O alcatrão da principal rua da Abrunheira, esburacado andava
todos os santos dias e, também, todos os que não eram. Mesmo no sonho mais
recorrente, desde a porta de casa até aos destinos mais estapafúrdios, as
pedras que saltavam dos buracos, conhecia-as todas e sabia o local exato onde
estavam.
À saída do portão, a saudação amigável do “Artista” que
dobrava e moldava as solas e aplicava a calda milagrosa nos contrafortes das
botas mais rijas e, nas manhãs de domingo, dava brilho aos meus sapatos a troco
dum ou dois cigarritos. Três quartos atrás, lá estava a “Giribita-Faladeira”,
sempre à “coca” de matéria, para mais um mexerico. Mesmo sonhador, nem parava, senão, nem a das oito
apanhava, quanto mais a dum quarto-prás-oito.
E os cheiros? Todinhos sem falhar. Conforme corria, corria e
corria, sem conseguir ver o “fundo-do-túnel”.
O cheiro do leite mungido por nove dedos que o espremiam, rápido,
certeiro e direitinho ao ferrado que o levava ao coador e ao espremedor e,
fresquinhos, haviam de sair, em queijos feitos pela Ti Ermelinda. Aquele cheiro
do leite filtrado pelo forte odor do curral das ovelhas, “mil-anos-que-viva”, não
me hei de esquecer, mesmo que pelo sonho venha.
Naquele sono sobressaltado, não faltava o cheiro tão singular
do pescado da lota de Cascais. Era mesmo ali a seguir e outra vez com uma
narina entupida pela inclinação da cabeça, aliviava, mas não tirava o cheio do peixe
que, naquele dia, se iria comer na Abrunheira e boa parte de Mem Martins.
E eu corria, corria …, mas como sempre acontece, pouco
progresso fazia, pois, os pés, nem do chão saiam. Logo vinha o cheirinho das
vacas à direita numa fase em que os buracos no alcatrão abrandavam e, depois do
Chafariz, embalava pela apertada à esquerda.
Contava com o habitual saltinho sobre a regueira, em frente à
“Juveniana” e, depois, o passeio de calçada dos prédios novos do mesmo lado e
sonhava, sonhava … tanto de tempo em anos contados e sonho, sonho …
Lá vem a dum quarto-prás-oito. Qual queres? “Palhinha” para
Mem Martins e diferença dum comboio mais cedo, ou Boa Viagem para Sintra, à “Barão”,
para chegar à hora do chefe?
O despertar só vem, e é sempre, quando estou encostado na
esquina do António Zé, com o cheirinho a bagaço e o sol a dar-me nas “trombas”.
Silvestre Brandão Félix
14 novembro de 2018
Gravura: Google
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