O meu segundo sono, todos os dias da semana, acontecia assim
que entrava no comboio que me levava à capital, onde,
“daquela-janela-do-terceiro-andar”, tantas vezes via, as últimas faluas do
Tejo, os cacilheiros na sua travessia e o grande petroleiro ancorado no
Mar-da-Palha, esperando vez para a doca da “Lisnave”.
De lá, “da-janela-do-terceiro-andar”, via muitas outras
coisas que, antes, escrevi e reescrevi, acontecidas ou inventadas pelo tempo de
calendário na despedida dos sessenta e início dos setenta, e a Abrunheira
sempre ficava, quieta, esperando por mim, lá mais para a noite.
No regresso, o sono voltava. A entrada no velho-comboio da
Linha-de-Sintra, adormecia-me de repente. Para trás ficava o reboliço do Cais
do Sodré que ainda não tinha ruas cor-de-rosa, da Bernardino Costa, do Arsenal
e o plim! Plim! do amarelo subindo e descendo a do Alecrim. O “baixinho” apregoando
a lotaria, os hóspedes do “queiroziano” Hotel Bragança, o ardina gritando “as
-gordas” dos vespertinos: «Diário Popular», «Diário de Lisboa», «A Capital» e,
— quando os do “lápis-azul” deixavam — «O República». O Sá Rodrigues, o bitoque
e o bilhar do “Califórnia”, o digestivo e o “ginger-bear” do “British-Bar”, as
imperiais das cinco e “a-janela-do-terceiro-andar”, também ficavam para o dia
seguinte.
A “Boa-Viagem” de Sintra para a Abrunheira me trazia e, de
barriguinha aconchegada pela Ti Augusta, p’ra noite abrunhense ia, pelo
“novo-curronquinho”.
Ainda antes, muito antes — pela “Primária” andaria, de mão
dada com a história-de-Portugal, aritmética e gramática, e nas brincadeiras de
recreio pequeno e nos simulados choques elétricos do meu parceiro de carteira, o
Julinho, que, dizia, caçava pela noite, “morcegos-que-vinham-à-cana-com-sebo” (sebo,
que surripiava ao Zé da Natália) e que engaiolava centenas de “caga-lumes”, só
numa noite — as passadas do “curronquinho” eram dadas no que, algum tempo
depois, viria a ser a Ferreira de Castro e o Cabaço. Zona da Abrunheira,
destinada pela sina ou destino, em servir de poiso à brincadeira da rapaziada
da terra, com predominância da numerosa prole da Ti Celeste “Pardala”.
Ervinha melhor que relva de tapete posto, era farto o
curronquinho. Muitas batalhas de espadachim como nos quadradinhos, e depois, na
televisão da “sociedade”, como o “Sir Lancelot” ou o “Robin-dos-Bosques” no
tempo do “Errol Flynn”.
Ainda o Coutinho que era Bernardino não tinha tapado todas as
valas dos canos da “nova-água”, e os postes de “nova-eletricidade” não davam
todos luz, e já o “novo-curronquinho” começava a sua “nova-vida”, com bonitas
casas, passeios de calçada e rua alcatroada. Ainda não era Ferreira de Castro,
e já a malta se transferia do Manel para o Ramos, que, rapidamente, passaria a
ser o Cabaço.
No Cabaço, muitos matrecos jogamos. A “cagadinha” do Rui
Simplício, era fatal. Eu, dava-me melhor na defesa. O Caravaca também era forte
e o Zé alentejano conseguia autenticas proezas no ataque. O Zé Fernando, usando
a sua habitual discrição, lá conseguia defender-se. Ao contrário, sempre
falando, outro Zé Fernando, mas este, C. Silva, de quando em vez, lá empurrava
a bola para a baliza, mas para o conseguir, tinha de levantar a perna esquerda.
No domingo, acho, vinte e três de setembro, do século vinte eram
setenta e três de tempo contado em anos (aí vão quarenta e quatro), para a
Festa eu fui e o “curronquinho” e o Cabaço lá ficaram. Nos dias seguintes, de
cara cheia de “escritos” de todas as cores, me perguntaram:
— Levaste porrada na campanha da “oposição”? (Havia, no final do outubro seguinte, aquilo
que o regime chamava de eleições. Da “primavera”, eram as segundas)
— Eu? Não! Fui à Festa de Albarraque!
Não foi porrada, foi o para-brisas da carrinha-boleia que, na
volta, encurtou caminho na esquina da padaria da Abrunheira.
“Convenções-Democráticas”, a gente, as fazia também no
princípio do “Curronquinho”, bem encostados à larga porta-verde, pela noite e sem
ninguém à vista. Sim! Naquela época, quando ainda não era a Ferreira de Castro,
quem falasse mal do governo ou da Guerra Colonial, levava porrada antes ou
depois de ser preso pela Pide. Lembram-se?
Quando a demagogia e a loucura andam por aí, convém que nos
lembremos, que nada é eternamente adquirido.
Todas as “novas-ruas” da Abrunheira deviam ser construídas
como o “novo-curronquinho” que, depois, passou a ser, Ferreira de Castro.
Silvestre Félix
24 de setembro de 2017
Foto: Google (Comboio da Linha de Sintra até década noventa do séc XX)
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