sexta-feira, 25 de março de 2011

PORQUE NOS CHAMAVAM BRASILEIROS

Em plena segunda década deste século vinte e um, em dias de terramotos e tsunamis devastadores e crises de dívidas soberanas que já nada têm que ver com soberania, quase não se ouve e, mesmo eu, de certeza não entenderei à primeira, se alguém me chamar “Brasileiro”. Até há tempos, contados em vinte e cinco ou trinta anos, ainda era comum: em Albarraque, no Linhó, em Mem Martins, em Rio de Mouro ou em Ranholas, referirem-se aos Abrunhenses de Brasileiros e à Abrunheira de “Brasil”.

Porquê? O que tinha a Abrunheira a ver com o Brasil? Na verdade existe uma justificação para isso e a história pode ser contada mais ou menos assim:

O feito dos nossos heróis, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, saindo de Lisboa no hidroavião "Lusitânia" em 30 de Março de 1922, fazendo a rota do Atlântico Sul e chegando ao Rio de Janeiro no Hidroavião Santa Cruz a 17 de Junho de 1922, teve um alarido muito grande em todo o País. Era uma época em que os valores e a auto-estima estavam de rastos por cá (em termos de níveis, não andarão muito longe dos de hoje) e, um feito destes, foi festejado como se tivéssemos voltado ao tempo dos descobrimentos. O que é verdade é que esta viagem dos dois Portugueses ficou na história da aviação civil mundial. A primeira travessia do Atlântico Sul aconteceu, fundamentalmente pela tenacidade e coragem dos dois aviadores e são essas qualidades que se destacam no imaginário dos portugueses anónimos, mesmo daqueles que nem sequer faziam ideia aproximada do que era um avião, ou, como à época se dizia, um aeroplano, ou ainda, neste caso, um hidroavião.

Na Abrunheira o acontecimento também foi vivido com o mesmo entusiasmo. Foi de tal forma que houve quem quisesse imitar os Heróis Nacionais. E logo eles que nunca tinham visto um “passarão” daqueles nem nunca tinham falado com alguém que o tivesse feito por eles. Bom, mas coragem não se mede e lá se atiraram à tarefa.

Um dos protagonistas, o Francisco Borrego, morava num casal saloio onde é hoje a Rua da Escola, em frente à Rua de S. José e era familiar do Mário e Paulo Martinho. Tenho ideia de ser só agricultor, não me ocorre que fosse encartado em qualquer outra arte. O outro era o Bernardino, marido da Judite Caracol e tinha a arte (como ao tempo se dizia) de cabouqueiro. Nas horas de retórica alcoolizada, dava-se a conhecer à plateia como sendo o único cabouqueiro possuidor da “Ciência da Pedra”. Passando à frente da retórica, continuemos a identificação dos atores principais; A quinta do Caracol Velho (que fumou cachimbo até morrer muito Velho) era quando se desce a Rua Humberto Delgado, a seguir à Quinta do Azevino do mesmo lado. Pois o Bernardino, genro do Caracol Velho, era homem de músculos, designação incluída no pacote da já dita “Ciência”. Contava-se que, na taberna do Faial, hoje da Viúva Maria do António José e Filha Isabel, este homem, que se chamava Bernardino, levantava com os dentes, barris de vinho de 50 litros e sacas de farinha do mesmo peso. Este Bernardino, ainda me lembro (aqui já era também Coutinho) de o ver de picareta nas unhas (mãos) a abrir valas para a colocação da água canalizada que vinha aí à pressa, pois já estava atrasada, mas, finalmente, a chegar à Abrunheira… Era um homem forte até que, a curvatura em peso do Tempo contado em anos de idade começou a ser grande. Também me lembro de ver este Coutinho que era Bernardino arrastar os pés pesados pelo Tempo que passou.

