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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PEIXE FRESCO, A TI AURÉLIA E O MANEL DA COLÓNIA

O Manel da Colónia, embora não o dissesse a ninguém, nem a mim, não “podia levar à paciência”, ter de levar com o cheiro de peixe, todos os dias, até ao fim da sua vida. Ainda escuro, só com o lampejo da madrugada, já a Ti Aurélia e a filha Lucinda ou Lucília, separavam o peixe trazido pelo Ti João “pexeiro”, da lota de Cascais.

Todo o santo dia, tinha que levar com aquela cena. Era de tal maneira que, pelo cheirinho, já sabia o que a Aurélia e a Lucinda ou Lucília, iam vender naquele dia.

Não tínhamos nenhuma pena dele. Que levasse com o cheiro do peixe e de todos os piores cheiros do mundo que não nos importávamos com isso. Mais cheiro, menos cheiro, a vida continuava.

Os putos como eu, não “iam à bola” com o Manel da Colónia. Não “iam à bola”, nem lhe davam a bola, porque senão…

Ali, na ponta de cima do Largo do Chafariz, longe dos gansos do Ti Veríssimo — pertinho do Ti Miguel, da nova taberna da Menina Emília, da Deolinda e do João Tirapicos, do meu Tio António e da minha Tia Espírito Santo, do Chico e da Maria Augusta, da Gina e do Zé Eduardo que comigo alinhavam, do Zé da Natália e da Natália e, claro, do Manel da Colónia — os putos, às vezes, juntavam-se a dar uns toques na bola. O homem “tinha um pó” aquela coisa redonda, que só visto. Se, na altura em que ele ia a passar, a bola estivesse ao seu alcance, ou, “por mal dos nossos pecados”, a bola fosse parar ao quintal dele, era “certo e sabido” que, inteira (a bola), nunca mais ficava. Sacava da navalha e, zás! Era uma vez, uma bola.

Indiferentes às bolas e às contrariedades dos cheiros, a peixe ou outros, a Ti Aurélia e a Lucinda ou Lucínia, (a estratégia do “ou”, vai no sentido de desculpabilizar a falta de rigor desta memória para nomes, que, em culpa direta da PDI, digo eu, está cada vez mais abandalhada) lá vão percorrendo o lugar acima e abaixo, vendendo um chicharro aqui à Maria Augusta, umas fanecas ali à Ti Estrudinhas, umas sardinhas acolá à mulher do eletricista, umas pescadinhas de rabo na boca à Ti Augusta, uns carapaus à Ti Ermelinda, e, por aí iam as duas, apregoando baixinho, que não eram mulheres de gritaria: “Olhó vivinho da costa!” E era! Pescado na nossa costa, sempre, em pouco mais de doze horas.

Como as coisas são diferentes. Hoje, se quisermos comprar peixe, será com dois, três ou mais dias desde que foi pescado, sendo português, porque se for importado, ainda pode ser mais tempo.

Há uns tempos, em troca dum “saco de lentilhas”, foram-se: a pesca, a agricultura e alguma industria média-pesada e, agora, para além de consumirmos piores produtos, temos que levar com os que nos mandaram as “lentilhas”.

Silvestre Brandão Félix
13 novembro de 2017
Foto: Peixeira (Google)
Nota: Embora baseado em factos e pessoas reais, o texto que aqui reproduzo, é ficcionado.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

VERÃO NO FIM, COMEÇO DAS AULAS E PANFLETOS DA CAMPANHA ELEITORAL

Mais de trinta graus a caminho dos quarenta, é muito para um abrunhense ou abrunheirense, como outros afirmam ser correto dizer-se. Bom, duma maneira ou doutra, trinta e tal graus não deixa de ser calor e, ainda mais, se o nosso providencial ventinho estiver de folga. Dirão alguns; é verão, por isso natural que estejam trinta e tal graus. Pois, é verdade, digo eu. Mas então, como explicamos a um neto ou uma neta, que tem de ir para a escola durante o verão, que, em boa verdade, está associado (o verão) a férias, praia, preguiça, forrobodó, etc.?

Eu, quando pela “Quinta do Olival” passava, tomando a esquerda e, mais acima, depois da curva, virava à direita junto à taberna do (depois do Faial) Ramos e enfiava pela azinhaga da pia até um pouquinho antes da entrada para a Escola, nunca o fazia antes de 7 de outubro. É verdade, naquele tempo do “botas”, as escolas começavam todas nesse dia, desde que não fosse sábado ou domingo.

