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domingo, 13 de outubro de 2019

BALTAZAR, O AUTORITÁRIO



Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”, obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado, “Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
BALTAZAR, O AUTORITÁRIO (gravura do google)

E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas aos abrunhenses, aqui evocados!

O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses, era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar, representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em duas ou três voltas, no ataque.  

O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho, encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que nem um perdido.

O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter que levar com o “cornudo” Baltazar.

Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”, (durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a caminhada para casa.

Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”, tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência, no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”. Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três tinto para O Carlos que não era “Fadista”. 

Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.

Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar, ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”, trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o chão com as quatro patas.    

Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.

Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos” se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.

À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”. Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê, nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!

Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado” para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário, resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.

— Baltazaaaaaar!!!

Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”, sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura” da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”, tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas” e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava naquele instante.

Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.

O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos” para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista” e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas e ia embora.
………………………………………….

Meio-século depois, a discriminação social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância, por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma dessas vítimas.

Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio)
O nosso Chafariz, obra da autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu — Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e, especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande abraço!

Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019

domingo, 21 de outubro de 2018

O FADO HILÁRIO, A LÉLÉ E O ZEQUINHA E O PEIXE FRESQUINHO


Na imaginação de puto, e porque naquele rádio a pilhas, assim, todo bege, que ficava sempre, todo “aperaltadinho”, em cima do armário da loiça na cozinha lá de casa, muitas vezes tocava fado e no meio deles, havia o do Hilário, ou seja, “O Fado Hilário”. Por isso, achava que o Ti Hilário da Natália, havia de saber cantar o fado.

Desse rádio a pilhas, ouvia-se, no Rádio Clube Português, estação que o meu pai sintonizava por causa dum programa rural que começava às seis da manhã, alguns clássicos como: O programa da manhã do Fialho Gouveia onde passava muita música portuguesa, os parodiantes de Lisboa à hora do almoço e, logo a seguir, o teatro radiofónico que podemos comparar às telenovelas de hoje porque prendiam milhares de pessoas ao rádio aquela hora e, ao final do dia, do Igrejas Caeiro, o Zequinha e a Lélé, nos Companheiros da Alegria e, também, o Comboio das seis e meia.  

Mas não! A música do Ti Hilário, era outra! Copinhos de dois, tinto, ao balcão do Ti Álvaro, que eu bem via quando por lá lia o “Século”, treinando para as leituras mais complicadas dos livros escolares.

Na altura, ainda não havia o “Plano Nacional de Leitura” nem nada que se parecesse e as alternativas eram, o jornal do Ti Álvaro e os de “quadradinhos” do Major Alvega, e outros heróis da aviação da primeira e segunda guerra mundial, mas também dos cowboys e índios, que o meu irmão comprava.
Então, é verdade, eu tinha a mania que o Ti Hilário era fadista. Assim à distância, nem entendo bem porquê, se calhar só porque se chamava Hilário. Será que o vi alguma vez cantarolar depois dalguma sequência avantajada de copinhos de “dois-tinto”? Não sei, mas assobiar, isso ouvi!
Não me lembro, que o nome de outra mulher fosse dito e ouvido tanta vez no Largo do Chafariz, como o da Ti Natália. Quando se queria falar do Ti Hilário, era o Hilário da Natália, o filho Zé, era o Zé da Natália, o outro filho João, João da Natália. Era uma mulher com um ascendente sobre os homens lá de casa, como não havia igual. Era de tal maneira que, até eu, que a ouvia gritar com eles, tinha um certo medo dela. Coitada! Não era má pessoa, mas tinha que se impor, senão, estava desgraçada.

O Ti Hilário, era aquela figura. De fato-macaco ganga-azul, pintalgado de estuque, cimento, cal ou outros produtos usados no último biscate. Sempre educado, pouco falador e muito fumador, mas realmente não cantava o fado, só assobiava.

