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quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

AS HORAS DO LUÍS, RELÓGIOS E OS NOSSOS BOMBEIROS


Com as tripas à mostra estava, acabadinho de ser esventrado, pelo habilidoso jeito ao canivete, dado pelo Luís, para que assim pudesse desfrutar das miudezas, com atraso, pela velhice, mas todas a mexer, não fosse o aparelho, um Tissot, com quase quarenta anos.

Explicava-me o Luís, possuído duma tal fascinação que, até a mim, puto de nove ou dez anos — sem nada perceber de rodas de balanço, cordas assim e assado, dentadas d’aqui, dentadas d’acolá — me entusiasmava para ver como é que a coisa chegava ao fim, quer dizer; o arranjo! Sim! Porque se estava na mão do Luís, era sinal que estava avariado. Pois, porque aquela máquina espetacular, tinha chegado ao Luís, porque se estava a atrasar meia-hora por dia e o dono até já queria substitui-lo por um mais moderno, de pulso. O Luís tratou de o convencer que não, que o velhinho, ainda ia durar muitos anos no bolso dele, bastava que se limpasse e ajustasse o que havia para ajustar. Ele se encarregava de o fazer!

Eu gostava de o ver destripar os relógios e a arranjá-los com aquelas ferramentas muito pequeninas. Naquele dia, explicou-me tudo à medida que ia mexendo no velho Tissot de bolso. O que é certo, é que no dia seguinte estava certinho. Foi todo limpinho e uma “dentada”, que ele me tinha mostrado, foi ajustada na justa e necessária medida.

Pelas duas janelas se via, ao longe, o cimo da torre da Pena e a Cruz Alta. Mais na encosta, Santa Eufémia que, de lá, com certeza também nos observava e, se fosse caso disso, nos corrigia o caminho porque, se ela falasse, muita história contaria. Algumas, consumadas a todos os primeiros dias de maio, olharia bem para os lados antes de o fazer, porque a bufaria por todo o lado andava escutando.

Mais perto, quase a nossos pés, o Rio das Sesmarias e a saudosa horta. É como se estivesse a olhar agora; o Rio tinha água que corria… corria… na horta os pêssegos rosa estavam quase maduros.

Era dali, das janelas ou da varanda, que o Silvestre Velho, antes, via o mesmo e as searas até à beira da Colónia, desde o Cerrado da Fonte até aos Celões.    

O Luís, para além de conhecer por dentro e por fora, as máquinas que dão horas, também sabia e sabe tudo sobre os bombeiros do concelho, principalmente dos de Sintra e, ainda duma forma muito especial, dos de São Pedro, não fosse de lá, que veio.

Quando me apanhava a jeito, tinha sempre novidades dos bombeiros. Que eu saiba, nunca foi bombeiro, mas sabia (e ainda saberá) a história das associações e, de São Pedro, até dos fundadores; do Tibúrcio e do Alfredo Esteves que não era Esteves.

Neste tempo, em que tudo pode girar à volta dum telemóvel na mão, mas mesmo tudo — podemos ter a nossa vida completa numa coisa destas que, por acaso, também serve de telefone — como é que ainda temos capacidade para recordar (os mais velhos), como era importante sentirmos um relógio preso por uma corrente à casa de um botão do colete que, por sua vez, se colocava no bolsinho, quase sempre do lado esquerdo?

São as “passadas” do tempo ou,

   Faz bem que tenhamos sempre presente a importância relativa das nossas coisas ou, daquelas, de que nos servimos. Para o Luís, naquela altura, era muito importante saber dos relógios e de tudo o que se passava nos bombeiros da nossa terra. É claro que as prioridades dele hoje são outras, mas, ainda assim, continuará a avaliar, quanto importante era a “bomba-braçal” que o Tibúrcio e o Alfredo Esteves (que não era Esteves) conseguiram adquirir para o Corpo de Bombeiros de São Pedro, naqueles idos do princípio do século XX, ainda em regime monárquico da Casa de Bragança —

são as nossas “passadas” pelo tempo?

