Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima
autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”,
obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado,
“Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar
à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito
embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência
das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas
aos abrunhenses, aqui evocados!
O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses,
era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas
as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar
os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar,
representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em
duas ou três voltas, no ataque.
O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a
oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e
obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho,
encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que
nem um perdido.
O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima
da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se
tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter
que levar com o “cornudo” Baltazar.
Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”,
(durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à
Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O
Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a
caminhada para casa.
Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”,
tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência,
no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”.
Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três
tinto para O Carlos que não era “Fadista”.
Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no
largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da
casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda
não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando
os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não
era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.
Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo
estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar
por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar,
ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E
foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas
dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”,
trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque
dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho
estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o
chão com as quatro patas.
Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do
Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe
autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo
sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava
a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio
de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.
Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos”
se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar
a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada
em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.
À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria
que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”.
Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar
tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê,
nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o
Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da
cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a
um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!
Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado”
para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário,
resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha
dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava
em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do
Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.
— Baltazaaaaaar!!!
Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do
carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”,
sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a
aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura”
da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O
Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”,
tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo
de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível
para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o
Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas”
e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava
naquele instante.
Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas
e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me
apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.
O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos”
para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a
mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter
ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao
chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista”
e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual
vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém
sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele
dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas
e ia embora.
………………………………………….
Meio-século depois, a discriminação
social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância,
por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das
pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados
e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma
dessas vítimas.
Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio) |
O nosso Chafariz, obra da
autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais
um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando
precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu —
Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem
construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e,
especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande
abraço!
Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019