Sentados no degrau do que naquela época era o armazém do Ti Álvaro, eu e o Zé Augusto ou o Rui, tínhamos uma visão global do Largo do Chafariz. Víamos quem entrava na mercearia e na taberna como o Ti Hilário, quem passava para, ou do lado do “Frouxo” ou da menina Emília e, acima de tudo, quem ia ao Chafariz buscar água ou dar água aos animais.

Era, como se fosse uma plateia e, daí, assistíssemos ao filme do dia-a-dia dos abrunhenses. A voz ou as gargalhadas do Tavinho com as travessuras do carneiro “Baltazar”, o bater do sacho do Ti Veríssimo no chão e o andar muito rápido da Ti “Estrudinhas”, o “quá” esganiçado dos ganços e o balir das ovelhas do meu Tio António. Também dava para observar a lida do Ti João de Leião. Ora saía com o grande tratar vermelho ou com o seu Opel que acho era Kadette. Ainda, até à curva, se descortinava o Ti João Peixeiro a chegar de motorizada com o atrelado vazio, ou com alguma sobra, isso é que nós não conseguíamos ver. Duma maneira ou doutra, à noite, lá ia ele até à lota de Cascais para trazer produto fresquinho e, depois, dividir com a Ti Aurélia, para, literalmente à porta de cada um dos abrunhenses, “vender-o-seu-peixe”.

Lembraduras que o vento ainda não levou…

Silvestre Brandão Félix
21 outubro de 2018
Foto: Chafariz da Abrunheira (de: Zé Dionísio)

terça-feira, 13 de março de 2018

ENCAVALITADOS NOS SONHOS E AS LUVAS GRANDES


Impressionado ficava com aquelas grandes luvas vermelhas que, o homem de macacão azul, nas mãos enfiava depois de as ter retirado dum compartimento debaixo da cabine do enorme camião-cisterna da “Sacor”.

Depois puxava uma mangueira negra que na ponta tinha uma espécie de torneira que se ia desenrolando dando comprimento para o homem das luvas e de macacão, se encaminhar para o interior da mercearia do Álvaro e da Ti Lourdes.

Com o tempo fui percebendo que, do mistério, resultava o abastecimento de petróleo que, depois, íamos lá comprar para pôr nos candeeiros e no fogareiro, evidentemente dito; “fogareiro a petróleo”.

A Ti Augusta tinha um garrafão mais pequeno que servia para isso e, com o tempo que contávamos em anos, comecei, entre outras coisas, a trazer o petróleo do Ti Álvaro. Não sei qual era a quantidade do precioso líquido, mas, muitas outras coisas, eram às “quartas” (0,250 Lt ou 0,250 Kg); uma quarta de manteiga, uma quarta de banha, uma quarta de café (cevada), etc., etc.

O Camião do petróleo era branco e verde com “SACOR” escrito a grandes letras vermelhas ao longo da cisterna.

Os putos abrunheirenses como eu; o Rui, o Zé Augusto, o Zé Fernando, o Zé Eduardo, o Meno Caravaca, o Fernando Pedroso, o Mário, o Julinho, o Vitor do Eletricista, e outros que a memória levou, sabiam destas coisas e pelo Largo do Chafariz todos passavam.

Não sei se o camião da sacor os impressionava como acontecia comigo, mas que também não lhes era indiferente, isso, eu sei, porque muitas vezes acompanhado estava, na inspeção que lhe fazíamos.

Tem dias, que nos lembramos de coisas que só aparecem porque nos chegam encavalitados nos sonhos.

Silvestre Brandão Félix
13 março de 2018
Foto: Camião-cisterna da “SACOR” (google)  

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

POPULISTAS, O BALTAZAR E AS OVELHAS COM O CIO

Sem saber como, em menos de nada, o Manel Fingido estava com os quatro costados no chão. Ainda com as pernas a dar-a-dar, no ar, cabeçorra ao léu porque, com a queda, a boina voou como se ventoinha fosse, gritava:

— Ai! Ai! Ai! Que o cabrão do carneiro me mata! Tirem-no de cima de mim… ai, ai, ai… que eu morro já aqui!

