Lugar p’raqui, lugar p’rali, lugar-de-cima e lugar-de-baixo!
Era assim que os abrunhenses se referiam à sua terra. Mais tarde, com os
empregadores-lavradores já velhos, a sua agricultura na falência e a
mão-de-obra rural, a virar operária com a instalação das fábricas da lixa
“Sincal” e borracha “Leacock-Rosa”, seguindo as de Mem Martins, “Resiquímica”,
a “Adreta Plásticos” e “Messa”, a terminologia evoluiu e, de “Lugar”, passamos
a ver escrito onde era pedido, antes da Abrunheira; localidade!
No Lugar-de-Cima, mesmo na ponta, à entrada pela direita de
quem vem da Charneca, o Ti Rafael Miranda com o seu rebanho de ovelhas. O Ti
Rafael e Ti Elvira eram pais do Mário que, ainda novo, casou com a minha irmã
Maria José e, por isso, avós do Zé Augusto que, já cá estava há ano e meio,
quando eu nasci; ou seja, “antes de ser, já o era” (tio). Por via disso, muitas
vezes ia com ele provar os queijinhos frescos da Ti Elvira, ao lanche. Também
por lá, sempre estava, a Manela, prima do Zé Augusto. O Ti Rafael, gostava de
se sentir fiel depositário da reputação atribuída à sua terra de origem: “Deita
abaixo, que é de Lourel!” É verdade, era de Lourel. Naquela época, do outro
lado da serra, era longe, mas agora, quase sessenta de tempo contado em anos, é
da mesma “Freguesia”. Contranatura, mas é!
Do mesmo lado da Charneca, mas pela esquerda, a propriedade
era outra. Muito alto, barriga um pouco saliente, sempre de barrete saloio,
camisa aos quadradinhos azuis aberta até ao peito, atando as pontas pela
cintura. Calças cinzentas com o cós alto e seguras pela cinta de franjas preta
que dava duas voltas inteiras. Colete com relógio enfiado num dos bolsinhos com
a corrente dependurada e atada numa das casas de abotoar. Botas de cano médio
ou pequeno, cobertas com a boca de sino das calças e, na mão, o sacho de cabo
alto que servia para amparo, defesa e, no campo, eliminar alguma erva-daninha e
desfazer o “torrão” mais renitente. Enfim, o Ti Sabino era um saloio de cima a
baixo.
Era assim, como se fosse o guardião do “lugar-de-cima” e bem
na ponta. Toda a parte da estrada para lá, era propriedade sua. Um dos grandes
agricultores e proprietários da Abrunheira. Desgostoso pela ausência de filho
homem e pai duma única filha com muitos problemas de saúde que, mesmo assim,
havia de conseguir casar com o Manel, colega do meu pai na Resiquímica e que,
de Pombal, terra do “Marquês”, veio. Ele, Manel, encurralado entre a falta de
arte na conquista, e a juventude que já tinha sido, fez as suas “contas”, e
decidiu juntar o útil — tomar conta da filha do Ti Sabino— ao agradável —
desafogo financeiro imediato e “investimento” no futuro — casando com a
herdeira da fortuna dum abrunhense, bom de carácter e generoso no trato.
Por aquela segunda metade da década de sessenta, já com idade
avançada, por ali circulava entre o novíssimo café Brasil gerido pelo genro
Manel, e a taberna do Faial que em pouco tempo era do Ramos, lembrando-se, com
carrego de nostalgia, dos tempos idos, em que, em vez de andantes botando fumo
pelo escape e fazendo barulho a ponto de acordar um morto, da quantidade
carroças e animais soltos que por ali paravam.
Muitas vezes se lembrava, que, pela época do “salto” do alto
do zambujeiro, praticado pelo Coutinho que era Bernardino e pelo Sacadura que
era Francisco Borrego, e que, por isso, haviam de dar alcunha à terra e ao café
do genro, ele se queixava das poucas argolas para segurar as arreatas dos
burros que os fregueses levavam, quando se aviavam na padaria e na mercearia.
Tinham de pôr mais argolas para as carroças dos burros, machos ou mulas, não
ficarem no meio do caminho.
Quem havia de dizer que,
muito tempo contado em anos cá para a frente, quase a idade dum adulto no
século XXI, os abrunhenses, haviam de ter as mesmas ralações que o Ti Sabino já
tinha. Exatamente no mesmo sítio e pelos mesmos motivos, continua a haver uns
burros, machos ou mulas, que por falta de lugares dentro da mercearia ou da
padaria, deixam as suas carroças (carros), no meio do caminho, e os outros que
se lixem.
O Ti Sabino, com boa vontade, ia convencendo o pessoal e as
argolas lá apareciam, mas, agora, nos dias em que a Catalunha (parece) declarou
a independência de Espanha, que já se perfilam os sucessores do Pedro Passos Coelho,
que Sócrates e mais vinte sete foram acusados, que o Trump está cada vez mais
“ao lado” saindo da UNESCO, que o Kim tapou o penteado com um chapéu de abas,
que o Orçamento para 2018 foi aprovado em Conselho de Ministros e entregue na
Assembleia da República, será que, depois disto tudo, conseguimos convencer o
renovado poder a resolver o problema da entrada e saída da Abrunheira, junto à
padaria?
Silvestre Brandão Félix
16 de outubro de 2017
Foto: Café Brasil –
Abrunheira (Foto do extinto blogue “aldeia-viva” no google)