Silvestre Brandão Félix
12 dezembro de 2018
Foto: Relógio de Sol (Google)

domingo, 30 de setembro de 2018

LIVRA-NOS OS "INTELIGENTES"... LAGARTO! LAGARTO!


Devia ser por esta altura do ano porque, poucos dias depois, sempre a 7 de outubro, comecei a escola na 3ª ou 4ª classe, lá, na velhinha, naquela que deu o nome à atual Rua da Escola.  
 
Tudo como costume, saia para o “monte” com a Marcina, a Branquinha, a Estrela e a filha que ainda não tinha nome, e a nossa espertalhona, Burra Carocha. Aguentei-as um bocado do lado de dentro do portão porque o Ti João estava a sair com o seu rebanho de ovelhas.

A Belinha, porque me sentiu, saiu do meio do rebanho a balir, toda contente, e veio ter comigo pedir uma festa. Não lhe dei uma, dei-lhe várias. Na forma de comunicação dela, balindo, lá me disse alguma coisa, carinhosa decerto, e voltou para junto das suas companheiras de rebanho. A Belinha ficou sem mãe quando nasceu e eu comprometi-me com o Ti João a criá-la.

A Ti Augusta ao princípio não ficou muito contente, mas depois… não queria ela outra coisa e fartou-se de chorar quando a “borreguinha” voltou para o rebanho. Ela e eu! Andava em casa como se fosse um gato ou um cão, lá bebia o biberon e, muitas vezes, ia ter comigo à cama. Claro, cresceu rapidamente e não podia lá continuar. Mas todas as vezes que nos via ou sentia, não se calava e só, se não podia, é que não vinha ter connosco.

Bem, entretanto, o rebanho lá foi e, a seguir, mandei o meu “pessoal” sair, devagar. Elas já sabiam que, antes de mais nada, iam beber água ao Santo António. A Carocha era sempre a primeira e quando lá chegava com as vacas, ela já tinha meio bandulho cheio de água.

Como acontecia todos os dias, o tanque estava cheio de vizinhas a lavar a roupa, com aquele som característico de “tagarelisse”. Lembro-me de muitas caras, mas os nomes, é que é, pior; como é “público”, tenho uma relação muito conflituosa com a lembrança de nomes de pessoas e de coisas. Que hei de fazer? É com certeza a PDI. Mas consigo sempre lembrar-me da Ti Maria do Florindo, da Ti Ilda do Zé N’olas, da Ti Maximina e é melhor não arriscar mais.

Bom, bandulhos cheios, respostas educadas para as “lavadeiras” e, ala que se faz tarde, até aos Celões, mesmo nas "bochechas" do Linhó. Naquela altura, a erva já tinha rebentado o suficiente para o saboroso pasto das “minhas-ruminantes”, e elas, mais ou menos, já sabiam o caminho, era só preciso dar um toque na altura certa porque havia mais do que um destino possível.


Naquele caso, o destino era o mais longe, mas também o preferido porque tinha muita escolha. Do Santo António virávamos à direita, mais à direita ao Ti Alexandre, depois de passar as “Pateiras” outra vez à direita passando ao Chamiço e, mais à frente, atravessando o nosso Rio das Sesmarias e, um pouco acima, a regueira dos barros que lá à frente, antes dos “Quatro-Donos”, desaguava no Rio das Sesmarias. 

Quando estávamos a chegar à esquina dos “Celões”, a Carocha, que já ia lá à frente, parou e recuou dois passos, ficando assim a olhar para as silvas com as orelhas bem esticadas e, arreganhando os dentes, zurrou! O caminho não era muito largo, mas consegui que as vacas a contornassem e passassem à frente, continuando até à entrada dos “Celões”. Ela, a Burra espertalhona, tinha “pegado ali de estaca” e continuava com os dentes arreganhados e, de vez em quando, batia com a pata direita.

