ter tido sede e vir ao Santo António, mas não! Por aqui não estão. Agora vou dar a volta pelos “Celões”, “Campo da Colónia” e pelo caminho até ao Linhô. Onde raio se terão metido.

— Oh! Chico, mas também podiam ter ido pelo caminho da Capa Rota até à Azenha do Ti Sebastião e Manique ou subindo pelas Maçarocas até ao Casal da Peça.

O sol de inverno, começava a despontar por cima da casa do Silvestre Velho. Nos últimos tempos, toda a gente percebia que alguma coisa não ia bem com o velhote. Não se deixava ver. A idade não perdoa e não demoraria muito a ir até ao “Alto-da-Bonita”.

À mesma hora, no lugar de cima, encostado à esquina da taberna do Ramos, lá estava o “observador” de nome Calado, mas que todos chamavam “Caladinho”, visto, raramente falar. Os seus sentidos mais apurados eram o ouvido e o olhar e havia quem dissesse que também o olfato, tal era o apuro com que lhe “cheirava” a fatiotas e gabardines cinzentas. Das poucas vezes que falava ou sussurrava com os colegas da fábrica, não parava de olhar em volta. Em jeito de aviso, dizia aos amigos — cuidado com o que dizem porque “as paredes têm ouvidos”.

Do lado do “Olival”, vindo da pedreira do Ti Miguel, aproximou-se o Coutinho que era Bernardino, que nunca entendeu a maior parte do discurso do Caladinho. Ia meter pela goela, um de três, tinto, mas antes, cumprimentou o amigo e perguntou-lhe pelas novidades.   

— Oh, Bernardino que não és Coutinho, novidades a bem dizer, não tenho. Com tudo censurado com o “lápis-azul”, é muito difícil haver novidades antes da distribuição da “folha-do-costume”.

— Mas oh, “Caladinho”, o “Rio-das-Sesmarias” disse-me, quando lá passei, que o Presidente da Junta ia mudar de sítio. Então isso não é uma novidade?

— Chiu!! (sussurra o “Caladinho”) Fala baixinho!! Tens de ter cuidado porque a “bufaria” não desarma e Caxias não fica assim tão longe. Sim! Eu sei dessa mudança, mas isso não é no nosso tempo.

— Não é agora? Então como é que o “Rio-das-Sesmarias” sabe?

— Sabe, porque ele, “O Rio-das-Sesmarias”, é eterno e ainda não para de “correr” em frente. É certo que vão querer dar cabo dele, vão querer roubar a água das suas nascentes, mas ele, como sabe o futuro, em cada “tempo” vai reagindo e contrariando essas maléficas intenções.

— Oh! “Caladinho”, se ele sabe o futuro, porque não diz ao Chico da Beloura, onde estão as ovelhas tresmalhadas?

— Coutinho que és Bernardino, não podes comparar a gestão do rebanho de ovelhas do Chico, com a importância do “apagamento” da Freguesia de S. Pedro de Penaferrim que, ainda assim, só vai acontecer lá muito mais para a frente. Antes disso, o “Botas” vai cair duma cadeira, vão inventar uma “primavera” que nunca acontecerá, os “bufos” e a Pide vão mudar de nome, mas continuarão perseguindo antifascistas, os “reservistas” vão trocar a cor do lápis, mas continuarão a censurar, e num “abril”, “depois-do-Adeus” e de “Grândola-Vila-Morena”, os “figurões” irão dentro e o povo sairá à rua em “liberdade”. Logo de seguida, a “Guerra-das-Áfricas” acabará e os soldados virão para casa.

— Oh! “Caladinho”, com tanta coisa, até fiquei engasgado! Como é que sabes tudo isso? Eu cá a mim, parece-me que é tudo bom!

— Não és só tu, Bernardino que não és Coutinho, que conversas com o nosso amigo “Rio-das-Sesmarias”.

— Está bem, pronto! Então, mas com essas coisas todas que disseste, para onde irá o Presidente da Junta de São Pedro de Penaferrim?

— Bom, depois de tudo aquilo e no caso de não se verificar a profecia que tantas vezes oiço; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, vai aparecer um novo “figurão” — sim, porque essas sementes de má índole, “rebentam” de vez em quando — que inventará, contra os interesses das populações e no meio de um “mandato”, uma fórmula matemática com régua e esquadro, para diminuir a quantidade de “freguesias”.

— Então, “Caladinho”, queres tu dizer que a nossa freguesia vai acabar?

— Oficialmente não, mas na prática, sim! O pior é que não vão perguntar nada a ninguém. Cozinham lá a coisa nas assembleias e nos executivos e o povo, “népia”! Nada lhes vai ser perguntado. Alguns, vão prometer reverter a situação logo seja possível, mas acho que depois, quando o povo lhes pedir explicações, não se vão lembrar dessas promessas e assobiarão para o lado.

— Bom, voltando ao nosso tempo, será que o Chico da Beloura já achou as ovelhas?

— Não sei, Coutinho que és Bernardino, mas se não as encontrou, vai encontrar. Por enquanto, ainda se consegue ser “Prior nesta freguesia”. A estória das ovelhas fui eu que inventei só para dar início ao escrito porque até agora e por mais algum tempo, “todos os caminhos vêm dar à Abrunheira”.

Mas que esta “União” não encaixa, lá isso não!

 

Abrunheira, 24 janeiro de 2021 (Dia de eleições presidenciais)

Silvestre Brandão Félix

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

DE OLHOS FECHADOS


O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde estavam.

À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”, sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico.  Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.

E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.

O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido, certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e, fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.

Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.

E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.

Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à “Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …

Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”, para chegar à hora do chefe?

O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.

Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CHUVA, RIO DAS SESMARIAS E AS BRUXAS


— Finalmente, sinto que estou a dar uso à minha capacidade de corrente e, a aplicar as minhas competências nos limites das margens. Como me sinto “cheio” com esta abençoada água. Que chova! Que chova!

Desabafa assim o nosso amigo Rio-das-Sesmarias que, ansioso andava, pela pouca chuva caída até este último dia de outubro.