Pela Abrunheira, mesmo com ventania, o mês de setembro era de férias e o pessoal do Casal dos Icos não dava tréguas à brincadeira. Bem comandados pela Luizinha, o bando brincava, rezingava, pedalava e descansava até final do mês. 

Porque assim era, o nosso saudoso Júlio Silva, só levantava a tenda de campismo da Lagoa de Albufeira, no feriado (que uns inteligentes há pouco tempo quiseram eliminar) do 5 de outubro. Nesse dia, fazia-se o último banho salgado da época e era cozinhado o último almoço na praia, pela nossa querida Laura. Dois dias depois, os rapazes e raparigas começavam a Escola.

Ainda escrevendo sobre altas temperaturas e fortes ventanias, uns quantos contados em anos mais tarde, quando por outros mundos andava, duas principais coisas, para além da família, me faziam sempre falta: Não ter à vista a torre do Palácio da Pena e, se o destino fosse África da Lusofonia, o ventinho que pela Abrunheira passa a maior parte dos dias do ano. É claro que gostaria de ter comigo outras “serventias”, mas, estas duas, eram as mais importantes.

Voltando outra vez para trás e ao uso das fontes, chafarizes e “saudosas” águas correntes do Rio das Sesmarias todo o ano, não resisto à tentação de puxar pela imaginária de cordel e ao vício incontornável de falar de abrunhenses ou abrunheirenses que, também, muitas vezes passaram pelo Largo do Chafariz, sentindo o vento e, claro está, o saudável odor, resultado das necessidades fisiológicas que, todos os animais, enquanto matavam a seda, ali deixavam.   

Então, ainda de calor e vento escrevendo, de certeza, que as mesmas queixas tiveram, não poucas vezes, o Coutinho que era Bernardino e tinha a “Ciência-da-Pedra”, e o Sacadura que era Francisco Borrego e não se lhe conhecia ciência nenhuma, que, fiando-se no ventinho da nossa “Terra”, daquela vez lhes faltou e a tornaram Brasil do Atlântico Norte – assim como se fosse um regresso às origens como conta o Laurentino Gomes no 1822 – numa aventura que, em vez de aeronáutica, se tornou acrobática, quando foram os dois parar com os quatro costados ao chão.  

Vestígio da nossa brasilidade, o Café Brasil, lá em cima, na avenida dos combatentes. Pois então, a única razão porque o Manel batizou assim o café, foi a dita aventura, sonhada pelos abrunhenses ou abrunheirenses, Coutinho que era Bernardino e Sacadura que era Francisco Borrego, que assim se tornaram padrinhos da alcunha de “Brasil” que a nossa Terra tomou, até aos da minha geração. Daí para cá, foi-se perdendo o sentido da alcunha e, hoje, rapaz ou rapariga que, nestes primeiros dias deste mês, já será “despejada(o)” na grande escola, saberá, sim, onde é o Brasil das telenovelas, mas desconhece onde é o outro “Brasil” deste lado do Atlântico.    
   
O Bernardino que não era Coutinho, porque o trabalho na pedreira do Ti Miguel, para além da “Ciência” que aplicava em cada operação de quebradura bem medida, tinha de ter a força física requerida para que o resultado fosse o pretendido e, as temperaturas altas, não eram nada amigas desta arte da pedra, levada, muito a sério, pelo genro do Caracol Velho.

Nem a Judite Caracol, sua mulher, se dava bem com o calor. Pois é, ela, mulher de muitos quereres e saberes, quando a temperatura ia alta, logo adivinhava que tarefa extra ia ter nesse dia. Lá mais para a tardinha, espreitar pelo Faial ou Ramos, pelo Álvaro e Menina Emília, até encontrar o Coutinho que era Bernardino e lavá-lo para casa já com muitos “gãos-na-asa”, ou seja, muitas ciganas e charretes metidas no bucho.   

O Francisco Borrego que não era Sacadura, também não se embeiçava com o calor e com a falta de vento. Se assim fosse, não teria dito: “empurra agora que faz vento”. E, como todos já sabemos, embora eles tivessem atirado as culpas para a falta de vento, não foi por isso que foram direitinhos ao chão.