Depois das “outras” estarem em segurança da parte de dentro dos “Celões” e a iniciarem a função do pasto, olhei para o mesmo sítio da Carocha e o que vi: Um lagartão bem verde, especado e feito parvo a olhar para ela. Desde a ponta do rabo, até à cabeçorra, tinha aí meio metro. Antes que ela lhe pusesse a pata em cima, fiz barulho com o pau e o nosso amigo acordou daquela letargia hipnótica, e arrastou-se para dentro das silvas e carrascos.     

Teve muita sorte, o lagartão, de não estar por perto o meu primo Fernando ou, até, o Zé Augusto, porque senão, não se safava assim.  

Tempo bem controlado pelo relógio de sol antes construído no cantinho onde costumava passar o tempo, e, vamos lá embora de regresso. Chamado o “pessoal”, lá vieram e, como sempre, a “dona” Carocha à frente toda lampeira. Quando passamos pelo sítio onde antes estava o “lagartão”, todas passaram, mas a burra-espertalhona parou. Ela sabia que, há duas horas, tinha estado ali a namorar o “rastejante”. Eu quis entender o que ia naquela cabeça que eles diziam ser de burra e, quando a vi arreganhar a dentuça e zurrar na direção que o lagarto tinha tomado e bater duas ou três vezes com a pata direita no chão, percebi que de “burra”, como nós entendemos, não tinha nada. Fiz-lhe uma festa no pescoço e dei-lhe uma carinhosa palmadita no quadril, e lá arrancou, genuinamente contente, com o “tempo de glória” que lhe tinha dado.

Esta lição, ainda a trago hoje comigo.

Até os “burros” gostam de ter o seu tempo de glória e de antena, quanto mais os “inteligentes”!

Ao longo da vida, infelizmente, muitos “inteligentes” por mim passaram… e ainda conheço alguns!

Silvestre Brandão Félix
30 setembro de 2018
Gravura e Foto: Google   

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

SOMBRA DAS ÁRVORES, O FORNO, A PONTA DA ÁGUA E OS SONHOS

Fascinado ficava, com a variedade de cores que, depois de arrefecido e das pedras de cal retiradas, se via nas paredes e no poço do “forno”. Era o resultado dos escorrimentos incandescentes que, fornada a fornada, se iam verificando, digo eu, completo desconhecedor científico da matéria, mas apreciador do colorido e formas estampadas no “forno” do “Cerrado-do-Forno”.

Eu não sabia, mas o Zé Fernando explicava-me tudo. O pai dele, Ti Abílio, também era “forneiro”. Passava meses seguidos tomando conta de fornos, como este. Só voltava a casa quando a “cozedura” estava concluída e, aí, contava as aventuras ao Zé Fernando, mas também lhe dizia a parte mais séria, ou seja, a técnica de preparação e efetivação, até toda a “abóboda” de pedregulhos cair, de cozida, no fundo do “forno”.

Ele, que absorvia todas as estórias e ensinamentos que o pai lhe trazia, não descansava enquanto não as punha em prática e, muita vez, fui seu parceiro na construção de mais um “forno-de-cal” de brincadeira.

Entre uma cozedura e outra, ao contrário de quando estava em laboração, ninguém dormia no anexo existente para o efeito e, durante o dia, também ninguém lá parava. O meu pai e a minha mãe, constantemente me diziam para não ir ao forno porque era muito perigoso. E era verdade, o fundo era como se fosse um poço, só que não tinha água e, pelas beiras, podia haver sempre alguma pedra que se desprendesse. Mesmo assim, e levado pela curiosidade, algumas vezes lá fui para admirar aquela dança de cores lustrosas nas paredes.

Aquela margem direita do “Rio-das-Sesmarias”, entre a ponte e o caminho da “Colónia” e o quintal do Ti Rafael, marcaram a minha segunda infância e tornaram-me inteiramente devotado ao que lá existia: A horta, que assim chamávamos, mas que muito mais tinha, o poço e a nora, o tanque de rega, e, lá mais acima, o “forno-de-cal”. Pelo meio, o campo de cultivo e, depois da “ceifa”, muitas vezes transformado na “eira” do Silvestre-Velho, para a debulha e enfardamento dos cereais cultivados nos seus terrenos à roda da Abrunheira, e não só.

