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domingo, 13 de outubro de 2019

BALTAZAR, O AUTORITÁRIO



Como puro e digno representante da “Ovina-Espécie”, legítima autoridade controladora e guardadora de todo o “Largo-do-Chafariz”, obediente à voz de comando do “Tavinho” e descendente direto do importante e denominado, “Rebanho-do-Sapateiro-de-Manique”, não podia, o Baltazar, “levar à paciência”, que o desafiassem daquela maneira.
BALTAZAR, O AUTORITÁRIO (gravura do google)

E eu, o que escrevi e que p’ra frente vou escrever, muito embora pudesse ter acontecido, inventei-o! A verdade, fica-se pela existência das “personagens” e, eventual coincidência, numa ou noutra situação. Muitos vivas aos abrunhenses, aqui evocados!

O Carlos, que não era “Fadista”, mas para os abrunhenses ou abrunheirenses, era como se fosse, sempre teve uma relação complicada com o Baltazar. Todas as vezes que um se enfiava no ângulo de visão do outro, tratava logo de aplicar os devidos procedimentos; O Carlos que não era “Fadista”, na defesa. O Baltazar, representante da “Ovina-Espécie” e bem aviado de cornadura retorcida em duas ou três voltas, no ataque.  

O Tavinho, que gostava da “festa”, nunca perdia a oportunidade de proporcionar momentos de extremo prazer ao seu domesticado e obediente animal e a ele próprio. Enquanto o Baltazar fazia “das-suas”, o Tavinho, encostado à ombreira da porta da vacaria, de modo meio-escondido, ria-se que nem um perdido.

O Carlos que não era “Fadista”, sempre resistia à sua condição de vítima da sociedade abrunhense, mas, lamentavelmente para ele, sem sucesso. Como se se tratasse “da cereja no cimo do bolo”, não lhe faltava mais nada do que ter que levar com o “cornudo” Baltazar.

Naquele final de dia cheio de festança da “eletricidade”, (durante alguns anos, os abrunhenses festejavam a chegada da eletricidade à Abrunheira) à boa maneira dos “sessentas” do século passado, O Carlos que não era “Fadista”, empreendeu a difícil tarefa de iniciar a caminhada para casa.

Ora, a pinga que todo o dia lhe tinha corrido pela “goela-abaixo”, tinha produzido o seu efeito. Foi por vontade própria e pela alta competência, no que “toca” a técnica de vendas apuradíssima, do Rafael que não era “Coxo”. Não havia freguês a chegar, que o Ti Rafael não angariasse um de três tinto para O Carlos que não era “Fadista”. 

Então, O Carlos que não era “Fadista”, saiu da “Festança”, no largo fronteiro à Quinta do Olival, Quinta de Santo António e do quintal da casa onde a minha família morava, pela rua da casa do Sigamó que ainda não era do “Olival”, até à curva da Deolinda e João “Tirapicos”. Contando os passos dados para a frente, para os lados e para trás, O Carlos que não era “Fadista”, terá demorado mais duma hora.

Aquela hora, o Tavinho já tinha mungido as vacas e tudo estava recolhido à exceção do Baltazar. De avental posto, — não fosse passar por ali alguma ovelha “saída” ou entrada, para ele era igual — o Baltazar, ainda farejava por ali. Tinha uma boa visão, mas cheirava melhor que um cão! E foi, na certa, devido a essa excecional capacidade, que lhe entrou pelas ventas dentro, o odor a vinho azedo que nem vinagre, que O Carlos que não era “Fadista”, trazia com ele e que o carneiro bem conhecia. Pois, só pode ter sido, porque dali, desde a porta da vacaria do Ti Veríssimo, onde o Baltazar e o Tavinho estavam, ainda não dava para ver o motivo pelo qual o carneiro já raspava o chão com as quatro patas.    

Bufando e com os olhos postos para lá da esquina da casa do Manel da Colónia, de vez em quando mirava o dono, como que a pedir-lhe autorização, mas não havendo reação do Tavinho, o animal continuava no mesmo sítio. A ansiedade era tanta que, continuando a raspar o chão, até se começava a babar. O Carlos que não era “Fadista”, coitado, lá vinha, mas não havia meio de chegar ao cimo do Largo do Chafariz.

Até que, certinho como “matemática-equação” resolvida, três “acontecimentos” se conjugam no mesmo, preciso-momento: O Carlos que não era “Fadista” a dobrar a esquina do Manel da Colónia, a partida do Baltazar para uma correria desenfreada em sua direção e a saída do quintal para o Largo, do Ti Hilário da Natália.

