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terça-feira, 15 de março de 2011

NO LUSCO-FUSCO ABRUNHENSE

E a mim não me escapavam as notícias que saíam daquele rádio de plástico de cor bege que descansava na mesa da cozinha com a antena bem esticadinha para o teto. As sílabas mais difíceis eram soletradas devagar mas já conseguia ler bem o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro

(Pergunta o inteligente) Na taberna? Mas os putos….

Sim, eu sei… mas o Ti Álvaro deixava-me ler “O século” durante o dia.

Elas, as notícias, estavam lá, podiam não estar todas porque os homens do lápis azul cortavam muitas, principalmente as que falavam do “Estado Português da Índia” que já não era, porque o Nehru, uns dias antes do Natal, tinha expulsado os militares portugueses de Nagar-Aveli, Goa, Damão e Diu. Também riscavam e cortavam todos os telegramas e telexes sobre a Guerra que tinha começado em Angola e nunca deixavam escrever sobre os nossos tropas que iam em navios para lá. Mas eu lia as notícias da Guerra do Vietname que era com os Americanos e os homens do lápis azul não se importavam.

Oh Mãe… quando o Vitor for p’a tropa já não há guerra, pois não?

Ai Filho, Deus queira que não, ai… valha-me Deus, o que te havias de lembrar.

Oh Mãe, quando eu for p’a tropa já não há guerra em Angola pois não?

Oh Filho… falta muito tempo contado em anos para ires para a tropa.

Mãe, eu não gosto da tropa.

Filho, não digas isso, fala baixinho… «diz a minha Mãe olhando à volta muito aflita, porque naquela época salazarenta até as paredes tinham ouvidos.»

À hora da última ordenha…

(que digo assim só para que neste tempo se entenda, porque em todas as vacarias da Abrunheira se dizia “mungir” e “mungidela”)

…e da última refeição de manjedoura bem cheia de palha, feno e ração demolhada com “talinhos” de alfarroba, o meu destino ficava em caminho e no banco corrido da “sociedade” conseguia ver as imagens na caixinha da televisão que o Jorge Farpela ligava à mesma hora que o Ti Américo, a mulher Ausenda, ou o Zé da Natália, abriam o “posto do leite” no sítio onde, no tempo de agora, tem um café que se chama “O Combatente”. Todos se encaminhavam, durante uma hora de tempo contado, para o “posto do leite”, levando o precioso líquido para o “grémio”. No dia seguinte, muito cedo, os úberes das vacas lá voltavam a fazer pressão nas tetas apressando a mungidela da manhã.

(E dizia o inteligente) – Vaca, úbere, tetas… mas que raio de linguagem… daqui a cinquenta de tempo contado em anos, tudo isto tem outro significado. A Abrunheira é terra pacífica e os abrunhenses estão todos de bem com a nação (por enquanto. Digo eu que sou inteligente e não pio o que sei a ninguém) mas é bom não arriscar, deixando que a “mostarda” lhes chegue ao nariz.

Na “sociedade” via, e lia, os desenhos animados. As legendas passavam depressa e eu corria atrás sem me distrair: O “Perna-longa” o “Gato Félix” e o “Gato Silvestre”, o “Bip-Bip”, o “Speed-Gonzalez”, etc., eram alguns dos heróis.

No lusco-fusco abrunhense e os postes da luz já acesos. De baixo para cima em direção ao Chafariz, a luz do interior da taberna do Ti Álvaro era amarela. Sem som, como se de mimos falássemos, mexiam os braços com copos na mão. De dois ou de três, os copos eram sempre cheios de vinho e depressa se despejavam naquelas gargantas sedentas.

Oh Filho! Espreita só, não entres!

E eu espreitava e via e não ouvia!

Na Abrunheira, os copos de dois ou de três, envenenavam a alma. As passadas trôpegas avançavam num trilho irregular e, pela noite dentro, não traziam a boa-nova, o carinho, o bom trato.

Durante o dia, eu lia o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro e não havia notícia que me escapasse. Mesmo as que não estavam escritas ou haviam sido riscadas a lápis azul, eu, as conseguia adivinhar …, sem que o “inteligente” desse por isso…

Silvestre Félix