Recuando meio século, ou mais, durante este dia, já por lá teriam passado alguns dos seus amigos e parceiros.

O Artista-Sapateiro seria o primeiro porque, perna mais comprida, assente fora da enxerga e aí, que lá vai também a mais curta, depois as duas e rapidamente direitinhas à margem nas traseiras da casa, para aliviar o resultado do trabalho noturno, da máquina digestiva. Era uma visita diária obrigatória, embora “malcheirosa”, mas ainda assim, necessária ao começo de mais um dia, a maior parte do tempo sentado no tripé rústico que, num dia já distante, contado em, para mais de 30 anos, ele tinha resolvido construir. Foi há tanto tempo que a “maria-faladeira”, parceira de casa e de pouco mais, ainda não era velha.

 Já de dia, também passaria por ele, o nosso amigo e conhecido Coutinho que era Bernardino. A primeira vez ainda iria leve, pois, as sopas de cavalo-cansado que a Caracoleta lhe facultou ao levanto, não lhe pesavam assim tanto. Ao contrário do Caga-à-Chuva, que empurrado era, pela desesperada vontade de “obrar”, o Cientista-da-Pedra ia ter com os seus companheiros de vida e de ciência. Era uma motivação diferente. É claro que, com o correr do dia, a leveza da manhã, ia-se transformando no habitual “so-li-dó”, de idas à menina Emília, ao Faial ou Ramos, emborcar “ciganas” ou “charretes”, conforme a hora.

O Rio das Sesmarias tinha sempre água corrente com fartura, mas agora, o sítio do Rio está lá, mas água é que… nem por isso. Ontem e hoje correu alguma, a medo, mas se não chover mais, amanhã praticamente já não haverá água.

Será bruxedo?

Silvestre Brandão Félix
31 outubro de 2018
Gravura: Google

domingo, 24 de junho de 2018

ENTRE AS BRUMAS DA MEMÓRIA


“Entre as brumas da memória”;

as boas sardinhas nas Festas de São Pedro, o caos no estacionamento à entrada, a bela “Juveniana”, agora, transformada num monte de entulho, a “Boa Viagem” a abarrotar até à Estação de Sintra e, agora, a scotturb 446 sempre vazia quando vai da Abrunheira, só para Chão de Meninos, as estórias do “Caga-à-Chuva” pelas manhãs de domingo à hora da missa, água corrente no Rio das Sesmarias e os pêssegos rosa da horta, as saborosas amoras no caminho para os “Celões”, as fogueiras dos “Santos” com as alcachofras a arder, o Sporting cativo de BdC, já era e a Junta de Freguesia do lado de cá, da Serra.

Mesmo agora, neste ano dezoito, cem depois do armistício da primeira, alguns dos campos sobrantes à roda da Terra onde o Coutinho que era Bernardino, levava os dias entre a Judite e a pedreira, seu laboratório exclusivo, onde desenvolvia as investigações, a coberto do único tratado alguma vez elaborado e compilado para a “Ciência da Pedra”, mesmo agora… dizia, ou melhor, escrevia; deparamos com ondas de lindo lilás que brota das dezenas ou centenas de alcachofras em flor. 
  
Se a flor da alcachofra, qual fénix reflorida, depois de queimada na fogueira do Santo devoto, o amor era verdadeiro com certeza.

Costumes que a memória guarda, com todas as incertezas do mundo.

Certo! Certo! Só outra coisa: O Bernardino que não era Coutinho era Cabouqueiro e tinha a “Ciência da Pedra”.

O resto, são palavras e leva-as o vento que, por cá, até sopra com fartura!

Silvestre Brandão Félix
24 de junho de 2018 (Dia de São João do lado de cá, da Serra)
Foto: Google

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

MERCADO DE SÃO PEDRO, OS SONHOS E AS GRANDES SUPERFICIES

Estivesse a complicada máquina digestiva a funcionar como devia e, a, ainda mais complicada e importante tarefa e função intestinal no ponto certo do trânsito, e o “Artista Sapateiro”, bem cedinho, ao levantar o primeiro sinal de luz do dia, se chegava às traseiras, fora do leito corrente, viradinho para a horta e, de cócoras, em jeito confortável quanto bastasse, para que bem ficasse a perna mais curta, e assim cumprir o que de mais sagrado um homem podia fazer; aliviar o corpo do que já não presta e que ainda por cima, cheira mal.

Este momento diário, era tido como audiência ao grande amigo e possuidor de grande sabedoria: O Rio das Sesmarias!

O Ti J’oquim Cagachuva, fizesse sol ou “chuva”, fosse inverno ou verão, não lhe falhava esta meia-hora em cada santo dia. Muitas vezes, os sonhos eram vagos e nublosos, mas, outras, via-os com tal claridade que, melhor os sentia que a realidade do dia-a-dia.

Ido que está o seu tempo de andarilho pelas terras e terriolas, casas e casais, quintais e quintas na procura de calçado carente da sua arte, e gasta que está a juventude que lhe temperava as passagens pelas festas e bailaricos do Linhó, Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Amoreira, Abuxarda, Alcoitão, Bicesse, Manique de baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira e por aí fora que não lhe chegava a memória de tanto sítio por onde passou. Ficava-lhe então, muitas lembraduras e uma outra componente, não menos importante.

Os sonhos! Isso, o Ti J’oquim não para de sonhar com as coisas idas e com as coisas vindas, ou melhor, que hão de vir.

Eu, que aqui estou no papel de narrador, ouvi muitas dessas cenas, algumas seriam reais, outras inventadas por ele e, ainda, outras, resultado dos contínuos sonhos que o “Artista Sapateiro” tinha com fartura.

Aquela manhã, tinha vindo com algum orvalho e, por isso, as ervas da margem do Rio das Sesmarias, estavam bem molhadas. O outono fazia o seu trabalho.

Depois das saudações habituais e de estabilizada a posição e a função acima descrita, o Ti J’oquim Cagachuva, requer a atenção do Amigo Rio, para lhe contar o inacreditável sonho daquela noite.

