quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
NATAL E ANO NOVO
Desejo a todos os meus amigos e amigas que habitualmente visitam este blogue, um feliz Natal e ótimo ano de 2018.
Que a amizade e a fraternidade vençam todas as adversidades da vida e, acima de tudo, que haja muita saúde.
Beijos e abraços para todos!
Silvestre Brandão Félix
20 dezembro de 2017
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
POPULISTAS, O BALTAZAR E AS OVELHAS COM O CIO
Sem saber como, em menos de nada, o Manel Fingido estava com
os quatro costados no chão. Ainda com as pernas a dar-a-dar, no ar, cabeçorra
ao léu porque, com a queda, a boina voou como se ventoinha fosse, gritava:
— Ai! Ai! Ai! Que o
cabrão do carneiro me mata! Tirem-no de cima de mim… ai, ai, ai… que eu morro
já aqui!
Enquanto o Manel Fingido gritava e tentava levantar-se, o
Tavinho, nas calmas dele e adivinhando o motivo de tamanha algazarra, porque,
logo pela fresquinha, o Baltazar lhe tinha arreganhado a dentuça, deixou o que
estava a fazer e, à entrada da casa das vacas, confirmando o suposto, assobiou
e chamou-o.
Pois é! Mais uma vez, o Baltazar tinha feito das suas. Desde borreguito
que tinha tomado o Largo do Chafariz como território seu e, ameaça que se
aproximasse, não hesitava nem perdoava; recuava um metro ou mais para tomar
balanço, raspava o chão duas vezes e, empinando-se só com as traseiras no chão,
com toda a força, corria com a encaracolada cornadura bem apontada e raramente
falhava o alvo.
O Baltazar, que continuava a marrar no Manel, que se mantinha
no chão com as mãos rodeando a cabeça, como se, de bombardeamento se
protegesse, estancou e virou-se na direção do Tavinho. Lá foi, como um cordeirinho
manso, roçar-se nas pernas do dono que ainda ria com mais esta investida do carneiro
Baltazar.
Finalmente, o Manel Fingido lá se conseguiu levantar e,
olhando à volta, louco de raiva ficou, quando percebeu que esteve a dar
espetáculo para muita gente. O Álvaro foi o primeiro a virar costas e a recolher
ao interior do balcão, o Ti Hilário, que tinha acabado de chegar, disfarçou e,
assobiando a melodia do fado do trinta e um, porque era quinta-feira, se fosse
sexta, teria assobiado a do fado hilário, também entrou na taberna atrás do
Álvaro. Para ele, estava na hora de mais um copito de dois branquinho, para
abrir o apetite.
Por cima do muro do quintal, também o Zé da Maria Alice tinha
espreitado a sessão. Até os gansos, parados do lado de cima do Largo, assim
lado a lado, como se fosse uma plateia, estiveram quietos e observadores
enquanto durou aquela desigual luta. O Zé da Natália e outros mais da Natália
que houvesse, também tinham assistido à “sessão” do Baltazar, mas, devagarinho,
desandaram.
Muitas vezes o Ti Veríssimo, embora achando graça ao
carneiro, tinha avisado o filho do perigo que era aquela “fera”. Até a Ofélia,
vezes sem conta, pedia ao Tavinho para acabar com a brincadeira, mas não havia
forma disso acontecer.
O Manel Fingido, amachucado como estava, certificando-se que
o carneiro não estava por perto, foi ter com o Tavinho pedindo-lhe satisfações
e exigindo a sua responsabilidade. Este, desculpando-se com a maluquice do
carneiro, enfim, que era para defender as ovelhas… que quando havia ovelhas com
o cio, era este desatino e mais assim e assado… porque tinha que lhe andar
sempre a pôr o avental e que, hoje, ainda não tinha tido tempo de o fazer.
O Manel não estava a achar graça nenhuma às explicações do
Tavinho. Mas o que tinha ele a ver com o cio das ovelhas? E o avental? Mas que
raio de conversa era aquela?
O Ti Hilário, com o característico sorriso nos lábios, bebido
e bem saboreado o “branquinho” que o Álvaro lhe encheu, encostado à ombreira da
porta, assistia às atabalhoadas explicações do Tavinho ao Manel Fingido. Do seu
peculiar silêncio, como era costume, retirava e ia reverter para o futuro, aí,
pelo menos, cinquenta de tempo contado em anos, o espetáculo que seria, o
Baltazar solto, sem avental, deambulando pelo Largo do Chafariz.
O Ti Hilário, embora às vezes parecesse, não se ria sem razão.
Uma ou outra, pela forma habilidosa como conseguia dar a volta à Ti Natália,
mas, a maioria, quando do seu silêncio retirava e revertia imagens muito para
além, no tempo, como as que naquele dia tinha visto:
Figurantes muito
“papagueadores”, com uma espécie de cartazes com ditos “populistas”, que, por
estarem uns atrás dos outros, o Baltazar os considerou como potenciais ameaças para as suas ovelhas com o cio.
Bom, nem queiram saber, aquilo era marrada atrás de marrada,
papagueadores e populistas pelo chão, uns de barriga para cima, outros de
barriga para baixo ou de cócoras, promessas e compromissos a voar por tudo
quanto era lado e, na mesma posição calma e silenciosa, encostado à ombreira da
porta do Álvaro, fumando a sua inseparável beata, o Ti Hilário sorria, ensaiando
uma alegre gargalhada para mais tarde.
O Baltazar não era só o guardador do rebanho, outros lhe
chamaram, meio a sério, meio a brincar: O justiceiro popular!
Silvestre Brandão Félix
6 dezembro de 2017
Foto: Google
Nota: Os meus escritos
no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base mais-ou-menos verdadeira, mas são totalmente
ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
DESTE LADO DA SERRA, A INSEGURANÇA E OS SONHOS DO CABOUQUEIRO
“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino
estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o
conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava
tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.
Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de
escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam,
o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era
“Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.
Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha
na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a
mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha
metido na sacola, antes de sair de casa.
Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de
sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal
de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.
Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do
Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou
para a direita?
— Que raio… onde é que
eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)
— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda
ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga.
É só, se vou para um lado ou para o outro!
Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja,
para o lado direito.
Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as
ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha
acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a
consciência estava-lhe pesadona.
Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e
com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que
devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento
completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu
logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de
vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.
Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e
filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para
compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.
Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR
porque brincadeiras destas não se faziam.
E o das “Sesmarias” perguntava:
— Mas qual GNR? Não há
aqui nada disso!
— Há, sim senhor! Eu
posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque
não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR
na Abrunheira. (dizia
o Coutinho que era Bernardino)
Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que
estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira
do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.
Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já
de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a
muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.
Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali
a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas
vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou
à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.
Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se
e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.
«Um GNR e uma GNR, saíam
do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o
tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito
estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da
GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira,
debaixo do braço.
Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”,
continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era
Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro,
tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das
ferramentas, que estava no sítio do costume.»
O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um
sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.
Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira
coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no
sítio onde, no sonho, elas ficaram.
Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo
(retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na
Abrunheira-2001.
terça-feira, 21 de novembro de 2017
PARA CÁ DE QUELUZ E O SOSSEGO DA ABRUNHEIRA
Depois da Estação de Queluz, as janelas começavam a ser
fechadas. O ar entrava fresquinho e sentia-se que, lá fora, o vento soprava. A
temperatura e o cheiro de Lisboa, iam ficando para trás. O reboliço do Rossio,
do Cais do Sodré, da Duque da Terceira, rua do Arsenal e do Alecrim, ficavam
para o dia seguinte.
Fui-me “construindo” nesta dualidade de vivências. A
ruralidade da Abrunheira e a urbanidade da grande Capital. Sempre gostei das
duas.
Sabia-me bem participar nas movimentações de muitas pessoas;
o comboio na hora-de-ponta, a Estação do Rossio, os passeios cheios e a
necessidade de me desviar das que vinham de frente, sempre assim, subindo até
ao Largo do Carmo, onde, em abril, o Capitão Salgueiro Maia pôs o antigo regime
de joelhos, pela Trindade e Chiado e descendo até ao fundo da rua do Alecrim. O
trabalho durante o dia, o convívio com os colegas e, ao fim da tarde, o
regresso ao sossego de Sintra e da Abrunheira.
Das mangas-curtas pelo calor da beira Tejo, passava a manga
cumprida ou mais uma peça de roupa para compensar o fresco da chegada a Sintra.
Na Abrunheira, pelo Largo Chafariz e pela rua principal, ainda se pisavam
muitas caganitas de ovelha e, não poucas vezes, era requerida habilidade, para
ziguezaguear por entre “bostas” de vaca. Na Abrunheira, pelo Largo do Chafariz,
pelo Santo António ou por outros caminhos, ainda se cheiravam “perfumes” do
campo.
Nos terrenos à volta, para lá da ponte e até à colónia e aos
celões, ou a seguir ao Ti Alexandre nas pateiras, ou para o caracol até à arroteia
e aos quatro-donos, ou para lá do forno nas maçarocas, ainda vi ondulantes
searas de cereais. Na altura do crescimento do trigo, cevada ou aveia, e com
olhar abrangente, o vermelho das papoilas, o lilás dos lírios, o amarelo dos
malmequeres e os azuis das alcachofras, completavam a beleza da nossa
ruralidade. Eu não sabia que gostava tanto disto, mais ainda, quando as
cigarras e os grilos não paravam de cantar.
E depois, beber a bica no Manel num copinho de vidro e,
quando os mais velhos deixavam, uma partidinha de damas. Havia autênticos
campeões. Lembro-me por exemplo, do Batista, do Caracinha, do Chico Chamiço ou
do Durães e mais outros, que não me lembro os nomes. Da nossa classe, o campeão
era o Rui.
Mais tarde, passamos a ir bebê-la ao Ramos/Cabaço e as
jogatanas de matrecos e de kingue. Muitas horas de paleio. As conversas eram
sérias. Até os namoricos eram sérios. Alguns vingaram, outros nem tanto. Tudo
isto me confortava no regresso. Lembro-me de todos e todas, de cada um e de
cada uma.
Algumas horas de cama e a Ti Augusta não me dava folga. Uma
tigela de sopas de café (cevada) com leite e toca a andar, que se faz tarde.
De volta à Capital e, nas olhadelas pela
“janela-do-terceiro-andar”, conseguia ver tudo. Já algumas vezes disse que, por
lá, via o mundo. É uma maneira de lhe atribuir grandeza, por tantas imaginadas
imagens, que me chegavam.
“Daquela-janela”, ainda vi fragatas e faluas no Tejo,
provavelmente a pouco tempo de, definitivamente, desaparecerem, mas também vi
muitos petroleiros ancorados no mar da palha, esperando pela vez de entrarem
nas docas da “Lisnave”. Vi muitos “cacilheiros” trazendo e levando pessoas,
entre as duas margens. Vi muitos “amarelos” subindo e descendo a rua do alecrim
e outros “verdes” que já muito poluíam o ar, como o 8, o 44 ou o 45.
Lá, “da-janela”, via pessoas boas e más, homens e mulheres,
adultos e crianças. Olhando mais para baixo, ligeiramente à direita, conseguia
ver quem entrava e saía do “Bragança”, utilizando as escadinhas e a mesma porta
do “Eça”, aquele, que era “Queiróz”. Ainda, mais por debaixo, via a “velha”
Nova do Carvalho dos bares que, no tempo de agora, virou moderna, a abarrotar
de gente bem-bebida e “cor-de-rosa”.
“Da-janela-do-terceiro-andar”, via, ao longe, muito longe,
navegando pelo “Atlântico”, centenas de compatriotas a caminho da guerra. Na
Rocha Conde de Óbidos, tinham-se despedido das mães, dos pais, das namoradas e,
por aí fora, pelo mar, compunham expectativas bem incutidas nas cerebrais,
pelos especialistas da matéria, em sessões contínuas.
No sossego da Abrunheira e do alto da nossa varanda, com o
sol já atrás da Serra escondido, conseguimos um recorte único. Muitas vezes
tive saudades desta visão. Este lado da Serra era e é, lindo e acolhedor.
Silvestre Brandão Félix
21 novembro de 2017
Foto: Minha-2010 Recorte da Serra de Sintra tirada da Abrunheira
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
MERCADO DE SÃO PEDRO, OS SONHOS E AS GRANDES SUPERFICIES
Estivesse a complicada máquina digestiva a funcionar como
devia e, a, ainda mais complicada e importante tarefa e função intestinal no
ponto certo do trânsito, e o “Artista
Sapateiro”, bem cedinho, ao levantar o primeiro sinal de luz do dia, se
chegava às traseiras, fora do leito corrente, viradinho para a horta e, de
cócoras, em jeito confortável quanto bastasse, para que bem ficasse a perna
mais curta, e assim cumprir o que de mais sagrado um homem podia fazer; aliviar
o corpo do que já não presta e que ainda por cima, cheira mal.
