domingo, 23 de setembro de 2018

CHUVA EM AGOSTO, AS FESTAS E O TI RAFAEL


No meio de mais um braçado de erva cortada rentinha pela serrilha da foice movida pela sua força em jeito, deito-lhe mais uma pergunta:

— Oh, mãe, porque chamam ao Ti Rafael — Rafael “coxo”? Ele não é coxo, nem nada!

Naquele ano, as primeiras águas vieram ainda em agosto e não foram poucas. Não tínhamos chegado ao final de setembro e, em resultado dessa chuva, dada a invulgaridade do tempo, a minha mãe já podia fazer um mimo à Marcina, à Estrela, à Bonita e também à burra Carocha que, atrelada à carroça, na espera, já ia provando aquela delícia verde e fresquinha.

— Oh, filho, agora que perguntas, deixa-me cá pensar…

Ao contrário do que era habitual, a minha mãe fica um bocado engasgada, não responde logo e volto à carga.

— Não sabe porquê, mãe?

— Não é isso, é que … se calhar …

Observando aquela indecisão da minha mãe, fiquei preocupado e até um pouco inseguro, porque não havia nada que lhe perguntasse, que não tivesse resposta imediata. De repente, posando a erva que tinha na mão:

— Se calhar foi alguma altura em que o Ti Rafael torceu algum pé ou se aleijou na perna e, coxeando, começaram a chamar-lhe “Coxo”.

— Ah, bem, estava a ver que não sabia…

Satisfeito com a resposta, decerto improvisada, a minha mãe voltou à erva que, à medida que ficava solta pelo corte da foice, a mão esquerda segurava e ia deixando num “monte” para, depois, juntar e fazer molhos atados pelo meio, com uma corda que, numa das pontas, tinha um gancho em madeira por onde a corda corria e, bem apertada, se fazia um nó.

Este acessório de madeira era descoberto preferencialmente nos zambujeiros e, habilidosamente, cortado e acabado à mão pelo meu pai. Havia muitas destas cordas com o dito gancho, lá em casa.

A propósito dos festejos que a URCA este ano realizou, e sempre que tal acontece, lembro-me do meu tio Rafael. Este homem popular e amigo de toda a gente, tinha um espírito empreendedor, como poucos.

Qualquer evento que se realizasse na Abrunheira, lá estava o Ti Rafael com três tábuas armadas, fazendo de balcão, com os copos e as cervejas logo a sair.

No fundo das minhas lembranças, permanecem as festas da chegada da luz elétrica à Abrunheira, no antigo largo em frente à Quinta do Olival e à Quinta de Santo António, no limite do atual Beco da Saudade. Lá estava o Ti Rafael com a sua “tasca” alindada com folhas de palmeira, tal como o palco e, para além de taberneiro, também assumia o papel de animador; metia conversa com toda a gente, sempre com um grande sorriso e com uma deixa que a manteve até ao fim:

“Tá, por’i, tá!  Lembram-se?

Silvestre Brandão Félix
23 setembro de 2018
Gravura: Arraial (Lisbonne Idee - Google)

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