Enquanto o Manel Fingido gritava e tentava levantar-se, o Tavinho, nas calmas dele e adivinhando o motivo de tamanha algazarra, porque, logo pela fresquinha, o Baltazar lhe tinha arreganhado a dentuça, deixou o que estava a fazer e, à entrada da casa das vacas, confirmando o suposto, assobiou e chamou-o.

Pois é! Mais uma vez, o Baltazar tinha feito das suas. Desde borreguito que tinha tomado o Largo do Chafariz como território seu e, ameaça que se aproximasse, não hesitava nem perdoava; recuava um metro ou mais para tomar balanço, raspava o chão duas vezes e, empinando-se só com as traseiras no chão, com toda a força, corria com a encaracolada cornadura bem apontada e raramente falhava o alvo.

O Baltazar, que continuava a marrar no Manel, que se mantinha no chão com as mãos rodeando a cabeça, como se, de bombardeamento se protegesse, estancou e virou-se na direção do Tavinho. Lá foi, como um cordeirinho manso, roçar-se nas pernas do dono que ainda ria com mais esta investida do carneiro Baltazar.

Finalmente, o Manel Fingido lá se conseguiu levantar e, olhando à volta, louco de raiva ficou, quando percebeu que esteve a dar espetáculo para muita gente. O Álvaro foi o primeiro a virar costas e a recolher ao interior do balcão, o Ti Hilário, que tinha acabado de chegar, disfarçou e, assobiando a melodia do fado do trinta e um, porque era quinta-feira, se fosse sexta, teria assobiado a do fado hilário, também entrou na taberna atrás do Álvaro. Para ele, estava na hora de mais um copito de dois branquinho, para abrir o apetite. 

Por cima do muro do quintal, também o Zé da Maria Alice tinha espreitado a sessão. Até os gansos, parados do lado de cima do Largo, assim lado a lado, como se fosse uma plateia, estiveram quietos e observadores enquanto durou aquela desigual luta. O Zé da Natália e outros mais da Natália que houvesse, também tinham assistido à “sessão” do Baltazar, mas, devagarinho, desandaram.

Muitas vezes o Ti Veríssimo, embora achando graça ao carneiro, tinha avisado o filho do perigo que era aquela “fera”. Até a Ofélia, vezes sem conta, pedia ao Tavinho para acabar com a brincadeira, mas não havia forma disso acontecer.

O Manel Fingido, amachucado como estava, certificando-se que o carneiro não estava por perto, foi ter com o Tavinho pedindo-lhe satisfações e exigindo a sua responsabilidade. Este, desculpando-se com a maluquice do carneiro, enfim, que era para defender as ovelhas… que quando havia ovelhas com o cio, era este desatino e mais assim e assado… porque tinha que lhe andar sempre a pôr o avental e que, hoje, ainda não tinha tido tempo de o fazer.

O Manel não estava a achar graça nenhuma às explicações do Tavinho. Mas o que tinha ele a ver com o cio das ovelhas? E o avental? Mas que raio de conversa era aquela?

O Ti Hilário, com o característico sorriso nos lábios, bebido e bem saboreado o “branquinho” que o Álvaro lhe encheu, encostado à ombreira da porta, assistia às atabalhoadas explicações do Tavinho ao Manel Fingido. Do seu peculiar silêncio, como era costume, retirava e ia reverter para o futuro, aí, pelo menos, cinquenta de tempo contado em anos, o espetáculo que seria, o Baltazar solto, sem avental, deambulando pelo Largo do Chafariz.

O Ti Hilário, embora às vezes parecesse, não se ria sem razão. Uma ou outra, pela forma habilidosa como conseguia dar a volta à Ti Natália, mas, a maioria, quando do seu silêncio retirava e revertia imagens muito para além, no tempo, como as que naquele dia tinha visto: 

Figurantes muito “papagueadores”, com uma espécie de cartazes com ditos “populistas”, que, por estarem uns atrás dos outros, o Baltazar os considerou como potenciais ameaças para as suas ovelhas com o cio.   