Este momento diário, era tido como audiência ao grande amigo
e possuidor de grande sabedoria: O Rio
das Sesmarias!
O Ti J’oquim Cagachuva,
fizesse sol ou “chuva”, fosse inverno
ou verão, não lhe falhava esta meia-hora em cada santo dia. Muitas vezes, os
sonhos eram vagos e nublosos, mas, outras, via-os com tal claridade que, melhor
os sentia que a realidade do dia-a-dia.
Ido que está o seu tempo de andarilho pelas terras e
terriolas, casas e casais, quintais e quintas na procura de calçado carente da
sua arte, e gasta que está a juventude que lhe temperava as passagens pelas
festas e bailaricos do Linhó, Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Amoreira,
Abuxarda, Alcoitão, Bicesse, Manique de baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda,
Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira e por aí fora que não lhe chegava a memória
de tanto sítio por onde passou. Ficava-lhe então, muitas lembraduras e uma
outra componente, não menos importante.
Os sonhos! Isso, o Ti
J’oquim não para de sonhar com as coisas idas e com as coisas vindas, ou
melhor, que hão de vir.
Eu, que aqui estou no papel de narrador, ouvi muitas dessas
cenas, algumas seriam reais, outras inventadas por ele e, ainda, outras,
resultado dos contínuos sonhos que o “Artista
Sapateiro” tinha com fartura.
Aquela manhã, tinha vindo com algum orvalho e, por isso, as
ervas da margem do Rio das Sesmarias,
estavam bem molhadas. O outono fazia o seu trabalho.
Depois das saudações habituais e de estabilizada a posição e
a função acima descrita, o Ti J’oquim Cagachuva,
requer a atenção do Amigo Rio, para
lhe contar o inacreditável sonho daquela noite.
Tinha seguido “por
esses caminhos acima” como era costume. Sem saber logo para onde ia,
percebeu que tinha chegado a Ranholas, mas, ainda aí, muitos destinos podiam
acontecer, até… valha-me Deus, até o Alto
da Bonita. Depois do portão da Quinta
do Ramalhete, ali bem na curva, o sonho logo o plantou na frente da “Campa-dos-Dois-Irmãos”. Percebeu logo
que estava lá muito para frente no tempo, porque, a campa, estava do lado
direito de quem sobe.
O sonho continuou e, embora o Ti J’oquim não conhecesse uma letra do tamanho dum comboio,
garantiu ali, naquela posição de cócoras, que estava dezassete de tempo contado
em anos a seguir ao ano dois mil, o tal que, sempre lhe disseram, nunca iríamos
passar. A sua mulher, Margarida faladeira
e sabe tudo, bem lhe dizia que tudo isso era mentira. Que haviam de passar
o dois mil e o três, se preciso fosse.
Pois é, dois mil e mais dezassete, segundo domingo de
novembro, dia de mercado e às dez da manhã.
— Oh Amigo Rio das
Sesmarias, tu que sabes destas coisas e conheces todos os abrunheirenses,
diz-me cá; como é possível naquele dia, aquela hora, naquele sítio, não me cruzar
com ninguém? Ainda no domingo passado fui ao mercado e, ao chegar ao Ramalhão,
mais ou menos às dez da manhã, já não se podia andar, tal era a quantidade de
gente.
O Ti J’oquim tinha
ficado desapontado com o sonho que o atirou quarenta e sete em tempo contado em
anos, para a frente, mas, por isso mesmo, fez questão de o contar todinho ao Amigo Rio das Sesmarias.
Bom, o que é certo é que o sonho continuou e, duma penada,
estava encostado ao Chafariz da curva do alto de São Pedro a olhar para o
mercado, ou melhor, para o sítio do mercado. Que via ele? Uns quantos toldos,
muito poucos, que não ocupavam metade do largo.
Isso mesmo! Muito poucos, a quantidade não interessa, mas
para quem conheceu o mercado a abarrotar e a sair pela 1º de dezembro até Chão
de Meninos, com uma enorme lista de espera de lugares, é triste, muito triste,
mesmo que fosse só num “sonho-mau” do
Artista-Sapateiro da Abrunheira.
O pior mesmo, é que não é sonho, é mesmo verdade!
Será que ainda há tempo de salvar o mercado de São Pedro?
Silvestre Brandão Félix
16 novembro de 2017
Foto: Fonte de São Pedro (sintraroteiroturistico)-(Google)
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
PEIXE FRESCO, A TI AURÉLIA E O MANEL DA COLÓNIA
O Manel da Colónia, embora não o dissesse a ninguém, nem a
mim, não “podia levar à paciência”,
ter de levar com o cheiro de peixe, todos os dias, até ao fim da sua vida.
Ainda escuro, só com o lampejo da madrugada, já a Ti Aurélia e a filha Lucinda
ou Lucília, separavam o peixe trazido pelo Ti João “pexeiro”, da lota de Cascais.
Todo o santo dia, tinha que levar com aquela cena. Era de tal
maneira que, pelo cheirinho, já sabia o que a Aurélia e a Lucinda ou Lucília,
iam vender naquele dia.
Não tínhamos nenhuma pena dele. Que levasse com o cheiro do
peixe e de todos os piores cheiros do mundo que não nos importávamos com isso.
Mais cheiro, menos cheiro, a vida continuava.
Os putos como eu, não “iam
à bola” com o Manel da Colónia. Não “iam à bola”, nem lhe davam a bola,
porque senão…
Ali, na ponta de cima do Largo do Chafariz, longe dos gansos
do Ti Veríssimo — pertinho do Ti Miguel, da
nova taberna da Menina Emília, da Deolinda e do João Tirapicos, do meu Tio António
e da minha Tia Espírito Santo, do Chico e da Maria Augusta, da Gina e do Zé
Eduardo que comigo alinhavam, do Zé da Natália e da Natália e, claro, do Manel da
Colónia — os putos, às vezes, juntavam-se a dar uns toques na bola. O homem
“tinha um pó” aquela coisa redonda,
que só visto. Se, na altura em que ele ia a passar, a bola estivesse ao seu
alcance, ou, “por mal dos nossos
pecados”, a bola fosse parar ao quintal dele, era “certo e sabido” que, inteira (a
bola), nunca mais ficava. Sacava da navalha e, zás! Era uma vez, uma bola.