Tinha seguido “por esses caminhos acima” como era costume. Sem saber logo para onde ia, percebeu que tinha chegado a Ranholas, mas, ainda aí, muitos destinos podiam acontecer, até… valha-me Deus, até o Alto da Bonita. Depois do portão da Quinta do Ramalhete, ali bem na curva, o sonho logo o plantou na frente da “Campa-dos-Dois-Irmãos”. Percebeu logo que estava lá muito para frente no tempo, porque, a campa, estava do lado direito de quem sobe.

O sonho continuou e, embora o Ti J’oquim não conhecesse uma letra do tamanho dum comboio, garantiu ali, naquela posição de cócoras, que estava dezassete de tempo contado em anos a seguir ao ano dois mil, o tal que, sempre lhe disseram, nunca iríamos passar. A sua mulher, Margarida faladeira e sabe tudo, bem lhe dizia que tudo isso era mentira. Que haviam de passar o dois mil e o três, se preciso fosse.  

Pois é, dois mil e mais dezassete, segundo domingo de novembro, dia de mercado e às dez da manhã.

— Oh Amigo Rio das Sesmarias, tu que sabes destas coisas e conheces todos os abrunheirenses, diz-me cá; como é possível naquele dia, aquela hora, naquele sítio, não me cruzar com ninguém? Ainda no domingo passado fui ao mercado e, ao chegar ao Ramalhão, mais ou menos às dez da manhã, já não se podia andar, tal era a quantidade de gente.

O Ti J’oquim tinha ficado desapontado com o sonho que o atirou quarenta e sete em tempo contado em anos, para a frente, mas, por isso mesmo, fez questão de o contar todinho ao Amigo Rio das Sesmarias.

Bom, o que é certo é que o sonho continuou e, duma penada, estava encostado ao Chafariz da curva do alto de São Pedro a olhar para o mercado, ou melhor, para o sítio do mercado. Que via ele? Uns quantos toldos, muito poucos, que não ocupavam metade do largo.

Isso mesmo! Muito poucos, a quantidade não interessa, mas para quem conheceu o mercado a abarrotar e a sair pela 1º de dezembro até Chão de Meninos, com uma enorme lista de espera de lugares, é triste, muito triste, mesmo que fosse só num “sonho-mau” do Artista-Sapateiro da Abrunheira.

O pior mesmo, é que não é sonho, é mesmo verdade!

Será que ainda há tempo de salvar o mercado de São Pedro?


Silvestre Brandão Félix
16 novembro de 2017
Foto: Fonte de São Pedro (sintraroteiroturistico)-(Google)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

SANTO ANTÓNIO E O GALO, O RIO E PARA ONDE FOI A ÁGUA

“Outro galo (não) cantaria”, não fosse, a vontade, a dedicação e a paciência do Vicente da Colónia, de lá, ter trazido, o cata-vento que, por obra e habilidade dos dois da Virgínia, o Ti Zé e o Ti Manel, com a serventia do Albano e de muitos outros abrunhenses – incluindo o meu pai Zé, que, para todos os efeitos e conhecimento, lhe chamavam Zé Silvestre e ele aceitava, sendo o acrescentado, como era uso, nome do pai, que, neste caso, era meu avô e padrinho de batismo – o terem colocado no “carrapito” do telhado-alpendre da bica, ali armada, em honra do Santo António que, desde aquele longínquo início da segunda metade do século vinte, passou a ser, também, Da Abrunheira.

Água com fartura, muitos dias até demais porque, à volta dos bebedouros e dos tanques de lavar a roupa, se chapinhava e, quem lá fosse, cuidado tinha de ter, para não enfiar os calcantes na lama, muitas vezes bem misturadinha com o resultado da remoedura, digestão e eficaz transito intestinal, das vaquinhas, Marcina, Estrela, Bonita e, muitas vezes, também da Carocha.    

Todos eles, os mestres construtores, serventes e mais abrunhenses ajudantes e, depois, os utilizadores da bica, da mina, das pedras roçadas de tanta roupa lá ser batida, e da água limpinha que bem lavava e voltava a correr sempre nova, e bem como as minhas vaquinhas e a Carocha, se indignariam com as patifarias e sem-vergonhices levadas a cabo por prevaricadores sem rosto, se por cá voltassem agora – em tempo de (des) uniões da europa, de freguesias e com dois amalocados em cada ponta do planeta, a disputarem a sua própria destruição – e vissem como está tudo seco de água, tanto no verão como no inverno.

E a mina, de água cheia sempre estava, boa e gostosa para matar a sede, agora, se se abrir a porta, em fossa pestilenta está transformada.

Onde está a água? Para onde foi? Perguntariam a Ti Maria do Florindo, a Ti Maximina ou a Ti Silvéria.

Protestaria, e muito, pela seca, também o João Barriga ou Ti Artur Germano. Não era, que muito amantes fossem de água lisa da bica do Santo António ou de qualquer outro sítio. Como acontecia com a maioria dos homens e, porque não, de algumas mulheres da Abrunheira, para bebida ia melhor tinto ou branco, desde que estivesse cheio, o copo ou a garrafa, e amarinhasse até aos neurónios e os deixasse contentes e anestesiados para uma boa sesta.

Do mesmo mal, da falta de água de verão e da maior parte do inverno, se vem queixando aos amigos e atravessadores, o Rio das Sesmarias. Sim, o mesmo que, num projeto camarário parido à pressa e com o cordão umbilical a apertar-lhe o gasganete, lhe quiseram trocar o nome e a categoria.

Classificaram-no como ribeira e deram-lhe um nome de uma terra que está pertinho do Estoril. Aqui, na Abrunheira, sempre se chamou Rio das Sesmarias e é assim que queremos, continue. Porque “carga-de-água”, agora haveria de ter um nome diferente? Os “senhores-inteligentes”, se não sabem, venham perguntar aos abrunhenses como se chama o seu rio.

Retomando as queixas do nosso Rio das Sesmarias, constata-se que há uns tempos, o seu leito está mais tempo seco do que molhado, ao contrário do que era habitual. Mesmo no inverno, corre sempre de fininho até vir uma chuvada. Aí, sobe até meio e, em poucas horas, volta ao “fininho”. Se não chover nos quinze dias seguintes, de “fininho”, passa a parado até voltar a chover outra vez. No verão, seca completamente.

