Mostrar mensagens com a etiqueta Caravaca. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Caravaca. Mostrar todas as mensagens

domingo, 24 de setembro de 2017

COMBOIO DA LINHA DE SINTRA, O CURRONQUINHO E A JANELA DO TERCEIRO ANDAR

O meu segundo sono, todos os dias da semana, acontecia assim que entrava no comboio que me levava à capital, onde, “daquela-janela-do-terceiro-andar”, tantas vezes via, as últimas faluas do Tejo, os cacilheiros na sua travessia e o grande petroleiro ancorado no Mar-da-Palha, esperando vez para a doca da “Lisnave”.

De lá, “da-janela-do-terceiro-andar”, via muitas outras coisas que, antes, escrevi e reescrevi, acontecidas ou inventadas pelo tempo de calendário na despedida dos sessenta e início dos setenta, e a Abrunheira sempre ficava, quieta, esperando por mim, lá mais para a noite.  

No regresso, o sono voltava. A entrada no velho-comboio da Linha-de-Sintra, adormecia-me de repente. Para trás ficava o reboliço do Cais do Sodré que ainda não tinha ruas cor-de-rosa, da Bernardino Costa, do Arsenal e o plim! Plim! do amarelo subindo e descendo a do Alecrim. O “baixinho” apregoando a lotaria, os hóspedes do “queiroziano” Hotel Bragança, o ardina gritando “as -gordas” dos vespertinos: «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «A Capital» e, — quando os do “lápis-azul” deixavam — «O República». O Sá Rodrigues, o bitoque e o bilhar do “Califórnia”, o digestivo e o “ginger-bear” do “British-Bar”, as imperiais das cinco e “a-janela-do-terceiro-andar”, também ficavam para o dia seguinte.

A “Boa-Viagem” de Sintra para a Abrunheira me trazia e, de barriguinha aconchegada pela Ti Augusta, p’ra noite abrunhense ia, pelo “novo-curronquinho”.

Ainda antes, muito antes — pela “Primária” andaria, de mão dada com a história-de-Portugal, aritmética e gramática, e nas brincadeiras de recreio pequeno e nos simulados choques elétricos do meu parceiro de carteira, o Julinho, que, dizia, caçava pela noite, “morcegos-que-vinham-à-cana-com-sebo” (sebo, que surripiava ao Zé da Natália) e que engaiolava centenas de “caga-lumes”, só numa noite — as passadas do “curronquinho” eram dadas no que, algum tempo depois, viria a ser a Ferreira de Castro e o Cabaço. Zona da Abrunheira, destinada pela sina ou destino, em servir de poiso à brincadeira da rapaziada da terra, com predominância da numerosa prole da Ti Celeste “Pardala”.

Ervinha melhor que relva de tapete posto, era farto o curronquinho. Muitas batalhas de espadachim como nos quadradinhos, e depois, na televisão da “sociedade”, como o “Sir Lancelot” ou o “Robin-dos-Bosques” no tempo do “Errol Flynn”.

Ainda o Coutinho que era Bernardino não tinha tapado todas as valas dos canos da “nova-água”, e os postes de “nova-eletricidade” não davam todos luz, e já o “novo-curronquinho” começava a sua “nova-vida”, com bonitas casas, passeios de calçada e rua alcatroada. Ainda não era Ferreira de Castro, e já a malta se transferia do Manel para o Ramos, que, rapidamente, passaria a ser o Cabaço.

No Cabaço, muitos matrecos jogamos. A “cagadinha” do Rui Simplício, era fatal. Eu, dava-me melhor na defesa. O Caravaca também era forte e o Zé alentejano conseguia autenticas proezas no ataque. O Zé Fernando, usando a sua habitual discrição, lá conseguia defender-se. Ao contrário, sempre falando, outro Zé Fernando, mas este, C. Silva, de quando em vez, lá empurrava a bola para a baliza, mas para o conseguir, tinha de levantar a perna esquerda.

No domingo, acho, vinte e três de setembro, do século vinte eram setenta e três de tempo contado em anos (aí vão quarenta e quatro), para a Festa eu fui e o “curronquinho” e o Cabaço lá ficaram. Nos dias seguintes, de cara cheia de “escritos” de todas as cores, me perguntaram:

— Levaste porrada na campanha da “oposição”? (Havia, no final do outubro seguinte, aquilo que o regime chamava de eleições. Da “primavera”, eram as segundas)

— Eu? Não! Fui à Festa de Albarraque!