Indiferentes às bolas e às contrariedades dos cheiros, a
peixe ou outros, a Ti Aurélia e a Lucinda ou Lucínia, (a estratégia do “ou”, vai no sentido de desculpabilizar a falta de
rigor desta memória para nomes, que, em culpa direta da PDI, digo eu, está cada
vez mais abandalhada) lá vão percorrendo o lugar acima e abaixo, vendendo
um chicharro aqui à Maria Augusta, umas fanecas ali à Ti Estrudinhas, umas
sardinhas acolá à mulher do eletricista, umas pescadinhas de rabo na boca à Ti
Augusta, uns carapaus à Ti Ermelinda, e, por aí iam as duas, apregoando
baixinho, que não eram mulheres de gritaria: “Olhó vivinho da costa!” E era! Pescado na nossa costa, sempre, em
pouco mais de doze horas.
Como as coisas são diferentes. Hoje, se quisermos comprar
peixe, será com dois, três ou mais dias desde que foi pescado, sendo português,
porque se for importado, ainda pode ser mais tempo.
Há uns tempos, em troca dum “saco de lentilhas”, foram-se: a pesca, a agricultura e alguma
industria média-pesada e, agora, para além de consumirmos piores produtos,
temos que levar com os que nos mandaram as “lentilhas”.
Silvestre Brandão Félix
13 novembro de 2017
Foto: Peixeira (Google)
Nota: Embora baseado em factos e pessoas reais, o texto que aqui reproduzo, é ficcionado.
sábado, 11 de novembro de 2017
SÃO MARTINHO E A ÁGUA-PÉ DO PENA
Naquele onze de novembro de mil novecentos e “troca-o-passo”,
o Coutinho que era Bernardino saiu do Caracol, onde morava com a Judite, com o
sol ainda escondido. Tinha engolido as “sopas-de-cavalo-cansado” mais depressa
que o costume, para evitar que a Judite Caracoleta metesse conversa, por
antecipação ao previsível bem-bebido final de dia, que era de São Martinho.
Ele foi p’rá pedreira do Ti Miguel como de costume e, porque
era “cabouqueiro e tinha a ciência da pedra” — a toda a hora o dizia e,
principalmente, quando de charretes e ciganas, já estava bem aviado — tinha
que, também naquele dia, honrar a profissão e arte que tanto gosto e felicidade
lhe têm dado ao longo de toda a vida.
Na ida, de manhã, entrando no alcatrão e depois do Santo
António, do Espanhol e do Silvestre Velho, costumava meter à esquerda a seguir
ao Rafael-Coxo, junto à casa da fruta do Pechincha, continuava juntinho ao
Amigo Rio das Sesmarias e atravessava-o no sítio do costume, lá, ao fundo do
caminho do Cipriano, entre a Horta do Manel Lopes e a casa do Ti Joaquim da
fruta.
Mas, naquele dia, a primeira pessoa que viu foi o J’oquim
Cagachuva, antes do Santo António e, no Rafael Coxo, não virou à esquerda e
seguiu até ao Largo do Chafariz, desviando-se de dois gansos do Ti Veríssimo
que, de pescoços esticados e bicos assanhados na direção dele vinham. Saudou o
Tavinho que, àquela hora, dava água às vacas, no chafariz.
Depois, resistindo à tentação de ir dizer “bom-dia” ao
Álvaro, contornou a casa do meu Tio António que, com o Chico, tinha acabado de
ordenhar as ovelhas, e, quase esbarrando com a Ti Maria Ferreira, foi pela
travessa do Ti Miguel passando e recebendo uma grande saudação do Guilherme
barbeiro, que estava a sair de casa para ir para a sua, barbearia, em Ranholas.
Praticamente ao mesmo tempo, mas do lado direito, saía a
Menina Emília, que tinha quase pronta a abrir, a nova taberna naquela esquina.
Admirados também por verem o Coutinho que era Bernardino, ali aquela hora, a
Ofélia e o Albino, que saiam de casa, saudaram-no com satisfação. Ao fundo,
ainda cumprimentou o Ti Abílio, pai do Zé Fernando e, em passo acelerado, foi
pelo caminho do Cipriano abaixo, passando em frente da travessa do Pena, à
esquerda, só para sentir o cheirinho daquele delicioso líquido que, mais tarde,
havia de provar.
O Coutinho que era Bernardino, cabouqueiro, e que tinha a “ciência
da pedra”, não resistiu o dia todo. Ao meio-dia, já estava à porta do Pena.
Para não se sentir sozinho, já lá estavam outros, ansiosos pela prova, como
ele.
Entretanto, sem ter explicação para tal, a Judite Caracol
(eta), só ao fim da tarde se apercebeu da especificidade daquele dia. Pois, se,
nem nos dias normais o Coutinho que era Bernardino precisava de incentivos ou
pretextos para meter muito vinho pela goela abaixo, como é que não o havia de
fazer no dia de São Martinho?
Meteu as mãos à cabeça, disse meia-dúzia de impropérios que
até o Velho Caracol se eriçou todo e, ainda de mãos na cabeça, saiu porta-fora
com o lusco-fusco de novembro, bem instalado.
A dúvida do costume, baralhava o pensamento da Judite
Caracol(eta); por onde ia começar?
Começou pelo Álvaro. “Como-quem-não-quer-a-coisa”, espreitou
lá para dentro. Dum lado para o outro, dentro do balcão, andava o Ti Álvaro,
com a caneta pendurada na orelha, via e ouvia alguns clientes, mas, de Coutinho
que era Bernardino, nada! De mansinho, foi pela direita à frente do Frouxo,
curvou e, logo ali, a Ti Celeste Pardal(a) com dois rebentos agarrados ao
avental. Pergunta daqui e dacolá, mas despachou-se depressa e a tempo de não
ter que falar à mulher do Dinisinho que vinha a sair de casa naquela altura.