Bom, nem queiram saber, aquilo era marrada atrás de marrada, papagueadores e populistas pelo chão, uns de barriga para cima, outros de barriga para baixo ou de cócoras, promessas e compromissos a voar por tudo quanto era lado e, na mesma posição calma e silenciosa, encostado à ombreira da porta do Álvaro, fumando a sua inseparável beata, o Ti Hilário sorria, ensaiando uma alegre gargalhada para mais tarde.

O Baltazar não era só o guardador do rebanho, outros lhe chamaram, meio a sério, meio a brincar: O justiceiro popular!

Silvestre Brandão Félix
6 dezembro de 2017
Foto: Google
Nota: Os meus escritos no Largo do Chafariz, partem, quase sempre, duma base mais-ou-menos verdadeira, mas são totalmente ficcionados. Alguns nomes são verdadeiros e outros não. 

domingo, 24 de setembro de 2017

COMBOIO DA LINHA DE SINTRA, O CURRONQUINHO E A JANELA DO TERCEIRO ANDAR

O meu segundo sono, todos os dias da semana, acontecia assim que entrava no comboio que me levava à capital, onde, “daquela-janela-do-terceiro-andar”, tantas vezes via, as últimas faluas do Tejo, os cacilheiros na sua travessia e o grande petroleiro ancorado no Mar-da-Palha, esperando vez para a doca da “Lisnave”.

De lá, “da-janela-do-terceiro-andar”, via muitas outras coisas que, antes, escrevi e reescrevi, acontecidas ou inventadas pelo tempo de calendário na despedida dos sessenta e início dos setenta, e a Abrunheira sempre ficava, quieta, esperando por mim, lá mais para a noite.  

No regresso, o sono voltava. A entrada no velho-comboio da Linha-de-Sintra, adormecia-me de repente. Para trás ficava o reboliço do Cais do Sodré que ainda não tinha ruas cor-de-rosa, da Bernardino Costa, do Arsenal e o plim! Plim! do amarelo subindo e descendo a do Alecrim. O “baixinho” apregoando a lotaria, os hóspedes do “queiroziano” Hotel Bragança, o ardina gritando “as -gordas” dos vespertinos: «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «A Capital» e, — quando os do “lápis-azul” deixavam — «O República». O Sá Rodrigues, o bitoque e o bilhar do “Califórnia”, o digestivo e o “ginger-bear” do “British-Bar”, as imperiais das cinco e “a-janela-do-terceiro-andar”, também ficavam para o dia seguinte.

A “Boa-Viagem” de Sintra para a Abrunheira me trazia e, de barriguinha aconchegada pela Ti Augusta, p’ra noite abrunhense ia, pelo “novo-curronquinho”.

Ainda antes, muito antes — pela “Primária” andaria, de mão dada com a história-de-Portugal, aritmética e gramática, e nas brincadeiras de recreio pequeno e nos simulados choques elétricos do meu parceiro de carteira, o Julinho, que, dizia, caçava pela noite, “morcegos-que-vinham-à-cana-com-sebo” (sebo, que surripiava ao Zé da Natália) e que engaiolava centenas de “caga-lumes”, só numa noite — as passadas do “curronquinho” eram dadas no que, algum tempo depois, viria a ser a Ferreira de Castro e o Cabaço. Zona da Abrunheira, destinada pela sina ou destino, em servir de poiso à brincadeira da rapaziada da terra, com predominância da numerosa prole da Ti Celeste “Pardala”.

Ervinha melhor que relva de tapete posto, era farto o curronquinho. Muitas batalhas de espadachim como nos quadradinhos, e depois, na televisão da “sociedade”, como o “Sir Lancelot” ou o “Robin-dos-Bosques” no tempo do “Errol Flynn”.