Os atravessadores agora são muitos, mas como a maioria passam encavalitados em andantes de duas ou quatro rodas, sempre cheios de pressa e a grande velocidade, não há oportunidade nem tempo de entabular uma conversa digna desse nome, para além de, nem repararem na presença do nosso Rio das Sesmarias. Diz ele, que tem saudades da companhia do “Artista-Sapateiro”, Ti Joaquim Caga-a-Chuva e do “Cabouqueiro” que tinha a “Ciência-da-Pedra”, Coutinho que era Bernardino.

Eles sabiam, tal como o Rio das Sesmarias, tanto no tempo em que a Ti Mariana Soleto, mãe do Bernardino que não era Coutinho, dele tomava conta, como depois de se ter entregue aos carinhos da Judite Caracol, e do Ti Joaquim ter vindo com a Margarida dos “ditos-e-contos”, do Linhó, para a nossa terra, que todos os viventes que acompanhavam o seu leito desde o cimo da Abrunheira, no Olival e por trás do Cipriano, em frente à horta e por baixo da ponte da colónia, por trás do Santo António, pelos quatro-donos e arroteia até à casa-da-água, passando pela Azenha do Sebastião Moleiro na Capa-Rota, e por aí abaixo iam até à foz, foram morrendo e, hoje, nem enguias que, quando passavam pelo cano até ao poço da horta, eram quase da grossura dum braço, nem ao menos rãs, sapos ou girinos, sobrevivem no pouco tempo de água.

Voltando ao Santo António, que em boa hora tem, neste tempo, cuidadores dedicados que garantem a dignidade do sítio, mesmo que a água corrente já lá não esteja. Somos gratos por esse cuidado e dedicação.

Em tempos, outras e outros cuidadores, pelo local olharam. Lamentando o meu fraco índice “memorial”, decorrente do crescente “litígio” à medida que a PDI avança, com a desorganização dos ficheiros de nomes no rígido, que cada vez está mais mole, torna impossível indicá-los sem os inevitáveis falhanços. De maneira que, quando me surgem dúvidas, não arrisco nomeação, ficando com o ónus de alguma injustiça pela omissão.

Um que nunca esqueço, não sei se alguma vez assumido, o de cuidador, mas, pelo menos, guardador de proximidade, foi. A horta por cima da mina, era o seu local de trabalho preferido e, de hortelão, sabia ele. O Ti Mendes, com aquela comprida barba amarelada, por causa da fumarada que permanentemente por ela passava, dava-lhe um ar de sábio. Acho que, de verão ou de inverno, de casacão se vestia e, dos seus grandes bolsos, sacava os cachimbos que ele construía a partir das melhores canas da horta.

Grandes baforadas, deitava, em troca da ausência de faladura. O ritual enchimento da grande fornalha, caracterizava-se pela função imprescindível daquela grande unha, calcando o tabaco para o seu interior. 

Por ali, sempre se via e, se não estivesse, era porque ia até à casa da fruta do Pechincha, ou subia pelo Largo do Chafariz até ao Álvaro ou à “Menina-Emília”. 

Típica figura que associo sempre ao Santo António. Também o Ti Mendes, hoje, sentiria falta da água corrente da mina e, por consequência, do “treu-laréu” do mulherio a lavar a roupa nos tanques.

Para onde foi a água?

Silvestre Félix
18 de setembro de 2017

Fotos: Google (publicadas no extinto blog «aldeiaviva)

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

MOBILIDADE ADIADA, CHARNECA ESQUECIDA E A LOUCA CORRERIA DA CAROCHA


Mobilidade (urbana), era, na certa, palavrão ausente do vocabulário dos abrunhenses de há quarenta ou cinquenta em tempo contado em anos.

Ainda por cima, se fosse reduzida, como é detetável e provada nestes dias do último quartel da segunda década do século XXI, depois do atrofiamento “troikadero” e no meio da pressão sobre a “geringonça”.

Tem dias, em que um abrunhense, para conseguir chegar ao Palácio da Vila, à Volta do Duche ou, ao ainda, Centro de Saúde, precisa de “suar as estopinhas”. Se levado por qualquer andante de quatro rodas, pode correr o risco de chegar a Chão de Meninos ou pouco mais abaixo, e alinhar na “bicha” até lá abaixo.

Se este abrunhense, pela zona alguma vez cirandou usando os pedantes em tempos de menos fartura, sabe que pode meter pela esquerda em pelo menos duas alternativas (não tem nada a ver com a atual maioria na AR) e ser brindado com uma das melhores vistas da Serra, o Jardim da Vigia, e deixar-se escorregar até ao “Morais”, Tuna e Estação. Se não, pode demorar meia-hora, uma hora ou mais e, lá chegado, estacionamento? Nem o cheiro, quanto mais o lugar.

Como tantas vezes já me dizia o Ti Joaquim “Caga-à-Chuva”, queixando-se da utilização da carreira “Boa-Viagem” que vinha de Oeiras e parava lá em cima a seguir ao “Café Brasil”, demorando dez minutos até à Estação de Sintra, passando por Chão de Meninos. Que continuava a preferir ir a pé até à “ajuntadeira”. Naquela época, não entendia a lógica. A carreira era muito depressa para a sua noção de tempo.

Como gostariam os utilizadores das carreiras de hoje, poderem demorar dez minutos, em percurso direto até à Estação de Sintra, por Chão de Meninos e a preço aceitável.
  
O normal, nesses idos tempos do “Artista Sapateiro”, de antes e depois da revolução, era a velocidade que a “Carocha” dava à carroça e a disposição que tinha, naquele preciso momento, para obedecer aos “mandamentos” da Ti Augusta. Atrelada que estava e decerto manifestando o seu desagrado pelo peso e desconforto dos arreios, cabresto enfiado pela cabeça abaixo e o freio na boca, assim que se lhe soltou as guias, aí foi ela “desencabrestada” e só parou quando muito bem entendeu. Saiu do quintal e difícil foi virá-la à direita e, assim que se apanhou no alcatrão, correu pela Largo do Chafariz com o Tavinho dum lado e o Ti Álvaro do outro a assistirem à corrida e, pelo Olival, que ela conhecia bem, rolou até à curva. Aí, a Ti Augusta, com muita dificuldade, lá a encaminhou pela esquerda em direção à Quinta Lavi e aos eucaliptos.
 