Não foi porrada, foi o para-brisas da carrinha-boleia que, na volta, encurtou caminho na esquina da padaria da Abrunheira.

“Convenções-Democráticas”, a gente, as fazia também no princípio do “Curronquinho”, bem encostados à larga porta-verde, pela noite e sem ninguém à vista. Sim! Naquela época, quando ainda não era a Ferreira de Castro, quem falasse mal do governo ou da Guerra Colonial, levava porrada antes ou depois de ser preso pela Pide. Lembram-se?

Quando a demagogia e a loucura andam por aí, convém que nos lembremos, que nada é eternamente adquirido.

Todas as “novas-ruas” da Abrunheira deviam ser construídas como o “novo-curronquinho” que, depois, passou a ser, Ferreira de Castro.

Silvestre Félix
24 de setembro de 2017

Foto: Google (Comboio da Linha de Sintra até década noventa do séc XX)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

MALDITA CORVINA!

Jardim do Bairro da Colónia - Silvestre - 1973
Em tempo passado, corrido e contado em anos, irão, pelo menos, uns quarenta e um. É verdade, ainda vivíamos no regime do “botas” que já não era, embora, na fase final duma “primavera” que nunca chegou a ser. Mil novecentos e setenta e três, derradeiros anos do terceiro quartel do já longínquo século vinte. No ano anterior – setenta e dois – tinham acontecido os Olímpicos de Munique e, por isso, por esses caminhos acima até ao “novoBairro da Colónia, levei o meu rádio, gravador e leitor de cassetes pirata e sem serem, dentro do saquinho branco com o símbolo olímpico e escrito “Munique “72”.

Quem vai por esses caminhos acima também vem por esses caminhos abaixo. Realmente vim, mas depois de muita “praga” ter atirado à corvina. Sim, corvina! Aquele peixe muito bom que, nos últimos tempos, anda fugido das nossas peixarias. Em setenta e três do século passado – ano do III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro que a PIDE-DGS desavergonhadamente invadiu – penso que por volta de Abril, o Caravaca-PaiGuarda prisional dos antigos – desafiou alguns amigos do Caravaca-filho para se fazer a “folha” a uma cabeçorra de corvina cozida. E então lá fui por aí acima com os do costume, estrear a casa nova do Caravaca que, até aí, morava, como muitos outros guardas prisionais da Colónia, na Abrunheira, junto ao Chico Cobeca, no início da Travessa do Norte.

Maldita corvina!” Então, não é que, com o que lhe juntei de bebida, talvez vinho branco ou verde-branco fresco, armou um sarilho alcoólico-intestinal que me ia desfazendo todo em vómito e diarreia como nunca antes nem depois experimentara. “Maldita corvina” foi o que mais repeti cambaleando no bonito jardim e boca d’água do “Novo bairro da Colónia” de mil novecentos e setenta e três quando, ainda, a dois passos do Chiado, a PIDE-DGS torturava o operário, a doméstica ou o intelectual, só porque a linha de pensamento divergia e eu, duma “janela dum terceiro andar” que, com o Tejo como espelho, conseguia ver todo o mundo pelo lado dos dezoito anos que nunca mais voltaram. 

Desde essa época, em anos o tempo conta quarenta e um e, pelo menos, durante metade, quando pelos caminhos acima ou abaixo, vamos ou vimos pela Colónia – sempre com muito cuidado como a minha querida Mãe dizia quando, em tempo contado para trás em anos seriam dez, onze ou doze e me deixava conduzir pela burra Carocha, pela ternurenta vaca Bonita, pela Marcina, pela Estrela e por outras que os nomes voltavam por passarem de mães leiteiras e parideiras para vitelas filhas e criadas com tanto amor pela Ti Augusta, que muita tristeza se abatia lá por casa quando o destino se cumpria e o Fachadas ou outro qualquer comprador se abeirava e carregava o animal – revolve-me o estomago mas não por causa da “corvina” nem do branco maduro ou verde fresco. O “Bairro da Colónia” está velho e abandonado de manutenção e arranjos básicos. As velhas moradias, por exemplo a do “guardaVicente, há muito que “desistiram” e telhados ou paredes se deixaram cair, os prédios – como o do Caravaca – de mil novecentos e setenta e dois e setenta e três, vão pelo mesmo caminho se não lhe puserem “a mão” rapidamente.

O antes “novo” e agora “velhoBairro da Colónia, está como este País, a cair aos bocados no meio duma revolta estomacal só que, agora, a culpa não é da “maldita corvina”, mas sim, da

“Maldita corja!”


Silvestre Félix