Ainda o Coutinho que era Bernardino não tinha tapado todas as valas dos canos da “nova-água”, e os postes de “nova-eletricidade” não davam todos luz, e já o “novo-curronquinho” começava a sua “nova-vida”, com bonitas casas, passeios de calçada e rua alcatroada. Ainda não era Ferreira de Castro, e já a malta se transferia do Manel para o Ramos, que, rapidamente, passaria a ser o Cabaço.

No Cabaço, muitos matrecos jogamos. A “cagadinha” do Rui Simplício, era fatal. Eu, dava-me melhor na defesa. O Caravaca também era forte e o Zé alentejano conseguia autenticas proezas no ataque. O Zé Fernando, usando a sua habitual discrição, lá conseguia defender-se. Ao contrário, sempre falando, outro Zé Fernando, mas este, C. Silva, de quando em vez, lá empurrava a bola para a baliza, mas para o conseguir, tinha de levantar a perna esquerda.

No domingo, acho, vinte e três de setembro, do século vinte eram setenta e três de tempo contado em anos (aí vão quarenta e quatro), para a Festa eu fui e o “curronquinho” e o Cabaço lá ficaram. Nos dias seguintes, de cara cheia de “escritos” de todas as cores, me perguntaram:

— Levaste porrada na campanha da “oposição”? (Havia, no final do outubro seguinte, aquilo que o regime chamava de eleições. Da “primavera”, eram as segundas)

— Eu? Não! Fui à Festa de Albarraque!

Não foi porrada, foi o para-brisas da carrinha-boleia que, na volta, encurtou caminho na esquina da padaria da Abrunheira.

“Convenções-Democráticas”, a gente, as fazia também no princípio do “Curronquinho”, bem encostados à larga porta-verde, pela noite e sem ninguém à vista. Sim! Naquela época, quando ainda não era a Ferreira de Castro, quem falasse mal do governo ou da Guerra Colonial, levava porrada antes ou depois de ser preso pela Pide. Lembram-se?

Quando a demagogia e a loucura andam por aí, convém que nos lembremos, que nada é eternamente adquirido.

Todas as “novas-ruas” da Abrunheira deviam ser construídas como o “novo-curronquinho” que, depois, passou a ser, Ferreira de Castro.

Silvestre Félix
24 de setembro de 2017

Foto: Google (Comboio da Linha de Sintra até década noventa do séc XX)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

BEM-FALANTES!

Neste domingo, mais uma vez, o Largo do Chafariz vai ser caminho para os “Abrunhenses” exercerem o seu direito de voto. Por aqui, pelo "largo" que deveria ser a sala de visitas da "Nossa-Terra", passaremos e, se possível for, porque de tão mal-habituados estamos, nem conta damos do desprezo a que votado está o "Nosso-Monumento".

O Bento o diz e o (Chafariz) tem mostrado pelo tempo em anos contado e, em conclusão dorida, a força do voto parido na madrugada de "Depois-do-Adeus", abençoado pela "Vila-Morena" e sonhando que "O-Povo-Unido-Jamais-Ser(ia)á-Vencido", nada resolverá!

Alguns gostariam que caminho deixasse de ser, e, antes, fosse plateia de bom e sossegado ouvido. Assim, continuariam a "papaguiar" agora, como outros já fizeram noutras "Eras-Bem-Aventuradas". Ter presente a história e lembrarmos as estórias que ouvimos dos mais velhos, é muito bom e aconselha-se.  

"“Gabiru-aperaltado”; dizia dele, a vizinhança. A faladura era de “lorde” e dos bons, muito perto do jeito a doutor. Com os adjetivos e os verbos bem encaixados nas frases bem construídas, lá caminhava o discurso por direções, na maior parte das vezes, já conhecidas. Bem arreado ou aperaltado à moda de Saloio com carteira composta. De jaqueta castanha com corrente dependurada pela direita da abotoadura no colete justinho em fazenda cinzenta, camisa alva e colarinho bem apertado, calça cinzenta de cós bem subido e com bainha larga acompanhando a bota pela frente e o respetivo chapéu de aba larga e preto. A posição de descanso e descontração a preceito implicava os polegares das duas mãos bem firmes na dobra da jaqueta, à frente, nos extremos do peito. A compor a arreadura, aquele bigode, mais para o grosso que para o fino, transbordando o comprimento da beiça de cima, como naquele tempo era uso."