Chegada ao Osvaldo ou Faial ou Ramos, fez a mesma cena do
Álvaro, mas o marido continuava a não estar lá. Estava a ficar preocupada e não
se lembrava da famosa água-pé do Pena. Para não ir pelo mesmo sítio, deu a
volta pela curva e enfiou em direção à Quinta do Olival. Passou-a e, quando
estava em frente ao Casal de Santo António, quem havia de estar logo ali a
conversar; o Ti Abílio e o Sigamó. Muito admirados de verem a Judite ali,
perguntaram-lhe se precisava de alguma coisa. A Judite um bocado a medo e com
muita vergonha, disse-lhes que não sabia do marido.
— O Coutinho que é Bernardino?
— Sim! Quem havia de ser? Não tenho outro!
— Tá no Pena! (Disse o Ti Abílio.)
— No, Pena? Mas? Ah! Pois é! Na água-pé? (perguntou a Judite)
— Sim! Isso mesmo!
— Ai, valha-me Deus, deve estar bonito, deve!
Ainda ia a meio da travessa e já ouvia homens a falar e,
entre eles, conheceu a voz do marido. Estava com medo e com muita, muita
vergonha. Mas, assim que meteu a cabeça dentro da adega, recebeu logo um
“Benvinda” do Pena e, olhando para trás, o Coutinho que era Bernardino, todo
feliz, desatou: Chega-te cá mulher, anda cá provar estas castanhas e esta
água-pé do Pena.
Para grande admiração da Judite, o Coutinho que era
Bernardino, não estava a arrastar a voz nem cambaleava. Estava contente sim,
mas muito afinado para um dia de São Martinho que, fosse ela muito crente,
teria acreditado ser milagre do Santo. Ele depois contou-lhe que almoçou lá e
continuaram sempre a petiscar. Não deu para ficar de “caixão-à-cova” como
acontecia tanta vez. A água-pé do Pena era tão boa que a Judite levou uma
garrafa para o Caracol Velho provar.
Por estes dias do ano, todos os abrunheirenses amantes da boa
pinga, percorriam várias vezes o caminho do Cipriano, guiados pelo inigualável
aroma da “água-pé” do Pena. Nesta altura, faziam jus ao provérbio popular — “No
São Martinho, vai-se à adega e prova-se o vinho” — e a “água-pé” do Pena, digo
eu!
Silvestre Brandão Félix
11 novembro de 2017
Foto: Lenda do S.
Martinho (Google)
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
A MOTORETA E O SENHOR CORREIO DE RIO DE MOURO
A motoreta era, acho, cinzenta e não tinha quadro, como as
“lambretas”, sendo o depósito do combustível recuado, por debaixo do assento que
era daqueles triangulares e, atrás, tinha um apoio metálico de bagagem que, o “correio” (carteiro), usava para colocar
duas grandes malas de cabedal, evidentemente, uma de cada lado, ligadas uma à
outra, por uma larga tira também de cabedal. As malas vinham sempre muito
cheias de envelopes e pequenas encomendas, bem como o saco, igualmente de
cabedal, que o “Senhor correio”
trazia, à, tiracolo.
Não tenho ideia de alguma vez ter visto o “correio” montado na motoreta. Andava
com ela pela mão e ia parando à medida que distribuía as cartas, os aerogramas
ou encomendas.
A central distribuidora do correio da Abrunheira era de Rio
de Mouro. O “correio”, era assim que
a gente se referia a ele, porque do nome não me lembro. Recordo-me sim, da cara
bonacheirona do simpático senhor. Vinha com aquela farda cinzenta e conhecia
todos os abrunheirenses. Sabia dos mais velhos, dos pais, dos filhos e,
principalmente, dos que estavam na tropa.
Naquela época, a Abrunheira não tinha placas toponímicas
logo, o Senhor “correio”, sabia onde
morava toda a gente. Pelo tipo de correspondência que entregava, sabia se
estava a dar boas ou más notícias.
Era ele, o tal Senhor
“correio” de Rio de Mouro com cara redonda, que entregava os aerogramas
enviados pelo meu Primo Chico desde a Guiné, à minha Tia Ermelinda. Se
estivesse por perto, dávamos, porque sabia que era eu que os lia à minha Tia.
Aerogramas, era a correspondência da “guerra”. Para facilitar a troca de
notícias entre os militares na guerra colonial e os seus familiares aqui em
Portugal, o regime criou os aerogramas. Era uma folha azul/cinzento em que, num
dos lados, se escrevia o que queríamos e, no outro lado, nos locais já definidos,
escrevia-se o destinatário e o remetente. Depois, dobravam-se em três, tinham
cola como os envelopes no topo e nos lados que, molhando e apertando, colava-os
e ficava tudo fechado. Abri e fechei muitos à minha Tia Ermelinda.
Mas, o tempo em que o “correio”
(carteiro) conhecia toda a gente e não deixava que nada se extraviasse, já
lá vai há uns bons quarenta e muitos ou cinquenta, de tempo contado em anos.
Agora, com estes correios, a coisa fia doutra maneira. Como
empresa privada que é, o grande objetivo é obtenção de lucro para dar bons
dividendos aos seus investidores. Muito depois disso, vem o interesse das
pessoas comuns. Bem sei que, grande parte do que era o negócio, na época acima
descrita, hoje não existe, mas, duma forma geral, todo o cidadão gostaria de
ser tratado como gente e, infelizmente, nem sempre acontece.
Há uns anos, começaram a surgir nos envelopes uns grandes
carimbos, aconselhando à colocação dos endereços corretos, sob pena da mesma
correspondência ser devolvida.
No que me tocava, a coisa mais ou menos estava controlada.
Mesmo assim, ainda tinha um ou outro caso com o endereço anterior à atribuição
do número de polícia ou que não indicavam o “número de bloco” e, o novíssimo
excesso de zelo dos “correios”, ainda me pregaram algumas partidas com
devoluções, incómodas para quem enviou e para quem nunca recebeu. É que, era
tudo igual, o meu nome e tudo, mas o que querem? Faltava o bloco ou uma vírgula
e confundia-se com o piso, enfim, tretas!
Também não é preciso voltar aos correios do tempo do “Senhor correio de Rio de Mouro” e a sua
motoreta, mas, que raio, um bocadinho de bom senso, não faz mal a ninguém.
