Na imaginação de puto, e porque naquele rádio a pilhas,
assim, todo bege, que ficava sempre, todo “aperaltadinho”, em cima do armário da
loiça na cozinha lá de casa, muitas vezes tocava fado e no meio deles, havia o
do Hilário, ou seja, “O Fado Hilário”. Por isso, achava que o Ti Hilário da
Natália, havia de saber cantar o fado.
Desse rádio a pilhas, ouvia-se, no Rádio Clube Português,
estação que o meu pai sintonizava por causa dum programa rural que começava às
seis da manhã, alguns clássicos como: O programa da manhã do Fialho Gouveia
onde passava muita música portuguesa, os parodiantes de Lisboa à hora do almoço
e, logo a seguir, o teatro radiofónico que podemos comparar às telenovelas de
hoje porque prendiam milhares de pessoas ao rádio aquela hora e, ao final do
dia, do Igrejas Caeiro, o Zequinha e a Lélé, nos Companheiros da Alegria e,
também, o Comboio das seis e meia.
Mas não! A música do Ti Hilário, era outra! Copinhos de dois,
tinto, ao balcão do Ti Álvaro, que eu bem via quando por lá lia o “Século”,
treinando para as leituras mais complicadas dos livros escolares.
Na altura, ainda não havia o “Plano Nacional de Leitura” nem
nada que se parecesse e as alternativas eram, o jornal do Ti Álvaro e os de
“quadradinhos” do Major Alvega, e outros heróis da aviação da primeira e
segunda guerra mundial, mas também dos cowboys e índios, que o meu irmão
comprava.
Então, é verdade, eu tinha a mania que o Ti Hilário era
fadista. Assim à distância, nem entendo bem porquê, se calhar só porque se
chamava Hilário. Será que o vi alguma vez cantarolar depois dalguma sequência
avantajada de copinhos de “dois-tinto”? Não sei, mas assobiar, isso ouvi!
Não me lembro, que o nome de outra mulher fosse dito e ouvido
tanta vez no Largo do Chafariz, como o da Ti Natália. Quando se queria falar do
Ti Hilário, era o Hilário da Natália, o filho Zé, era o Zé da Natália, o outro
filho João, João da Natália. Era uma mulher com um ascendente sobre os homens
lá de casa, como não havia igual. Era de tal maneira que, até eu, que a ouvia
gritar com eles, tinha um certo medo dela. Coitada! Não era má pessoa, mas
tinha que se impor, senão, estava desgraçada.
O Ti Hilário, era aquela figura. De fato-macaco ganga-azul,
pintalgado de estuque, cimento, cal ou outros produtos usados no último
biscate. Sempre educado, pouco falador e muito fumador, mas realmente não
cantava o fado, só assobiava.
Sentados no degrau do que naquela época era o armazém do Ti
Álvaro, eu e o Zé Augusto ou o Rui, tínhamos uma visão global do Largo do
Chafariz. Víamos quem entrava na mercearia e na taberna como o Ti Hilário, quem
passava para, ou do lado do “Frouxo” ou da menina Emília e, acima de tudo, quem
ia ao Chafariz buscar água ou dar água aos animais.
Era, como se fosse uma plateia e, daí, assistíssemos ao filme
do dia-a-dia dos abrunhenses. A voz ou as gargalhadas do Tavinho com as
travessuras do carneiro “Baltazar”, o bater do sacho do Ti Veríssimo no chão e
o andar muito rápido da Ti “Estrudinhas”, o “quá” esganiçado dos ganços e o
balir das ovelhas do meu Tio António. Também dava para observar a lida do Ti
João de Leião. Ora saía com o grande tratar vermelho ou com o seu Opel que acho
era Kadette. Ainda, até à curva, se descortinava o Ti João Peixeiro a chegar de
motorizada com o atrelado vazio, ou com alguma sobra, isso é que nós não
conseguíamos ver. Duma maneira ou doutra, à noite, lá ia ele até à lota de
Cascais para trazer produto fresquinho e, depois, dividir com a Ti Aurélia,
para, literalmente à porta de cada um dos abrunhenses, “vender-o-seu-peixe”.
Lembraduras que o vento ainda não levou…
Silvestre Brandão Félix
21 outubro de 2018
Foto: Chafariz da
Abrunheira (de: Zé Dionísio)