Mais de trinta graus a caminho dos quarenta, é muito para um
abrunhense ou abrunheirense, como outros afirmam ser correto dizer-se. Bom,
duma maneira ou doutra, trinta e tal graus não deixa de ser calor e, ainda
mais, se o nosso providencial ventinho estiver de folga. Dirão alguns; é verão,
por isso natural que estejam trinta e tal graus. Pois, é verdade, digo eu. Mas
então, como explicamos a um neto ou uma neta, que tem de ir para a escola durante
o verão, que, em boa verdade, está associado (o verão) a férias, praia,
preguiça, forrobodó, etc.?
Eu, quando pela “Quinta do Olival” passava, tomando a
esquerda e, mais acima, depois da curva, virava à direita junto à taberna do
(depois do Faial) Ramos e enfiava pela azinhaga da pia até um pouquinho antes
da entrada para a Escola, nunca o fazia antes de 7 de outubro. É verdade,
naquele tempo do “botas”, as escolas começavam todas nesse dia, desde que não
fosse sábado ou domingo.
Pela Abrunheira, mesmo com ventania, o mês de setembro era de
férias e o pessoal do Casal dos Icos não dava tréguas à brincadeira. Bem
comandados pela Luizinha, o bando brincava, rezingava, pedalava e descansava
até final do mês.
Porque assim era, o nosso saudoso Júlio Silva, só levantava a
tenda de campismo da Lagoa de Albufeira, no feriado (que uns inteligentes há
pouco tempo quiseram eliminar) do 5 de outubro. Nesse dia, fazia-se o último
banho salgado da época e era cozinhado o último almoço na praia, pela nossa
querida Laura. Dois dias depois, os rapazes e raparigas começavam a Escola.
Ainda escrevendo sobre altas temperaturas e fortes ventanias,
uns quantos contados em anos mais tarde, quando por outros mundos andava, duas
principais coisas, para além da família, me faziam sempre falta: Não ter à
vista a torre do Palácio da Pena e, se o destino fosse África da Lusofonia, o
ventinho que pela Abrunheira passa a maior parte dos dias do ano. É claro que
gostaria de ter comigo outras “serventias”, mas, estas duas, eram as mais
importantes.
Voltando outra vez para trás e ao uso das fontes, chafarizes
e “saudosas” águas correntes do Rio das Sesmarias todo o ano, não resisto à
tentação de puxar pela imaginária de cordel e ao vício incontornável de falar
de abrunhenses ou abrunheirenses que, também, muitas vezes passaram pelo Largo
do Chafariz, sentindo o vento e, claro está, o saudável odor, resultado das
necessidades fisiológicas que, todos os animais, enquanto matavam a seda, ali
deixavam.
Então, ainda de calor e vento escrevendo, de certeza, que as
mesmas queixas tiveram, não poucas vezes, o Coutinho que era Bernardino e tinha
a “Ciência-da-Pedra”, e o Sacadura que era Francisco Borrego e não se lhe
conhecia ciência nenhuma, que, fiando-se no ventinho da nossa “Terra”, daquela
vez lhes faltou e a tornaram Brasil do Atlântico Norte – assim como se fosse um
regresso às origens como conta o Laurentino
Gomes no 1822 – numa aventura que, em vez de aeronáutica, se tornou
acrobática, quando foram os dois parar com os quatro costados ao chão.
Vestígio da nossa brasilidade, o Café Brasil, lá em cima, na
avenida dos combatentes. Pois então, a única razão porque o Manel batizou assim
o café, foi a dita aventura, sonhada pelos abrunhenses ou abrunheirenses,
Coutinho que era Bernardino e Sacadura que era Francisco Borrego, que assim se
tornaram padrinhos da alcunha de “Brasil” que a nossa Terra tomou, até aos da
minha geração. Daí para cá, foi-se perdendo o sentido da alcunha e, hoje, rapaz
ou rapariga que, nestes primeiros dias deste mês, já será “despejada(o)” na
grande escola, saberá, sim, onde é o Brasil das telenovelas, mas desconhece
onde é o outro “Brasil” deste lado do Atlântico.
O Bernardino que não era Coutinho, porque o trabalho na
pedreira do Ti Miguel, para além da “Ciência” que aplicava em cada operação de
quebradura bem medida, tinha de ter a força física requerida para que o
resultado fosse o pretendido e, as temperaturas altas, não eram nada amigas
desta arte da pedra, levada, muito a sério, pelo genro do Caracol Velho.
Nem a Judite Caracol, sua mulher, se dava bem com o calor.
Pois é, ela, mulher de muitos quereres e saberes, quando a temperatura ia alta,
logo adivinhava que tarefa extra ia ter nesse dia. Lá mais para a tardinha,
espreitar pelo Faial ou Ramos, pelo Álvaro e Menina Emília, até encontrar o
Coutinho que era Bernardino e lavá-lo para casa já com muitos “gãos-na-asa”, ou
seja, muitas ciganas e charretes metidas no bucho.
O Francisco Borrego que não era Sacadura, também não se
embeiçava com o calor e com a falta de vento. Se assim fosse, não teria dito:
“empurra agora que faz vento”. E, como todos já sabemos, embora eles tivessem
atirado as culpas para a falta de vento, não foi por isso que foram direitinhos
ao chão.
O reclamante abrunhense ou abrunheirense, para o caso tanto
faz, que, no que toca ao calor o faz pelo excesso e no extremo, já, no que ao
frio diz respeito, a coisa vai pelo contrário. Não há frio que
“chegue-aos-calcanhares” dos dias em que, de manhã, encontrávamos as covas do
jogo do bilas, cheias de gelo. E também, a caminho da Escola, junto à “Vivenda
Juveniana”, onde ainda está o sítio, mas de azulejos nada, a nascente que ali
corria, ficava coberta de gelo. A gente quebrava-o e, dali a bocado, já estava
outra vez na mesma.
O companheiro Rio das Sesmarias deixava que, nos cantinhos,
junto às margens, a sua água gelasse um bocadinho e, passando, com sua licença,
para a outra margem junto à horta do Manel da Colónia e à casa do Ti Joaquim,
as pedreiras do Ti Miguel, lá mais acima, laboratório da “Ciência-da-Pedra” do
Coutinho que era Bernardino, no inverno formava pequenas lagoas cobertas de
gelo. Havia anos em que o Zé Augusto, atreito à aventura, conseguia andar por
cima do gelo sem que se partisse.
Relendo a prosa que já vai longa e, quando digo, «altas
temperaturas e forte ventania», alguns dos meus amigos, com certeza, pensarão
que de campanha eleitoral, irei falar.
Não! Estejam descansados que a minha disposição, neste
particular, é igual à dos candidatos. Tudo calmo e sem se falar de nada.
Completamente ignorados e esquecidos. Curiosamente, nem promessas há. Claro,
estou a referir-me à nossa Terra, quanto muito, à antiga (que espero ainda seja
recuperada) freguesia de São Pedro de Penaferrim.
Silvestre Félix
Abrunheira, 6 de setembro de 2017
Fotos: (Google)
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