Ao abrigo dos canaviais, que separavam os talhões, e à sombra dos pessegueiros, das nespereiras, das ameixeiras, das macieiras, dos limoeiros ou das pereiras, muitas caminhadas fiz pelos regos que levavam a água do tanque até às hortícolas, que o meu pai continuamente semeava ou plantava. Corria à frente da ponta da água, e, lá adiante, com o sacho bem aconchegado de terra seca, a encaminhava para o rego lateral, tapando, como se porta fosse, o rego principal. E, depois deste, seria outro, e mais outro e sempre assim, juntinho com a fonte da vida até ficar tudo alimentado e fresquinho.  
  
Nos meus oito, nove ou dez de idade, contada em anos, olhava, praguejava e lamentava a caminhada monótona da “Carocha”, em círculos à volta do poço, fazendo com que os alcatruzes da nora se deslocassem até ao fundo, onde estava a água e, de volta, chegassem ao cimo, virando-se e despejando a água que ia diretamente para o grande tanque, contentando o grande cágado que por lá andava. Até agora, tanto tempo passado, e como me lembro bem da chinfrineira provocada pelo movimento da nora, que abafava tudo à volta, incluindo as passadas da “Carocha”.

O meu mundo estava ali.

Ao contrário, de manhã, na escola, enfiando a atenção na história de Portugal daquém e dalém mar, na geografia do império do Minho a Timor, nas linhas de caminho de ferro da metrópole, de Angola e, principalmente de Moçambique, nas dezenas de rios que desaguavam em três oceanos diferentes, nas serras, que subiam em direção a constelações do hemisfério norte e do hemisfério sul, em climas temperados e tropicais, e também na gramática, na tabuada, nos problemas e na geometria avançada para a época.

Tudo isto, eu sabia que tinha de aprender, mas o que eu gostava mais, era da horta, da sombra das árvores que davam deliciosas frutas, da Carocha, da Marcina, da Estrela e da Bonita que —  tantas vezes já ditos— por esses caminhos acima, as levava a pastar até aos “celões”, fronteira com quinta do Ti Zé da Beloura e de mais caminhos até ao Linhó e à Colónia.

Gostava de ter por perto o Rio-das-Sesmarias, os melros e os pintassilgos que, por ali, muito saltitavam. E o grande rebanho de ovelhas do meu tio João que, na ida e na vinda, se abeiravam da margem para comporem do precioso líquido, a remoedura. Do meio, lá vinha em correria na minha direção, a antes, borreguinha, que eu e a minha mãe criamos em casa a biberon e que, ovelha adulta, nunca esqueceu quem lhe deu mimos e alimento quando ela mais precisava. Berregava em saudação, lambia-me as mãos e, depois de lhe fazer a habitual festa, regressava contente para o pé das companheiras.  Tanto tempo depois, o universo dos complicados sonhos que muitas noites me atormentam o sono, ainda passam, uma ou outra vez, por aqueles locais e por aqueles dias, que foram reais.

Compensando a falta dessas coisas boas que já não são, sopraram-me há tempos, que, a preservação do “forno-de-cal” do “Cerrado-do-Forno”, estava garantida. Se assim vier a ser, fico muito contente pelos motivos pessoais que aqui foram escritos, e tenho a certeza que a maioria dos abrunhenses ou abrunheirenses como outros dizem estar correto, também ficarão.

Não sei quando será nem como o vão fazer, mas, para já, o que resta do “forno” não vai ser demolido e, algures para a frente no tempo, todos poderão ver como se fazia cal, indispensável para a construção e revestimento das habitações, até à década de sessenta do século vinte.

Silvestre Brandão Félix
9 de outubro de 2017
Fotos: (1)Ruínas do Forno de Cal do “Cerrado-da-Fonte” na Abrunheira. Tirada hoje, por mim. (2) Desenho-esboço de Forno de Cal (Google).