Silvestre Brandão Félix
6 novembro de 2017
Fotos: Carteiro (Google)
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
MILITAR ME FIZERAM, O IMPÉRIO E A VANGUARDA ABRUNHEIRENSE
Verão quente ficou e PREC se chamou! Militar me fizeram, a
contragosto, por princípio, e porque o “império” ainda durava.
— “Ai! Ai! Eles andem
aí!” Gritava o mais gordinho do pelotão, enquanto, dobrado para trás na medida em que a
farta barriga o permitia, mirava os céus tentando descortinar algum avião,
daqueles que tinham disparado sobre o RALIS naquele dia onze de março.
Aqueles dois ou três dias a seguir, foram de alerta constante
e pretexto para me entregarem uma arma, descarregada, mas era uma arma na mesma.
Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia da minha festa de
despedida de mancebo, no dia dois, véspera de “assentar-praça”. Também não me
esquecia das juras de amor, ou nem por isso, e das voltas que o estômago e as
tripas deram naquela noite. A última vez que “chamei-pelo-gregório”, já o
comboio, na Estação do Cacém, estava pronto para partir. Pelo “Oeste” acima,
sono não me faltou e, como o destino era o fim-de-linha, não havia problema.
Mesmo com a G3 na mão, não me esquecia dos projetos para o
desenvolvimento da nossa URCA, fundada três meses antes na velha “sociedade”.
Uns tempos depois, na terça-feira da semana das primeiras
eleições democráticas, que seriam na quinta-feira seguinte, a 25 de abril, a
carta que recebi encaminhava a URCA para a “quinta do João da batata”.
“João da batata”? Perguntava eu. Fiquei muito confuso com o
“puzzle” que — o C. Silva e a Celeste, o Zé e o Fernando, a Fernanda, a Catarina e o Zé, a Gina e o Zé, a
Cristina e o Zé, a Odete e o Joaquim, o outro Zé Alentejano, o Mário e Paulo, o
Tomás, o João da borracha, o Luís Mariano, Pombo I, o II e o III, o Zé
Nascimento e o António, o Chico, o Vicente, o Virgílio e o Eleutério, o Zé Manel outros e
outras que a memória atrapalha, mas que estão cá bem arrumados e considerados —
me enviaram, mas, como vim votar na Abrunheira, a vinte e quatro à noite,
descobri tudo.
Para muitos anos e eleições sem “senhas-de-presença”, foi o
único que não participei nas mesas. Depois, deixou de ser dever cívico e passou
a ser trabalho pago, até hoje.
A atividade cultural tinha sido o “nosso-nascimento” e,
depois, com outras possibilidades, outros espaços e condições, a função social
mobilizava outra parte de nós. O grande objetivo passou a ser a construção dum
“Centro Social” que, para além da URCA, criaria estruturas de apoio à infância
e à terceira-idade e desenvolveria diligências para a instalação duma extensão
do Centro de Saúde de Sintra.
E eu, marchava, marchava… com algumas intermitências. No meio
do quente de setenta e cinco, para Luanda me mandaram com destino certo, mas
como?? Se; “nem-mais-um-soldado-para-as-colónias” e, assim, não fui!
E eu, marchava… embora menos, mas marchava. Finalmente
liberto com mais duzentos e passaporte nas mãos, lá para 27 ou 28 de novembro
com os “roncos” dos “jaimites” à volta, já o verão tinha acabado há uns meses, mas,
nem por isso, foram dias muito “quentes”.
Todas as vontades se juntavam na URCA. Entre a construção do
pavilhão e a realização dos famosos “bailaricos”, tudo o resto se ia fazendo. “Até
à Libertação”, “Menino Tonecas”, “barbeiro sabichão” e, noutro “departamento”,
folclore, marchas e marchinhas para graúdos e minorcas, com telhado “Ramalho” e
muitas outras coisas “António-da-Estância”, inauguração feita no dezoito do
glorioso mês de abril de setenta e seis.
Da vanguarda abrunheirense no princípio do último quartel do
século XX, a caminho do fim do primeiro do XXI, em que patamar estamos?
As perguntas fazem-se para terem respostas, mas, às vezes,
ficam sem resposta.
Silvestre Brandão Félix
3 novembro de 2017
Fotos dos meus arrumos:
1 – Tropa 1975, 2 + 3 – Inauguração do pavilhão da URCA 18 abril 1976
P.S. (Se me ajudarem a
identificar o(a)s fotografada(o)s, coloco-as com os nomes)
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
PÃO-POR-DEUS!
Grupos de miúdos e miúdas, “lugar” abaixo, “lugar” acima,
carregando as suas sacolas, sacos de pão e outros, poucos, feitos pelas mães de
propósito para aquele dia, batendo às portas e pedindo:
— PÃO-POR-DEUS!
A porta se abria e lá vinham, conforme as posses, as mais
variadas guloseimas como, rebuçados, caramelos, fruta, bolachas, biscoitos,
figos secos, nozes, amêndoas, amendoins e, às vezes, chocolates.
Hoje, também me cruzei com espigadotes rapazes e raparigas,
batendo às portas e outros mais pequenos com as mães e os pais por perto, mas,
para muitos dos meninos e meninas da Abrunheira de há cinquenta e muitos de
tempo contado em anos, o dia do “Pão-por-Deus”, era o único em que provavam
algumas daquelas coisas e, noutros casos, o dia em que a fome não os visitava.
Agora, as “catedrais” do consumo, construídas e oferecidas
às classes médias, para, que, aí gastem o que ganharam em dias inteiros e
acrescentados de “bancos-de-horas” infinitos, oferecendo aos seus meninos e
meninas, usos e costumes importados que vão substituindo as nossas recordações
e engordando os “fundos” dos que não têm rosto e, muito menos, morada certa.
Nestes últimos dias, fomos bombardeados com máscaras e
mascarilhas, bruxas e bruxinhas, abóboras furadas e iluminadas, varões e
varinhas que transformam o real em fantasia, mas, o que continua sendo muito
verdade, são a míngua das contas bancárias e o saldo do cartão de crédito.
Silvestre Brandão Félix
1 novembro de 2017
Foto: Google
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
AZENHA, CAPA ROTA, MANIQUE DE CIMA E NOSSA SRA DA AFLIÇÃO
“Por-esse-caminho-abaixo”, em pouco menos de mil metros e um
quarto d’hora depois, estávamos na Capa Rota. A saca cheia de milho ou trigo,
conforme a altura do ano e necessidade da minha mãe, ia no “lombo” da Carocha
em cima da albarda onde, na volta, se ela para aí estivesse disposta, eu viria
encavalitado, devidamente “monitorizado” pela Ti Augusta, claro. O Ti Sebastião
já sabia, pelo costume, como é que a minha mãe queria a farinha e, assim, ajustava
as distâncias e apertos da “maquinaria” da sua azenha, para as mós fazerem o
trabalho a contento.
