Devia ser por esta altura do ano porque, poucos dias depois,
sempre a 7 de outubro, comecei a escola na 3ª ou 4ª classe, lá, na velhinha, naquela
que deu o nome à atual Rua da Escola.
Tudo como costume, saia para o “monte” com a Marcina, a
Branquinha, a Estrela e a filha que ainda não tinha nome, e a nossa
espertalhona, Burra Carocha. Aguentei-as um bocado do lado de dentro do portão
porque o Ti João estava a sair com o seu rebanho de ovelhas.
A Belinha, porque me sentiu, saiu do meio do rebanho a balir,
toda contente, e veio ter comigo pedir uma festa. Não lhe dei uma, dei-lhe
várias. Na forma de comunicação dela, balindo, lá me disse alguma coisa,
carinhosa decerto, e voltou para junto das suas companheiras de rebanho. A
Belinha ficou sem mãe quando nasceu e eu comprometi-me com o Ti João a criá-la.
A Ti Augusta ao princípio não ficou muito contente, mas
depois… não queria ela outra coisa e fartou-se de chorar quando a “borreguinha”
voltou para o rebanho. Ela e eu! Andava em casa como se fosse um gato ou um
cão, lá bebia o biberon e, muitas vezes, ia ter comigo à cama. Claro, cresceu
rapidamente e não podia lá continuar. Mas todas as vezes que nos via ou sentia,
não se calava e só, se não podia, é que não vinha ter connosco.
Bem, entretanto, o rebanho lá foi e, a seguir, mandei o meu
“pessoal” sair, devagar. Elas já sabiam que, antes de mais nada, iam beber água
ao Santo António. A Carocha era sempre a primeira e quando lá chegava com as
vacas, ela já tinha meio bandulho cheio de água.
Como acontecia todos os dias, o tanque estava cheio de
vizinhas a lavar a roupa, com aquele som característico de “tagarelisse”.
Lembro-me de muitas caras, mas os nomes, é que é, pior; como é “público”, tenho
uma relação muito conflituosa com a lembrança de nomes de pessoas e de coisas.
Que hei de fazer? É com certeza a PDI. Mas consigo sempre lembrar-me da Ti
Maria do Florindo, da Ti Ilda do Zé N’olas, da Ti Maximina e é melhor não
arriscar mais.
Bom, bandulhos cheios, respostas educadas para as
“lavadeiras” e, ala que se faz tarde, até aos Celões, mesmo nas "bochechas" do Linhó. Naquela altura, a erva já
tinha rebentado o suficiente para o saboroso pasto das “minhas-ruminantes”, e
elas, mais ou menos, já sabiam o caminho, era só preciso dar um toque na altura
certa porque havia mais do que um destino possível.
Naquele caso, o destino era o mais longe, mas também o
preferido porque tinha muita escolha. Do Santo António virávamos à direita,
mais à direita ao Ti Alexandre, depois de passar as “Pateiras” outra vez à
direita passando ao Chamiço e, mais à frente, atravessando o nosso Rio das
Sesmarias e, um pouco acima, a regueira dos barros que lá à frente, antes dos
“Quatro-Donos”, desaguava no Rio das Sesmarias.
Quando estávamos a chegar à esquina dos “Celões”, a Carocha,
que já ia lá à frente, parou e recuou dois passos, ficando assim a olhar para
as silvas com as orelhas bem esticadas e, arreganhando os dentes, zurrou! O
caminho não era muito largo, mas consegui que as vacas a contornassem e
passassem à frente, continuando até à entrada dos “Celões”. Ela, a Burra
espertalhona, tinha “pegado ali de estaca” e continuava com os dentes
arreganhados e, de vez em quando, batia com a pata direita.
Depois das “outras” estarem em segurança da parte de dentro
dos “Celões” e a iniciarem a função do pasto, olhei para o mesmo sítio da
Carocha e o que vi: Um lagartão bem verde, especado e feito parvo a olhar para
ela. Desde a ponta do rabo, até à cabeçorra, tinha aí meio metro. Antes que ela
lhe pusesse a pata em cima, fiz barulho com o pau e o nosso amigo acordou
daquela letargia hipnótica, e arrastou-se para dentro das silvas e carrascos.
Teve muita sorte, o lagartão, de não estar por perto o meu
primo Fernando ou, até, o Zé Augusto, porque senão, não se safava assim.
Tempo bem controlado pelo relógio de sol antes construído no
cantinho onde costumava passar o tempo, e, vamos lá embora de regresso. Chamado
o “pessoal”, lá vieram e, como sempre, a “dona” Carocha à frente toda lampeira.
Quando passamos pelo sítio onde antes estava o “lagartão”, todas passaram, mas
a burra-espertalhona parou. Ela sabia que, há duas horas, tinha estado ali a
namorar o “rastejante”. Eu quis entender o que ia naquela cabeça que eles
diziam ser de burra e, quando a vi arreganhar a dentuça e zurrar na direção que
o lagarto tinha tomado e bater duas ou três vezes com a pata direita no chão,
percebi que de “burra”, como nós entendemos, não tinha nada. Fiz-lhe uma festa
no pescoço e dei-lhe uma carinhosa palmadita no quadril, e lá arrancou, genuinamente
contente, com o “tempo de glória” que lhe tinha dado.
Esta lição, ainda a trago hoje comigo.
Até os “burros” gostam de ter o seu tempo de glória e de
antena, quanto mais os “inteligentes”!
Ao longo da vida, infelizmente, muitos “inteligentes” por mim
passaram… e ainda conheço alguns!
Silvestre Brandão Félix
30 setembro de 2018
Gravura e Foto: Google
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