E então, a sorte passou-lhe à frente (da Carocha) e, a nós também, porque cambaleados na carroça, de vento na cara e cabelos voando, não teríamos tempo para nada, se, passados os eucaliptos e chegados ao cruzamento da Charneca, o mercedes 280 que vinha do lado de Lisboa, não tivesse travasse a fundo, dando primazia à que chamávamos burra, mas que de burrice não tinha nada.

Ela sabia que o caminho era à esquerda, mesmo que nunca tivesse demonstrado qualquer simpatia por essa opção ideológica e, quando se aproximou do Chafariz da Charneca (D. Maria I), saiu do alcatrão e estancou em frente ao bebedouro, metendo umas litradas para dentro do bandulho.


A Ti Augusta, que até ali nem tinha tido tempo para respirar, desce da carroça e, dirigindo-se à orelha direita da Carocha, agarrando-a e, como se estivesse a falar para dentro dum grande funil, disse-lhe, num tom bem repreendedor, daquelas boas, que ninguém gosta de ouvir.

Eu, muito quietinho, não estava a perceber nada. Então, a minha mãe subiu, agarrou as guias, destravou a carroça, puxou a guia esquerda fazendo a Carocha recuar o veículo um metro ou pouco mais e, com um ar triunfante como muitas vezes lhe via, atiçou a Carocha encaminhando-a para a estrada e aí fomos nós em trote controlado, até virarmos em Ranholas, à direita, para Vale-Porcas que ainda não era Vale Flores.

Também me lembro bem, que a viagem de regresso, carregada de erva acabada de apanhar para as vaquinhas, correu uma maravilha e, a D. Carocha, nada de aventuras. As grandes orelhas oscilavam conforme a voz da minha mãe se fazia ouvir. Quando chegamos, e depois de a desatrelarmos da carroça e de a libertarmos dos arreios, cabresto, freio e demais acessórios “prisioneiros”, a Ti Augusta teve uma longa conversa com a Carocha, deu-lhe a guloseima preferida, fez-lhe a doze certa de festinhas e, acredito eu, igual, a burra que “era esperta que nem um alho”, nunca mais voltou a fazer. 

A minha mãe foi apanhada desprevenida e teve muito medo no cruzamento. Contou-me depois, que chegou a pensar que o carro viria contra nós e que, incluindo a Carocha, ia tudo p’ro “maneta”. A Ti Augusta conversava com os seus animais. E, duma forma geral, porque os tratava bem, conseguia que lhe obedecessem. Foi o que aconteceu ali, junto ao Chafariz da Charneca.

A propósito de Charneca, ali, naquele sítio, em menos dum quilómetro quadrado, foram, do ponto de vista da toponímia, ignoradas designações originais dos locais e pessoas: Charneca, Chancuda, Casal da Charneca, Ti Zé da Charneca ou Chafariz da Charneca. Não tenho nada contra as personalidades usadas para as vias e rotundas da zona, sendo que, algumas, se calhar, até mereciam ruas, rotundas ou avenidas mais importantes. Condenável é, na minha opinião, não serem levadas em conta, para este efeito, a tradição, os nomes dos sítios e pessoas, quando é necessário colocar uma placa toponímica.

Pois é, da “mobilidade-urbana-reduzida”, fiz jus à expressão e, entusiasmado com a lembrança daquela viagem até Vale-Porcas com a minha mãe e encarroçado na velocidade louca da Carocha, escrevi pouco. E é um tema tão importante para os abrunhenses. Fica para a próxima.

Silvestre Brandão Félix
Abrunheira, 11 de setembro de 2017

Foto tirada por mim: Chafariz da Charneca (D. Maria I – Século XVIII) 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

NORTE DA ABRUNHEIRA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA AO PÉ DE CASA.

— Desnorteado estou eu, com a ventania que por aí anda! Diz que não, diz que não te tira o sono e depois queixa-te!
— Oh Coutinho, mas então, o que me interessa a mim, o que vai acontecer daqui a cinquenta ou sessenta anos?
— Ai não te interessa, não?
— A mim, não! Nessa altura já sou tijolo bem ressequido.
— Pois a mim interessa-me, e muito. Estão a meter-se com o nosso amigo Rio-das-Sesmarias. Eu cá, já estou habituado às “trocas e baldrocas”; tanto me chamam Bernardino que não sou Coutinho, como Coutinho que sou Bernardino e outros nomes e alcunhas que agora não vem ao caso, mas, com o Rio-das-Sesmarias, “fia mais fino”. Nortadas à parte, não posso “levar à paciência” que lhe troquem o nome.
— Concordo contigo mas …
— Mas o quê??!! Não me digas que não te importas que, passando muito tempo lá para a frente; contado em anos pr’aí uns cinquenta ou sessenta, venham uns gajos de gravata dizer que não eras Artista-Sapateiro, que ignoravas a “geografia-ao-pé-de casa”, que não usavas boné, que te chamavas Manel e que cagavas ao sol em vez de o fazeres à chuva?
— Tens razão, Coutinho! Mesmo já não andando por cá, sabendo duma aldrabice dessas, não ficava nada satisfeito. Estou disposto, contigo e com quem mais tu achares de valia, a lutar pela verdade, eliminando, com quantas cajadadas for preciso, a ignorância e o desnorte que por aí abunda.