Como acontecia noutros locais, a Carocha não gostava de ir à Azenha
da Capa Rota. O Ti Sebastião tinha um burro que, como bom macho que era, assim
que sentia a Carocha, não mais sossegava. Nunca calhou, que eu percebesse,
irmos lá estando ela com o cio. Por isso, enquanto o burro do moleiro zurrava
que nem um desalmado e uma “manga” lhe saia do meio da barriga em direção ao
chão, a Carocha guinchava, puxava e fazia força para irmos embora porque não
lhe interessava nem estava recetiva ao “galanteio” do outro.
Ao contrário da Carocha, sempre gostei muito daquele sítio. A
última vez que lá fui, há muito tempo em anos contado, talvez em funções
autárquicas, já não estava o Ti Sebastião, mas o “Casal da Azenha” ainda era da
família, situação que, desconheço, se mantêm.
Perguntar-me-ão:
— Então, mas nos teus escritos tens de falar sempre da burra
Carocha?
E eu respondo:
— Nem sempre, mas se escrevo sobre a época a partir da
meia-dúzia de tempo de idade em anos contado, até dez ou onze do mesmo tempo, é
quase certo que a Carocha entra na estória. Ou seja, não fiquem impacientes
porque muitas mais vezes, esta Carocha-filha, que de burra não tinha nada, será
personagem dos meus contos.
Continuando por “esses-caminhos-abaixo”.
Desde o fundo da Abrunheira, onde eu estou agora, na direção
da Capa Rota e Manique, havia dois caminhos que, neste momento, estão
irreconhecíveis e, pelo menos um, o que desembocava na estrada ao lado do Rio
das Sesmarias, “privatizado” há muito tempo. O contacto entre a população da
Abrunheira, a Capa Rota e Manique de Cima, era permanente. Por isso, a
existência de caminhos abertos e de serventia, era real e de uso frequente ao
longo dos dias, por quem trabalhava para os empregadores da Abrunheira e morava
em Manique ou ao contrário.
A ligação entre as duas “Terras” e o uso dos caminhos, era,
tão normal, que, na época do meu pai, (décadas de 30/40 e talvez começo da de
50, do século XX) parte considerável da Comissão de Festas em honra da Nossa
Senhora da Aflição da Capela de Manique de Cima, era constituída por habitantes
da Abrunheira. Digamos que, o lugar de culta católico dos abrunhenses, até
final da primeira metade do século XX, era a Capela de Manique e a Nossa
Senhora da Aflição.
Esta relação entre a Abrunheira e Manique de Cima vai, a
pouco-e-pouco, desaparecendo. Penso que, muito “por-conta” do início das
carreiras da “Palhinha”, com a ligação pela estrada alcatroada, através do “Casal-da-Peça”
e Albarraque e paragem um bocadinho mais à frente, de onde é hoje, o Café
Brasil.
Nem o nosso bem conhecido Coutinho que era Bernardino, que
muito usava esses caminhos em trabalho, conseguiu garantir a sua continuidade. Podia
ser que o chamasse, o fervor religioso, mas também não era por aí. É que, desde
a sua casa e da Judite na “Quintinha” do velho Caracol, que emprestava o nome à
zona, a distância até Manique de Cima não seria muito diferente do que ir à
procura duma “cigana” ou “charrete”, em cima do balcão do Osvaldo ou do Faial,
ao lado da Padaria. Só que, no Lugar-de-Cima, havia mais tabernas e, assim,
dava para variar. Gostava muito de ir à “Menina-Emília”. Sentia-se perto do Ti
Miguel e, como tinha a “ciência-da-pedra” como tanto gostava de dizer,
principalmente quando já tinha o “bandulho” remediado de vinhaça, o homem e a
filha, aproximavam-no da pedreira onde passava tantos dias da sua vida.
A propósito do Ti Caracol, pai da Judite, mulher e cuidadora
do Bernardino que não era Coutinho, tenho pena que, da memória abrunhense,
também se tenha ido. Na verdade, para além da pessoa simples que era,
“cachimbeiro” de vício e hortelão do seu quinhão, o apelido “Caracol”
identificava aquela zona da Abrunheira. Havia outros moradores: A Quinta do
Zambujeiro (que ainda existe) dum lado, a Quintinha do Azevino (também ainda
existe), o Peixoto, etc., etc., mas, quando se queria identificar a zona, por
exemplo, se alguém perguntava; onde é que mora o Azevino ou o Peixoto? A resposta
saía mais ou menos assim; é lá p’ró Caracol!
No lugar da sua quintinha, foram construídos edifícios
modernos onde residem muitos abrunhenses novos. O Condomínio não tem nenhuma
referência ao Velho Caracol como, aliás, é normal, mas, considerando a
importância do nome, num passado não muito distante, ficaria muito contente e
feliz, assim como muitos outros abrunhenses se, numa próxima escolha para
atribuição toponímica nesta zona, fosse considerado homenageável, este destacado
abrunhense.
Por aqui, pelo “Caracol”, se calcorreava por entre as silvas
de amoras coloridas e carrascos de bolotas cheios, para chegarmos a Manique num
estantinho.
Quem me dera, hoje, quando quero ir a Manique ou para aqueles
lados, por exemplo, ao Cascais Shoppping, ao Autódromo, a Cascais, Estoril,
etc., poder fazer o mesmo caminho de carro, que há mais de meio-século fazia
com a Carocha, e num minuto estar na Capa Rota, em vez de ter de dar a volta
por Albarraque e Casal da Peça, três quilómetros e sete ou oito minutos
depois.
