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sábado, 1 de outubro de 2011

SE O TEMPO DA LUA É DE NOITE…


Pela manhã deste tempo estava, tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se ofenderia se lhe perguntasse:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Quadro natural melhor, não me podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de quem olha, a muralha do Castelo dos Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:

Que ali estava a fazer a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.

Nestes dias revoltos não se encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso, tenhamos que transformar em “navegável” o “Rio das Sesmarias”.

Lá muito atrás, em tempo, mais ou menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias passavam, várias vezes, o Rio das Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem passada à frente do Chafariz:

Que faz ali a Lua a esta hora do dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.

Nem no sono profundo alguma vez sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era o Tavinho. Sempre bem-disposto, à porta da “casa das vacas”, apoiado com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo. Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna, lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o e com o Ti Hilário, o Coutinho que era Bernardino com a picareta ao ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra» ou o Ti Joaquim Cagachuva a caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.

Era preciso partir à descoberta…

Naquela época de descobrimento com o tempo a correr mais à frente sem saber ainda o que fazia a Lua naquele lugar e aquela hora do dia ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins e, mais tarde, na azul “Boa Viagem” para Sintra, lá ia para o horário do comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira, com todos os dias passados na Capital, aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.

Até descobri o que era marisco ou os bichinhos a que chamávamos “gambas”. Lá as via passar no “Califórnia” em bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram, porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo as mais económicas “gambas”, era só para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas, com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e me aconchegaram o estômago. 

De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas, lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese, mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e cassetete à cinta na Colónia, aproveitava as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria

porque é que a Lua se mantinha naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…     

Também descobri com o tempo a correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola Velha já não era e a Nova era um pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do tempo, acompanhando

a Lua que continua sem se explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…

Na Abrunheira havia sempre voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.  

A água corre pelo Rio das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas, quando as há, nunca dizem tudo. 

Se o tempo da Lua é de noite, o que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?

Silvestre Félix

30 de Setembro de 2011

sexta-feira, 15 de julho de 2011

MARISCADA

Que se estranhava tudo a que marisco se chamava e que não fosse tremoços, era verdade absoluta. O mais aproximado que o nosso aparelho auditivo admitia captar e o visual identificar, usando toda a capacidade “olhómetra”, era um bicharoco conhecido por “gamba” ou, admitiam outros, o berbigão e o mexilhão. Mesmo assim, nunca tínhamos contado as patas das “gambas” porque quando as víamos passar estavam sempre demasiado longe para que esse exercício fosse possível. O mexilhão, por tradição, não se safava pela Sexta-Feira-Santa nas rochas batidas pelas arribas da nossa costa que, mesmo não fosse, para o efeito era sempre Magoito. E agora, “diz o inteligente”: Que não, que estou a exagerar, porque nos idos últimos de sessenta e primeiro de setenta já se sabia o que eram “gambas” e outros primos pescados, todos os designados “marisco”. Pois bem, “o inteligente” até podia saber mas eu não, e pronto! Sendo pescado no mar muito me admirava que a Ti Aurélia nunca por cá trouxesse petisco tão elogiado. Lá em casa também nunca vi nem ouvi falar. Nos livros da escola, para além das sardinhas, atuns, carapaus e pargos mulatos, também me parece que não vi aqueles tidos como “marisco”.


Havia uma ou outra notícia sobre estes exóticos “nadadores” comestíveis, que nos chegavam através das histórias contadas pelos regressados heróis das guerras que pelas “Áfricas” continuavam porque em tempos o “botas” disse “depressa e em força para Angola” e, depois de ter caído da cadeira e do “corta-fitas” ter posto o “Professor” no seu lugar, continuar tudo na mesma. Diziam alguns que em Angola lhes passaram pela goela lagostas e lavagantes do tamanho duma Empala ou duma Pacaça o que, para nós, significava ficar na mesma porque os ditos como exemplo, se fossem animais, eram tão desconhecidos como os outros. Vinham outros de Moçambique que nos “emprenhavam” com iguarias em forma e nome de Caranguejos do tamanho das “gaivotas” do Tamariz e que, quando numa cervejaria ou restaurante pediam uma imperial, ainda primeiro que a bebida já lhes punham um prato de Camarões do tamanho de chicharros, à frente. Destes e doutros “filmes”, exemplares narradores era o “calhordas”, o “Pézinhos” e o Fernando e outros Abrunhenses reconhecidamente fiéis à tradição de passar boas histórias com muita “margem de progressão”, principalmente se tivessem, à posteriori, a colaboração do meu irmão.