E os dois “Abrunhenses” lá foram andando, do “Lugar de Baixo”, a sul, para o “Lugar de Cima”, a norte. Passaram o Santo António, o “Espanhol”, o “Silvestre-Velho” que, como comandante à proa do navio, do alto da varanda, olhava os trabalhos a decorrer nas terras abaixo da Colónia e até ao Linhó, pela esquerda e, à direita, até aos “barros” — sessenta, contados em anos de tempo para a frente, os “inteligentes”, chamar-lhe-ão: Norte da Abrunheira-Norte — mesmo à beirinha da estrada, do lado de cá da “chancuda” que, para além da nascente, ainda recebia muita água da regueira, desde o “penedo”, rentinha ao fundo do “Casal-Novo”. Tão absorvido estava que nem respondeu à saudação dos dois passantes. Aproveitando bem o tempo solarengo, em conluio com o São Martinho, o “Silvestre-Velho” mobilizava as suas duas juntas-de-bois e todo o pessoal disponível, acelerando o amanho para que, antes do Natal, grande parte das sementes estivessem na terra. Da varanda, e como se todos o ouvissem e vissem, bracejava e gritava os impropérios do costume — Ah, “almas do diabo”; “raios-os-partam”; “filhos duma égua”; etc., etc.,.

Caminhavam pela “principal”, com o amigo Rio-das-Sesmarias à esquerda, correndo no sentido inverso ao deles; de norte para sul. Podiam ter metido pela “Azinhaga do Rio”, à esquerda, a seguir ao quintal do Rafael Coxo e junto à escolha da fruta do “Pechincha”, mas não o fizeram. Sob o olhar e cumprimento do Ti Mendes, que muito fumo pelas beiças e ventas deitava, por cada forte puxada no bocal do cachimbo de cana feito, rumaram na direção do Chafariz e o destino era a taberna da “Menina Emília”. O Coutinho que era Bernardino estava com ganas de emborcar uma “charrete” e, o “Artista-Sapateiro”, também.

Ambos sabiam que “o norte” era o caminho daquele dia e daquele tempo. Por aquela que, vinte, mais tarde, contados em anos, seria a “Travessa do Norte”, e a desembocar na “Rua das Sesmarias” filha adotiva do nosso RIO que, pelo menos, lá pelos tempos de D. Fernando “o primeiro”; se passou a chamar, aqui, na Abrunheira; “Rio-das-Sesmarias”. Que não se contem os anos, desde o princípio do último quartel do século XIV, que são muitos e tempo suficiente para que, para lá da profecia; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, não se admita tamanha ofensa ao nosso RIO; chamar-lhe “Caparide” e, ainda-por-cima, “ribeira”??!!

Vagarosos, como se queria naquele verão emprestado de novembro, lá foram, com a “charrete” da Menina Emília e mais — porque assim que meteram ao “Cipriano”, viraram no beco para a adega do Pena — duas ou três canecas da melhor água-pé deste planeta e de todos os outros que o universo tenha, em direção à passagem de pé-posto, do nosso querido Rio-das-Sesmarias. Ele estava no seu sítio, corria bem direitinho, de norte para sul e sem solavancos, que o chovido não era assim tanto mas, muito acabrunhado.

Chegou primeiro o Coutinho, pois a perna aleijada do “Artista-Sapateiro” — e mais o que lhe passou pela goela, a caminho dum estômago bem atestado de acidez e ávido de matéria para desfazer, e mandar rapidamente para o “delgado”, ganhando velocidade no trânsito, mesmo sem mesinhas e outras artimanhas, para que não estacione muito tempo no “grosso” — fizeram com que viesse mais atrás. 
 
— Então, amigo Rio-das-Sesmarias? Como vais correndo?
— Vou levando a minha água, dando passagem de ida e volta, com direito a recreio, às enguias do poço da nora, na horta e pomar dos pêssegos-rosa que o “Zé Silvestre”, trás. Levo água para que os “girinos” nasçam, cresçam e, lá para março, despontem lindas e coloridas rãs, que coaxam sem parar; para que os animais dos Abrunhenses se satisfaçam do líquido precioso; para que os agriões que crescem nas minhas margens, completem saborosas saladas verdes, enfim; da encosta de Ouressa, engrossando com o “fio” nascido no Penedo, irmanado com a da Chancuda, que pelos “Barros” vêm a mim: “Rio-das-Sesmarias”, antes e depois da Abrunheira até à “Azenha” do Ti Sebastião, na Capa-Rota. Depois, já não me importo, porque pelos “Bernardos” vou tomando outros nomes que, de mim, só a água levam. E vocês? Como vão encarando as notícias que, do norte, nos trazem?

Cada pé em sua pedra, com a anuência do “acabrunhado” RIO, passaram, como sempre faziam, para o lado da pedreira que, do Ti Miguel, ainda seria, por muito tempo contado em anos. O Bernardino, que Coutinho não era, tomou como assento a, que dizia sua; pedra. Pegou no bornal, que se quedava no ombro esquerdo, e posou-o no chão, com muito cuidado. Num dos alforges, trazia ferramentas de trabalhar a pedra, como se fossem tubos de ensaio do mais moderno laboratório. A “Ciência-da-Pedra”, que era a sua, só podia ser “manobrada” pelos mais delicados instrumentos. No segundo alforge, que balançava à frente, o Coutinho que era Bernardino, trazia o seu farnel que a Ti Mariana Soleta lhe tinha preparado antes de sair de casa, ao mesmo tempo que lhe recomendava — Ai “Be’nardine filhe, nã me vás pa’taberne embo’car vinhe” (aqui não entra a ”história” do Coutinho, por razões óbvias. Se, para quem lê, não for assim tão óbvio, espere por outro escrito ou vá ver os antigos) e que tinha; Uma “cigana” cheínha, um quarto de pão-escuro e um bom naco de toucinho-entremeado que, logo chegado à pedreira, lhes daria o devido tratamento que, mesmo correndo o risco do “Artista” me acusar de desvio do tema ou matéria, como lá muito para a frente, no longínquo século XXI (se, a dois mil passarem) os políticos velhos e os aprendizes, vão gostar de dizer muitas vezes; não resisto a “mostrar”, por antecipação, aquele que, sempre era, um laudo banquete!  