Quando ainda eram novos, lá por alturas de 1922/23, e como também queriam ser heróis, o Bernardino e o Francisco Borrego construíram como puderam, e com a ciência que a vivência lhes deu, um aeroplano que, para eles, representava o "Lusitânia". Levezinho, menos de um terço do tamanho real, para que fosse possível utilizar como rampa de lançamento um "zambujeiro" (parente pobre da oliveira) aqui por cima das "pateiras". (É preciso que se diga, para que não sirva de argumento palaciano, que o local pode muito bem não ter sido o indicado, mas, que fazer? Nenhum deles pela terra ainda anda de forma que me possam confirmar o sítio. Nesta conformidade fica dito e redito que, para os devidos efeitos, o sítio é mesmo este.) Claro que a rampa de lançamento não foi suficiente para que o Coutinho, ainda Bernardino, e o Francisco Borrego, conseguissem concretizar o seu sonho… voar como faziam os pombos, as rolas, os melros e pintassilgos, sim… porque o “Lusitânia”, ou qualquer outro aeroplano, eles nunca viram, daí acreditarem que bastava construírem uma coisa com asas para poderem levantar voo e irem até ao Brasil, que a vivência e muita imaginação lhes dizia que era já ali. Pois é, o trambolhão foi instantâneo, assim que fizeram peso no "hidroavião" em cima do zambujeiro, caíram com os quatro costados no chão e assim se acabou a viagem até ao Brasil. De plateia convidada e mirones metediços, não seriam muitos abrunhenses mas, ainda assim, mais que suficientes para acudirem às mazelas dos “aviadores” improvisados e propagarem a dececionante aterragem forçada pelos “ouvidores do reino”, dentro e fora de portas.

Mas se aqui acaba a história do voo até ao Brasil para o Bernardino que passa também a responder como Coutinho e para o Francisco Borrego que, a partir deste dia fica colado ao Sacadura, também aqui começa outra história. À conta deles, e porque o Salazar ainda não tinha descido à Capital, sem canga, sem pide nem censura, os vizinhos de Albarraque, Linhó, Mem Martins, Rio de Mouro, Ranholas e doutras terras ainda mais longe, em jeito de chacota, começaram a chamar-nos "Brasileiros" e à Abrunheira "Brasil".

Não é por acaso que o café na Av. Dos Combatentes, em frente ao Trilho, se chama "Brasil”. Exactamente…, por causa da história do Coutinho que era Bernardino e do Sacadura que era Borrego. Na época da inauguração do Café Brasil pelo "Manel do café", lá pelos meados da década de sessenta, ainda era normal nos arredores chamarem"Brasil" à Abrunheira e a nós, os de cá, "Brasileiros". Na ida de manhã ou no regresso à noite, nos andantes da alva como cal “Palhinha” ou da azul celestial “Boa Viagem”, era frequente dizer-se como destino de viagem, “Brasil” em vez de Abrunheira. Esta história de Abrunhenses e Brasileiros não ficava completa sem, a propósito do Café Brasil, dizer que o “Manel do Café” era genro do autêntico Saloio "Sabino", homem grande que fazia dois de mim, e que tinha tanto de grande como de bom. Usava barrete, aquele barrete preto à Saloio, e aquelas calças de cetim que apertavam até por cima da barriga com a devida saliência, e também aquelas camisas que hoje só costumamos ver nos trajes dos ranchos folclóricos.

Também não é por acaso que à rua que vai da esquina do Ti Alexandre pela direita, ficando as “pateiras” à esquerda, lhe foi dado o nome de Gago Coutinho. Tem a ver com a aventura do “Lusitânia” e, por isso, perto do local onde tudo aconteceu.

Em 1975, aquando da fundação da URCA, muito se conversou e muito barro à parede se atirou, sobre que emblema e símbolo devíamos adotar ou criar, para a nossa coletividade. Ainda a propósito da brasilidade da nossa Terra, o emblema criamos, e as cores que lhes juntamos foram, nem mais nem menos, as cores do Brasil – O amarelo e o verde!

A nossa Terra tem passado e os seus filhos tiveram, e têm que continuar a ter futuro. O Coutinho que era Bernardino e o Borrego que não era Sacadura estão na nossa memória e, ficarão, ligados à história da Abrunheira!

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, tendo sido alguns publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)
Silvestre Félix

2 comentários:

  1. Já conhecia esta grande aventura,pois como já disse,durante muitos anos ouvi muitas histórias da Abrunheira,mas sinceramente não me lembro de me contarem qual o porquê de lhe chamarem Brasil,todo o resto já me era familiar,no entanto está muito bem contada aliás como sempre.
    Venha a próxima,parabéns.

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  2. Já conhecia a historia como deves calcular...mas agora fica escrita e bem escrita....felizmente...
    Sempre a ler-te amigo....abraço

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