À partida, e para quem a assistir estivesse, nada impediria que o “carneiro-cornudo”, desse mais uma cornada no Carlos que não era “Fadista”. Pois bem, mas poucos sabiam e o Tavinho era uma das exceções, que o Baltazar tinha um “alto” respeito, pelo Ti Hilário da Natália. Nunca ninguém soube porquê, nem mesmo o Ti Hilário. Estivesse com um “copito” ou com meia-dúzia deles, o Baltazar até se ajoelhava à frente do Ti Hilário. Quem não gostava nada da cena, era o Tavinho. Roía-se de ciúmes. Então, o cabrão tinha mais respeito a um vizinho, do que a ele? Mas que mistério!

Naquele fim de tarde de “festança”, tudo estava “preparado” para que acontecesse uma desgraça, não fosse a perspicácia do Ti Hilário, resultado da “espertina” da longa sesta e da folga que a Ti Natália lhe tinha dado com a sua ausência, que “num-décimo-de-segundo”, percebeu o que ali estava em jogo. Acelerou duas passadas e, em menos de nada, estava na trajetória do Baltazar que, enfurecido, lá ia em direção ao “cambaleante” Carlos que não era “Fadista”.

— Baltazaaaaaar!!!

Gritou o Ti Hilário, virando-se ao mesmo tempo, na direção do carneiro-cornudo e autoritário — entretanto, o Carlos que não era “Fadista”, sem se aperceber de nada, continuava no mesmo passo hesitante e cambaleante, a aproximar-se do “centro-de-ação”. Se não, se tivesse visto o Baltazar, com a “bravura” da “vinhaça” como lhe era peculiar, ainda era capaz de o querer “tourear”. O Carlos que não era “Fadista”, independentemente da sua inesgotável “sede”, tinha um problema sério do foro psiquiátrico e neurológico, sofrendo todo o tipo de “gozo” e discriminação social. A família fazia o possível e o impossível para lhe dar o melhor, mas, naquele tempo, as coisas eram mesmo assim — o Baltazar, ouvindo o chamamento do Ti Hilário, fez uma travagem a fundo às “quatro-rodas” e conseguiu parar mesmo em frente do marido da Ti Natália, que também chegava naquele instante.

Com o grito do Ti Hilário, outras pessoas assomaram às portas e janelas, mas ninguém teve coragem para fazer parte da cena ou melhor, não me apetece acrescentar mais personagens ao escrito que já vai longo.

O Ti Hilário lá elaborou, em prática gestual, alguns “mandamentos” para Baltazar ver. O cornudo-carneiro aos seus pés se enroscou e, respondendo a mais um gesto do mandante, de barriga para cima, depois ajoelhando-se, até ter ordem para se sentar, como cão fosse. E ali ficou quietinho, sem ligar ao chamamento do dono Tavinho. O Ti Hilário foi buscar O Carlos que não era “Fadista” e, antes de mandar o Baltazar de volta ao Tavinho, mostrou-lhe bem a habitual vítima das “chacotas” coletivas, que ele, carneiro-cornudo, ajudava a fazer. Ninguém sabe explicar como foi possível aquela mudança de atitude, mas a partir daquele dia, sempre que o Baltazar via O Carlos que não era “Fadista”, metia-o-rabo-entre-as-pernas e ia embora.
………………………………………….

Meio-século depois, a discriminação social é, infelizmente, ainda uma realidade da nossa sociedade. Por ignorância, por medo ou simplesmente por afirmação classista, parte considerável das pessoas com quem nos cruzamos no dia-a-dia, discriminam outras com os mais variados e quase sempre condenáveis, pretextos. O Carlos, a que aqui me refiro, era uma dessas vítimas.

Chafariz da Abrunheira (Foto do Zé Dionísio)
O nosso Chafariz, obra da autoria do Ti Veríssimo, pai do Octávio (Tavinho) e da Ofélia, completou mais um ano de vida num destes dias. Penso que já lá vão 95 contados em anos. Quando precisei de dar um título a este blogue, foi o primeiro nome que me ocorreu — Largo do Chafariz!
Todas as homenagens para quem construiu o Chafariz, para quem, ao longo deste quase século se serviu dele e, especialmente, para os seus cuidadores atuais. Ao Artur e à Mena, um grande abraço!

Silvestre Brandão Félix
13 outubro de 2019