Na principal bancada do seu “laboratório”; a pedra que servia de mesa para comer e poiso para as ferramentas, Bernardino que não era Coutinho, tira do bornal o papel-pardo do costume, estende-o na “mesa”, e coloca-lhe em cima; o pão-escuro, o naco de toucinho e a “ciganita”. Como comer e beber, ritual sempre foi e será, respeitando o cerimonial, saca do bolso a sua indispensável navalha-curva (de enxertar), com jeito e delicadeza que só mãos e dedos habituados a “tocarem” a ciência, mesmo que, de pedra seja, abre-a e, com um gesto certeiro de tantas vezes repetido, passa os dois lados da lâmina da navalha, pela ganga das calças da perna direita, logo acima do joelho, e inicia o corte preciso dum bocado de pão. Findo este, idêntico manuseamento faz ao toucinho e, juntando os dois pedaços, mete-os na boca, iniciando uma função de mastigação que, só viria a ser completa, com um trago de vinho emborcado diretamente da “cigana”.

Noutra, bem ao feitio e tamanho da “padaria” do Artista-Sapateiro, lá se sentou ele, segurando, num repente, a beata presa ao beiço de baixo, que lhe ia caindo. O único dente que despontava da “cavidade” bocal, bem espetado na gengiva de baixo, não era suficiente para lhe prender, bem, o cigarrito. E, como que reagindo ao tropeço, meteu “estopa” e iniciou faladura sapiente sobre viagens há muito empreendidas; Não fosse, ele, Artista-Sapateiro, dos bons, contador de histórias e cenas que ele sabia e repetia. Muito ele calcorreou, perseguindo clientela de meias-solas para patrões das quintas e jornaleiros, desde a(s) Malveira(s) (dos bois e da Serra) até aos “Estoris”, passando pelas Azenhas e Janas, subindo para Almoçageme, Penedo, Eugaria até ao outro lado em Paço-de-Arcos, Quinta da Estribeira, Leião até Belas, pelo outro lado em Odrinhas, São-João-das-Lampas, Linhó ou Parede, Caparide, Murtal, etc., etc.. O Artista-Sapateiro conhece o percurso do nosso Rio-das-Sesmarias, até à foz, na Costa-do-Sol entre São João e São Pedro do Estoril. Por acaso até passa junto a Caparide, a mais-ou-menos três quilómetros da foz e quinze da Abrunheira mas, chamarem ao nosso amigo Rio-das-Sesmarias, “ribeira de Caparide”, não lembra a ninguém que saiba um pouquinho de “geografia”.

— Oh Coutinho, tive agora uma ideia de “estalo”; vamos teletransportar lá para a frente, cinquenta ou sessenta de tempo contado em anos, uma “Petição pública” para reposição da verdade e recuperar os nossos valores históricos, exigindo que, no âmbito dos estudos e planos “nortenhos” para a Abrunheira, se chamem as coisas pelos nomes, como é o caso do Rio-das-Sesmarias.
— Oh Artista-Sapateiro, essa de “teletransportar” não é no gozo comigo, não?
— Não! Estou mesmo a falar a sério, Coutinho! Não tem nada a ver com a tua tentativa de travessia do Oceano Atlântico até ao Brasil com o Sacadura que era Borrego.
  
E o Rio-das-Sesmarias lá corre com toda a lisura, mas acabrunhado.

Só quer a verdade!

Silvestre Félix
4 de Dezembro de 2014


terça-feira, 22 de julho de 2014

CALCORREANDO

Muito calcorreávamos as ruas da nossa Terra porque de máquinas andantes ainda nem o inferno estava cheio, quanto mais o céu. Mesmo as bicicletas só chegavam a bolsos mais aconchegados. O alcatrão ainda era pouco porque as ruas, a principal e as outras, «nos dedos duma mão, bem cabiam»! O caminho era negro desde a entrada, à padaria, em direção ao Chafariz e um pouco mais “ralo” (via-se mais pedras que alcatrão) no largo até à menina Emília, pelo Sigamó até ao Olival. Daí para cima até à estrada na curva, era calçada à portuguesa um bocado mal- amanhada. Para baixo do Chafariz, pela principal, o alcatrão era melhor até acabar a seguir à curva do Ti Faneca. Até onde vai a lembradura desta descrição, o “Curronquinho” ainda não tinha alcatrão e muito menos vivendas. Era o caminho mais apetitoso para calcorrear. Tinha sempre uma erva muito rentinha, parecia relva plantada. Da curva até ao nosso castelo em ruinas era sempre relvinha fofa. Esta fortaleza, onde espadeirávamos horas a fio, estava um bocadinho a seguir, onde muito tempo depois, com a construção do bairro, havia de ser plantado o “nosso” café – primeiro do Ramos e depois do Cabaço.

Também de relvinha fofa calcorreava, com o Zé Fernando, Zé Augusto, Rui, Fernando Pedroso, Filomeno e, se calhar, com mais outros que a minha memória negligenciou no ficheiro do tempo, aquela que era azinhaga desde a esquina da casa da fruta do “Pechincha”, junto ao Rio das Sesmarias, até ao passadouro para o lado da pedreira do Ti Miguel. Onde agora, na segunda década deste desgraçado século XXI, existe uma ponte, O das Sesmarias autorizava que o atravessássemos colocando os andantes nas pedras altas que, uma-a-uma, nos levada à outra margem. Muitas vezes, pela relvinha, calcorreávamos com os nossos “carrinhos-de-arame”, para desembocar, não no Rio, mas subindo à direita até à oficina (dos carrinhos-de-arame) do Zé Fernando. Aí, reparávamos todas as avarias endireitando as rodas e reforçando as ligações ao eixo de direção que era uma cana bem comprida que levava o volante até à altura do condutor. Também na oficina preparávamos os atrelados que, quase sempre, derivavam de “dignas” e, antes, nutritivas latas de conservas nacionais. Naquela época, já de arreliados dias bélicos pelas colónias e onde, irmãos ou primos mais velhos, por obrigação, guerreavam a mando do salazarento regime, as conservas eram sempre nacionais. Não carecia de verificarmos a origem do atum, da sardinha ou das enchovas. Não corríamos o risco de utilizarmos atrelados que tivessem vindo dos “nuestros hermanos”, como agora, neste desgraçado século XXI que já vai na segunda década e onde, cada vez mais, sinto inglórias as grandes batalhas nos céus da Europa em guerra, protagonizadas (do lado dos que aprendi a serem os bons nos muitos “quadradinhos” que devorei) pelo Major Alvega. 

