Com as tripas à mostra estava, acabadinho de ser esventrado,
pelo habilidoso jeito ao canivete, dado pelo Luís, para que assim pudesse
desfrutar das miudezas, com atraso, pela velhice, mas todas a mexer, não fosse o aparelho, um Tissot, com quase
quarenta anos.
Explicava-me o Luís, possuído duma tal fascinação que, até a
mim, puto de nove ou dez anos — sem nada perceber de rodas de balanço, cordas
assim e assado, dentadas d’aqui, dentadas d’acolá — me entusiasmava para ver
como é que a coisa chegava ao fim, quer dizer; o arranjo! Sim! Porque se estava
na mão do Luís, era sinal que estava avariado. Pois, porque aquela máquina espetacular,
tinha chegado ao Luís, porque se estava a atrasar meia-hora por dia e o dono
até já queria substitui-lo por um mais moderno, de pulso. O Luís tratou de o convencer
que não, que o velhinho, ainda ia durar muitos anos no bolso dele, bastava que se
limpasse e ajustasse o que havia para ajustar. Ele se encarregava de o fazer!
Eu gostava de o ver destripar os relógios e a arranjá-los com
aquelas ferramentas muito pequeninas. Naquele dia, explicou-me tudo à medida
que ia mexendo no velho Tissot de
bolso. O que é certo, é que no dia seguinte estava certinho. Foi todo limpinho
e uma “dentada”, que ele me tinha mostrado, foi ajustada na justa e necessária
medida.
Pelas duas janelas se via, ao longe, o cimo da torre da Pena
e a Cruz Alta. Mais na encosta, Santa Eufémia que, de lá, com certeza também
nos observava e, se fosse caso disso, nos corrigia o caminho porque, se ela
falasse, muita história contaria. Algumas, consumadas a todos os primeiros dias
de maio, olharia bem para os lados antes de o fazer, porque a bufaria por todo
o lado andava escutando.
Mais perto, quase a nossos pés, o Rio das Sesmarias e a
saudosa horta. É como se estivesse a olhar agora; o Rio tinha água que corria…
corria… na horta os pêssegos rosa estavam quase maduros.
Era dali, das janelas ou da varanda, que o Silvestre Velho, antes, via o mesmo e as
searas até à beira da Colónia, desde
o Cerrado da Fonte até aos Celões.
O Luís, para além de conhecer por dentro e por fora, as
máquinas que dão horas, também sabia e sabe tudo sobre os bombeiros do concelho,
principalmente dos de Sintra e, ainda duma forma muito especial, dos de São
Pedro, não fosse de lá, que veio.
Quando me apanhava a jeito, tinha sempre novidades dos bombeiros.
Que eu saiba, nunca foi bombeiro, mas sabia (e ainda saberá) a história das
associações e, de São Pedro, até dos fundadores; do Tibúrcio e do Alfredo Esteves
que não era Esteves.
Neste tempo, em que tudo pode girar à volta dum telemóvel na
mão, mas mesmo tudo — podemos ter a nossa vida completa numa coisa destas que,
por acaso, também serve de telefone — como é que ainda temos capacidade para recordar
(os mais velhos), como era importante sentirmos um relógio preso por uma
corrente à casa de um botão do colete que, por sua vez, se colocava no bolsinho,
quase sempre do lado esquerdo?
São as “passadas” do
tempo ou,
— Faz bem que tenhamos sempre presente a importância
relativa das nossas coisas ou, daquelas, de que nos servimos. Para o Luís, naquela
altura, era muito importante saber dos relógios e de tudo o que se passava nos
bombeiros da nossa terra. É claro que as prioridades dele hoje são outras, mas,
ainda assim, continuará a avaliar, quanto importante era a “bomba-braçal” que o
Tibúrcio e o Alfredo Esteves (que não era Esteves)
conseguiram adquirir para o Corpo de
Bombeiros de São Pedro, naqueles idos do princípio do século XX, ainda em
regime monárquico da Casa de Bragança —
são as nossas “passadas”
pelo tempo?
Silvestre Brandão Félix
12 dezembro de 2018
Foto: Relógio de Sol
(Google)
Que a eternidade do tempo, lhe dê descanso e paz depois desta fugaz passagem pela vida que todos temos.
ResponderEliminarObrigado pela participação, Luís. Abraço
ResponderEliminar