Está bom de ver que bem instruídos e esclarecidos sobre “marisco”, estávamos todos. Ainda era o Ramos e haveria de ser o Cabaço que ainda não tinha descido à Abrunheira, que de sede servia para o nosso “clube do totobola”. O Caravaca-Pai, que gastava as vagas da Colónia tomando conta do café ao Ramos que na mercearia muito que fazer ia tendo, orientava e controlava os boletins semanais do totobola porque os “seus” consócios eram todos putos como o filho Filomeno Caravaca. É aqui, nesta parte, que me “salta-a-mola” com a qualidade deficiente do disco rígido instalado na minha “caixa-cinzenta”. Quantos faziam parte e quem eram eles? Alguns acertarei, outros inventarei ou omitirei mas, ainda assim, tenho a certeza que por parceiros tinha o Rui Simplício e o Filomeno Caravaca. Havia também, para além do Caravaca-Pai, um colega dele da Colónia e, quase que posso jurar (?), o Zé Fernando e talvez o Mário e se calhar também o Zé Costa. Será que eram tantos ou, pelo contrário, ainda falta algum?


O grande objetivo era juntarmos dinheiro para comermos uma “mariscada”. O sítio foi sendo aventado e, quando a meio do mealheiro íamos, lá nos decidimos em definitivo pelas bandas do “Onde o mar é mais azul”, a Ericeira. Quando o campeonato chegou ao fim, as moedas acumuladas eram tantas, que mais pareciam um prémio de totobola. Lá fomos, pelo menos uma parte, no “carocha” do colega do Caravaca-Pai na Colónia até à Ericeira conhecer e degustar o tão falado “marisco”. Lembro-me de ter ficado impressionado com umas “pinças-longas” que me disseram depois serem lagostas, num tanque logo à entrada do restaurante.


Marcante ficou a “mariscada”. Ainda durante muito tempo nos lembramos de quanto bem nos soube aquela comida com sabor a mar. Ainda nem mancebos éramos e já tínhamos comido marisco a sério. A outra grande vantagem foi termos ficado em condições de participar com conhecimento de causa, em todas as conversas que abordassem marisco. Um feito com elevação na nossa formação de putos espertos que, de agora em diante, viesse quem viesse, barretes sobre marisco, não nos enfiavam mais.


Naqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta, o desconhecimento e ingenuidade eram certezas e o assunto do dia ou da semana ainda podia ser – o que é, o marisco? Os putos da Abrunheira não eram menos sabedores que os outros, os interesses é que eram limitados ao tempo e ao terreno. Era época que nem isqueiro ou acendedor se podia usar, só com licença passada pelo Governo Civil com visa da PIDE. As mudanças também aconteceram na Abrunheira e, como em todo o mundo, tudo está ao alcance dum clique num teclado ou dum simples toque num ecrã reduzido. A curiosidade e o interesse no saber são como o ar que se respira – são, e no minuto seguinte, deixam de ser porque as bandas larguíssimas têm mais velocidade.


Num dia daqueles idos dos últimos de sessenta e primeiro de setenta ficamos a saber o que era marisco!


A movimentação descrita nesta página que, quando se completar outro tanto do tempo contado em anos desde o histórico acontecimento – A MARISCADA – já constará nos documentos classificados de alto interesse gastronómico do finado império europeu e, até o nome dos sítios e dos participantes, terão tradução automática com uma simples aplicação ocular, porque os chineses nunca se adaptaram a outras escritas e leituras que não fosse o seu milenar mandarim.


(Baseado em factos reais mas muito ficcionado)


Silvestre Félix
15 de Julho de 2011