No meio de mais um braçado de erva cortada rentinha pela
serrilha da foice movida pela sua força em jeito, deito-lhe mais uma pergunta:
— Oh, mãe, porque chamam ao Ti Rafael — Rafael “coxo”? Ele
não é coxo, nem nada!
Naquele ano, as primeiras águas vieram ainda em agosto e não
foram poucas. Não tínhamos chegado ao final de setembro e, em resultado dessa
chuva, dada a invulgaridade do tempo, a minha mãe já podia fazer um mimo à
Marcina, à Estrela, à Bonita e também à burra Carocha que, atrelada à carroça, na
espera, já ia provando aquela delícia verde e fresquinha.
— Oh, filho, agora que perguntas, deixa-me cá pensar…
Ao contrário do que era habitual, a minha mãe fica um bocado
engasgada, não responde logo e volto à carga.
— Não sabe porquê, mãe?
— Não é isso, é que … se calhar …
Observando aquela indecisão da minha mãe, fiquei preocupado e
até um pouco inseguro, porque não havia nada que lhe perguntasse, que não
tivesse resposta imediata. De repente, posando a erva que tinha na mão:
— Se calhar foi alguma altura em que o Ti Rafael torceu algum
pé ou se aleijou na perna e, coxeando, começaram a chamar-lhe “Coxo”.
— Ah, bem, estava a ver que não sabia…
Satisfeito com a resposta, decerto improvisada, a minha mãe
voltou à erva que, à medida que ficava solta pelo corte da foice, a mão
esquerda segurava e ia deixando num “monte” para, depois, juntar e fazer molhos
atados pelo meio, com uma corda que, numa das pontas, tinha um gancho em
madeira por onde a corda corria e, bem apertada, se fazia um nó.
Este acessório de madeira era descoberto preferencialmente
nos zambujeiros e, habilidosamente, cortado e acabado à mão pelo meu pai. Havia
muitas destas cordas com o dito gancho, lá em casa.
A propósito dos festejos que a URCA este ano realizou, e
sempre que tal acontece, lembro-me do meu tio Rafael. Este homem popular e
amigo de toda a gente, tinha um espírito empreendedor, como poucos.
Qualquer evento que se realizasse na Abrunheira, lá estava o
Ti Rafael com três tábuas armadas, fazendo de balcão, com os copos e as cervejas
logo a sair.
No fundo das minhas lembranças, permanecem as festas da
chegada da luz elétrica à Abrunheira, no antigo largo em frente à Quinta do
Olival e à Quinta de Santo António, no limite do atual Beco da Saudade. Lá
estava o Ti Rafael com a sua “tasca” alindada com folhas de palmeira, tal como
o palco e, para além de taberneiro, também assumia o papel de animador; metia
conversa com toda a gente, sempre com um grande sorriso e com uma deixa que a
manteve até ao fim:
“Tá, por’i, tá!
Lembram-se?
Silvestre Brandão Félix
23 setembro de 2018
Gravura: Arraial (Lisbonne Idee - Google)
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