Silvestre Brandão Félix
30 outubro de 2017
Fotos: 1 – Eu e a
Carocha-Filha, ainda bebé. 2 – Capela Nª Srª da Aflição em Manique de Cima (Google)
segunda-feira, 23 de outubro de 2017
COBRAS DOS BARROS, ABRUNHEIRA NORTE E OS CLANDESTINOS
Quando a minha mãe dizia que íamos aos “barros” apanhar erva,
ficava todo contente por duas razões: Porque “íamos-por-esses-caminhos-acima”
como se fossemos para Ranholas, para o mercado de São Pedro ou para a “Serra” e
era a “Carocha” que, depois da difícil trabalheira a aparelhá-la à carroça, nos
levava, voando por cima de tudo quanto era “caminho-de-cabras”, até lá
chegarmos. Depois, na volta, era muito mais difícil. A carroça vinha carregada
de molhos de erva e nós, a pé. Para evitarmos que a “Carocha” voasse e a erva caísse
no chão, a minha mãe punha-se à frente dela com a arreata muito curta, comigo
ao lado e, assim, ela vinha com calma.
Aquela vontade de correr com a carroça atrelada, acho que era
a forma de protestar por lhe estarmos a pôr coisas em cima e, por outro lado,
correndo, o “sofrimento”, acabava mais depressa.
O terreno que se chamava “barros”, localizava-se ali para as
bandas onde viria a ser construída a “Impala”. Se não era mesmo, andava lá
perto. Não me lembro se era de “renda” ou do meu avô. Sei que, certa altura do
ano, ia lá com a minha mãe, algumas vezes.
Lembro-me especialmente de uma ida lá, com o Zé Augusto. Como
era mais crescido e mais forte que eu, naquele dia, foi ele a ajudar a minha
mãe a levantar os molhos de erva para os pôr à cabeça, e levá-los até à
carroça. Quando ele empurrava um molho para a cabeça da minha mãe, uma cobra,
que a mim me pareceu grande, escorregou pelo molho. O Zé Augusto, que tinha
sempre um “apetite” especial por estas coisas, não deixou a cobra cair no chão,
conseguindo agarrá-la, acho que pelo rabo, deu-lhe duas voltas no ar, como se
estivesse a atirar um laço de corda, e largou-a. Com o balanço, a cobra foi
cair distante. Ele ainda lá foi, mas nem a cobra, nem rasto. A Ti Augusta, não
se apercebeu de nada. Só mais tarde lhe contamos. Ela, meio a rir meio
surpresa, ainda ralhou connosco. A minha mãe, duma forma geral, não tinha medo
dos “bicharocos”, mas, das cobras e salamandras (pretas e amarelas), tinha
muito.
Logo após as primeiras chuvas, a alimentação das vacas era
reforçada com a erva que, entretanto, crescia. Duas ou três vezes por semana,
lá andávamos com a “Carocha”, na “cena” da erva fresquinha e, muitas vezes, bem
molhada. Íamos a vários “terrenos” do meu avô, sempre à volta da Abrunheira.
Muitos desses locais, fazem hoje parte da área ocupada pelo condomínio privado
“Quinta da Beloura”. Muitos outros, dos nomes que tinham, são hoje bairros da
Abrunheira. Por exemplo: Sesmarias, Colónia, Carrascal, Maçarocas ou Arroteia.
Infelizmente, alguns destes bairros, continuam por legalizar. Continuam,
abusiva e inexplicavelmente, a chamar-lhes “bairros-clandestinos”. É frequente
vermos ruas sem nome e, em vez disso, e por necessidade de identificar
determinado endereço, colocaram-lhes placas com números.
Passaram muitas décadas, desde que eu e a minha mãe, deixamos
de cortar erva para as nossas vacas, nesses locais, porque começavam a ser
construídas as primeiras casas.
É inaceitável e vergonhoso que alguns, ou parte destes
bairros, continuem por legalizar.
Cheguei a pensar, que o anúncio dum grande projeto aparecido
há dois ou três anos chamado “Abrunheira-Norte”, e que previa, como
contrapartida, a legalização dos “clandestinos” Bairros da Colónia e, ou
Sesmarias, iria ser o começo da resolução de outras situações idênticas e que,
finalmente, começaríamos a ver toda a área urbana da Abrunheira, à luz dos
poderes instituídos, legalmente considerada e melhorada. Mas, não! Do falatório
e assembleias iniciais que sugeriram algumas alterações ao projeto, passou-se a
um silêncio ensurdecedor.
É claro que não quero voltar ao tempo em que ia com a minha
mãe e a “Carocha” aos “Barros”, à “Arroteia”, às “Maçarocas” ou aos “Celões”,
apanhar erva para as vaquinhas.
Gostaria sim, de ver, ações eficazes, envolvendo projetos
privados ou públicos, que asfaltassem as ruas destes “Bairros” e as
identificassem, colocassem as infraestruturas subterrâneas ou de superfície e
que, duma forma geral e em definitivo, melhorassem a qualidade de vida dos seus
moradores, que são pagantes dos respetivos impostos, (embora clandestinos) e,
por fim, legalizassem as suas ruas e as suas casas que são parte integrante da
Abrunheira.
Será que este novo fôlego autárquico, nos vai brindar com
soluções para este (mau) estado de coisas? Ontem, na tomada de posse dos
eleitos para a Assembleia e Junta de Freguesia da União das Freguesias de
Sintra, o Presidente do Órgão Executivo, Fernando Pereira, referiu-se à questão
aqui abordada, como fazendo parte das suas prioridades para o mandato agora
iniciado. Assim declarado, acreditamos que tudo o que estiver ao seu alcance
fará, para que o problema seja resolvido.
Já agora, mais uma curiosidade; perante a minha insistência em
perguntar à minha mãe, donde raio vinha aquele nome de “barros”, um dia, não
sabendo mais o que me dizer, explicou-me que tinha aquele nome porque a terra
era como se fosse barro. Eu fiquei convencido. Porém, quando eu era mais
espigadote, confessou-me que, na verdade, não sabia e nunca ninguém lhe tinha
explicado porque o terreno tinha aquele nome, mas, confrontada com a minha
pergunta e como não gostava de me deixar sem resposta, atirou-me com aquela
que, por acaso, até tinha alguma lógica, porque a terra era, na verdade, muito
consistente como é o barro.
Nunca soubemos se a razão do nome seria mesmo essa, mas,
ainda assim, a Ti Augusta, achou que devia justificar-se comigo.
Era, era não! É a melhor mãe! Porque todos os dias me ajuda a
ir em frente.
Silvestre Brandão Félix
23 de outubro de 2017
Foto: Plano ou projeto
publicado pela C.M. Sintra. para “Abrunheira-Norte” (Google)
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