Na época “daquela senhora”, a personagem descrita existia em todas as terras saloias e, também, na Abrunheira. Seria o “bem-falante”, e aquele, a quem, os iletrados tudo perguntavam.

Era um tempo em que, literalmente, se enfiava o barrete saloio ou se armadilhavam grandes chapeladas. Na ignorância mantida e fomentada pelo regime do “botas”, não era difícil enfiar umas “patranhas” na saloiada. O boletim de voto era especialmente enviado para o domicílio e muitas vezes até entregue em mão pelo ocupante do “assento-de-proximidade”. De costas para o balcão, ainda que ligeiramente apoiado, aperaltado como de costume e botando faladura como vinha nos jornais devidamente visados pelos do lápis-azul, o “bem-falante” comentava as contrariedades das condições atmosféricas – naquele tempo em que tudo caía em cima do “cinzento,” porque a claridade e o Sol era só para alguns e todos sabiam disso.

Sabiam, os que reagiram e lutaram com, e, pelo General-Sem-Medo, nas revoltas das colónias indianas e africanas, na revolta do quartel de Beja ou no desvio do “Santa Maria”, protagonizavam o descontentamento militar, a luta dos Partidos clandestinos, etc., etc., – e, porque também sabia, e de que maneira, interroga-se ele, o “bem-falante”, aos presentes; como iria ser a próxima safra do Sabino, do Silvestre Velho, do Veríssimo, do Frouxo ou do João de Leião?

Todas as sessões propagandísticas; fossem no Largo do Chafariz ou numa das tabernas da Abrunheira no terceiro quartel do século XX, ou num qualquer multiusos no XXI, ouvidas pelos tais que sabem e pelos que não sabem, mais do que menos, cheiram a pantominice. Melhor fora que o espetáculo fosse dos saltimbancos. Porque, assim, o pouco que tinham era o que davam e ninguém lhes exigia mais. 

Muitas vezes, os saltimbancos, pelo Largo do Chafariz passearam a sua boa disposição e, os abrunhenses, viram e admiraram a forma como encaravam e levavam a vida que sempre melhor ficava pelos tempos difíceis que corriam, ao contrário de, cá mais para a frente do ano dois mil e poucos, que pior está, para os vivos e até para os mortos.

No “quinze” deste século XXI, muitos vão “parlapiando” para os “assentos-distantes” do povo, mas pelo Largo do Chafariz é que eu nunca os vejo. Para “mal dos nossos pecados”, é cada vez mais difícil que, os que se vão lá sentar, alguma vez venham a passar pelo Largo do Chafariz. Muito longe vão ficar as cadeiras e como entramos no Outono, os dias vão ser mais pequenos, deixando menos “luz” para os que se aventurarem a gastar as solas dos sapatos a caminho, pelo Largo do Chafariz, das mesas de voto.

Muitos burocratas e “bem-falantes”, promotores de detentores, detentores ou candidatos aos “assentos”, gostariam, e muito se esforçam, para voltarem a um certo modelo bafiento. Têm treinado há algum tempo e agora estão mais preparados para levarem a deles avante.

Para os que se sentarão nos “assentos” a partir de 5 de outubro, que, desgraçadamente até lhe tiraram o simbolismo, o “papaguiamento” continuará a ser – a missão! É preciso continuar a usar e abusar de “faladura” para o Zé continuar convencido, mesmo que os euros no bolso sejam poucos.

Silvestre Félix

Abrunheira, 2 de outubro de 2015


Tags: Abrunheira, Largo do Chafariz, Eleições