Muito andávamos a pé e, alguns de nós, “dos putos”, literalmente. Nem todos tinham o “privilégio” de poder usar, nos pés; botas, sapatos ou, simplesmente, chinelos. Calçados ou descalços lá calcorreávamos os caminhos da Abrunheira, juntos ou sozinhos, com a maior das naturalidades. Os calçados, para trabalho dos sapateiros que, cá na Terra, eram verdadeiros artistas. Não contando com outros também famosos que já não eram, que deles se dizia e eu ouvia «tivessem a alma em descanso» como o “Sapateiro de Manique” porque era de Manique, claro está! Muitos contos (de histórias, não de dinheiro) me narraram deste sapateiro que por companhia tinha o “Cabeço de Manique” e que, para além de amanhar botas e outro calçado, também tinha rebanho de ovelhas que lhe completava o rendimento no leite, lã e na feitura de eiras para debulha de cereais durante o verão. Por isso mesmo, o Silvestre Velho não prescindia da sua vinda. “Velho” no meu avô não era nome, era da idade e dos cabelos e bigode brancos. Os filhos homens que com ele andavam na lida do campo e os que por outras bandas se governavam, eram conhecidos pelo nome próprio mais o do pai que, assim, funcionava como alcunha, sendo que, quando se referiam ao verdadeiro Silvestre, acrescentavam o “Velho” para não se confundir com os filhos.

Ainda na onda dos sapateiros, outros havia que a alcunha não tinha nada a ver com o nome do pai ou avô, como o Ti J’aquim (Cagachuva), mas decerto com outras circunstâncias nada simpáticas para o simples olfato de qualquer abrunhense. Bom artista de calçado e muito bom contador de histórias. Sempre as ouvia com gosto mesmo sendo uma segunda, terceira ou décima vez contada. É assim como aqueles filmes que vemos vezes sem conta, e sempre gostamos como se, de primeira, sempre seja. Outro artista sapateiro havia, que se foi deste mundo há bem pouco tempo já neste desgraçado século vinte e um. O Zé Celorico, como a minha Mãe lhe chamava porque veio de Celorico da Beira. Com o Ti Zé partilhei labuta – a minha primeira na condição de assalariado. Na Atil, que já não é, eu e muitos rapazes da minha idade, na dita, com catorze de tempo contado em anos – um puto, aprendíamos a disciplina e as agruras do operariado. Não é do meu “ser”, nem teria razões para me queixar. Era bem tratado e por lá, na secção de pintura, o Ti Zé Celorico pintava tudo o que de embelezamento precisava.

A adesão à classe trabalhadora naquela altura foi por vontade própria, porque, acreditava, a alternativa estudantina, para mim, era bem mais dura. A Ti Augusta fez tudo o que lhe estava ao alcance para me convencer do contrário, mesmo sofrendo todos os dias com o meu começo de jornada desde a Abrunheira até ao Cacém…

“Escuro, mas muito escuro e a chuva caía às dez para as seis da manhã como já caía às dez da noite de ontem.
— Não filho, assim não! Descalça lá os botins primeiro! Isso! Põe o pé aqui no banco. A Mãe vai enrolar o jornal nas tuas pernas para não ficares com frio. Já podes calçar este botim. Agora a outra perna, põe aqui o pé! Isso! Assim ficas mais quentinho!
— Oh Mãe! Deixo ficar assim, todo o dia?
— Sim! Não tires antes de chegares a casa!
— Com a saca bem presa à cintura, não molhas as pernas! Segura bem o chapéu-de- chuva junto à cabeça. Quando vires a camioneta a chegar, desatas o cordel e deitas a saca fora!
— Tá bem Mãe, até logo!  
— Tem cuidado, vai sempre p’la beirinha e olha bem quando atravessares para os “plásticos”. Dá cá um beijinho!

A chuva caía sempre! Gostava mais de ir pelos eucaliptos até à Charneca, embora mais longe e descampado, porque pela quinta “Lavi” até aos “plásticos” era muito escuro e no pinhal parecia que estava sempre lá alguém escondido…tinha medo! Os botins pesavam e chapinhavam na água acumulada. A camioneta do “Eduardo Jorge”, muito amarelinha, passava às seis e vinte da manhã. Quando entrava às oito no Cacém, não tinha outra hipótese. E os botins frios e pesados. E a professora de Matemática… que raio de lembrança. Corredores, escola velha, escola nova, oficinas, recreio e sandes de mortadela no Ti Rodrigues com sobremesa de cigarrito a dois, cinco tostões. O fulano da “Mocidade Portuguesa”, o “chefe de castelo” ou lá o que era, não nos largava. Insistia comigo e com outros para não faltarmos no sábado. Desde que o tipo me obrigou a marchar sozinho, nunca mais lá pus os pés. Andavam sempre a dizer que contava para a “nota” mas era mentira.”

Calcorreando uma vida inteira por esses caminhos. Chegados ao largo, que pode ter “Chafariz” ou não, que deveria ter todas as saídas embelezadas e de piso direitinho sem pretextos para tropeções, deparamo-nos com um muro fechado a toda a volta e, na maior parte das vezes, a azinhaga donde viemos também se fecha atrás. 

É urgente encontrar uma brecha no muro para continuarmos o “calcorreamento”. Tem de haver uma falha!

— O que achas oh Bernardino que não és Coutinho? Consegues guiar-me para esburacar a parede? (pergunta de picareta – ferramenta da caixa do Coutinho que era Bernardino)
— Acho que sim! (diz o Coutinho que era Bernardino). Com a minha força delegada em competência, pelo povo da nossa “Terra”, e com toda a “ciência da pedra”, arte minha aperfeiçoada em muito tempo de anos contado, e com a tua rijeza de bom ferro fundido em forja bem quentinha, vou conseguir enfiar-te pelo muro dentro e encontrar uma saída, mesmo que seja muito estreita!

Silvestre Félix

(Factos e outros não, ficcionados na minha onda incluindo alguns nomes reais e outros inventados.)


22 de Julho de 2014  

sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011