O reclamante abrunhense ou abrunheirense, para o caso tanto faz, que, no que toca ao calor o faz pelo excesso e no extremo, já, no que ao frio diz respeito, a coisa vai pelo contrário. Não há frio que “chegue-aos-calcanhares” dos dias em que, de manhã, encontrávamos as covas do jogo do bilas, cheias de gelo. E também, a caminho da Escola, junto à “Vivenda Juveniana”, onde ainda está o sítio, mas de azulejos nada, a nascente que ali corria, ficava coberta de gelo. A gente quebrava-o e, dali a bocado, já estava outra vez na mesma.

O companheiro Rio das Sesmarias deixava que, nos cantinhos, junto às margens, a sua água gelasse um bocadinho e, passando, com sua licença, para a outra margem junto à horta do Manel da Colónia e à casa do Ti Joaquim, as pedreiras do Ti Miguel, lá mais acima, laboratório da “Ciência-da-Pedra” do Coutinho que era Bernardino, no inverno formava pequenas lagoas cobertas de gelo. Havia anos em que o Zé Augusto, atreito à aventura, conseguia andar por cima do gelo sem que se partisse.

Relendo a prosa que já vai longa e, quando digo, «altas temperaturas e forte ventania», alguns dos meus amigos, com certeza, pensarão que de campanha eleitoral, irei falar.

Não! Estejam descansados que a minha disposição, neste particular, é igual à dos candidatos. Tudo calmo e sem se falar de nada. Completamente ignorados e esquecidos. Curiosamente, nem promessas há. Claro, estou a referir-me à nossa Terra, quanto muito, à antiga (que espero ainda seja recuperada) freguesia de São Pedro de Penaferrim. 

Silvestre Félix


Abrunheira, 6 de setembro de 2017 

Fotos: (Google)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

ARTES E OFÍCIOS

Naquela época, a profissão – substantivo quase desconhecido ao tempo usando-se na fala a designação de arte ou ofício – servia de “apelido” ao chefe de família e, por sua vez, aos filhos e enteados. Era assim que os Abrunhenses se referiam entre si, sendo hábito tão entranhado que, muitas vezes, os descendentes assumiam outros ofícios tão ou mais dignos e destacadas que os dos progenitores mas nem por isso mudavam de alcunha. Só era lícito acontecer um novo apelido condizente com a nova arte quando, por abençoado casamento, fosse constituída nova família com morada fora da Abrunheira.


Também havia outras formas de identificar os Abrunhenses com nomes mais comuns, acrescentando-lhe o nome da Mãe, do Pai, da mulher ou do marido, por exemplo: “Zé ou João da Natália” (sendo Natália Mãe) e “Ti Maria do Florindo” (sendo Florindo marido). Ainda um outro acrescento ao nome para lhe dar diferença de outros, por exemplo: Silvestre “Velho” (sendo o mais velho, Pai ou Avô).


Desde esse tempo passado e contado em anos, lembro-me de um “Zé”, “Manel”, “Chico”, António ou mais uma dúzia de nomes, seguido de: Sapateiro, Padeiro, Serralheiro, Carpinteiro, Pedreiro, Calceteiro, electricista, leiteiro, peixeiro, etc, etc.


Muito quero contrariar esta tendência de acrescentar ao já muito comprido mas, palavras são como as cerejas que eu lhas gosto, e, por isso, nunca consigo deixar de teclar no ponto previsto, largando-me à vontade dos dedos que não param de andarilhar dum lado para o outro. Na Abrunheira nasci, cresci e fiquei homem, sem nunca ter cumprido em mínimo, as introduções ou os prefácios. Assim sendo, vamos lá às lembranças que se faz tarde e porque o leitor baralhado fica, se não lhe disser rapidamente sobre que Abrunhense hoje prosarei.


Vamos lá. Muito ligado a este costume de chamar pela forma de labuta, levada todos os dias, porque ainda hoje é difícil arranjar outras maneiras honestas de trazer dinheiro suficiente para pôr comidinha na mesa, está também o abreviado do “apelido”, no caso quero destacar como se chamava “peixeira (o)”. Assim, a primeira sílaba ficava só com “pi” e o “i” muito sumido, em vez de “pei”, logo, em vez de “Peixeira” seria “Pixeira” e quase “P’xeira”.


Vem isto a propósito, não do novo acordo ortográfico, mas da nossa querida Ti Aurélia “P’xeira”. Com morada no primeiro andar da mesma casa onde vivia o Manel da Colónia, entrando pelas escadas exteriores nas traseiras. Daí saía, todos os dias de peixe fresco, sempre com a sua Filha Lucinda ou Lucília na fralda do seu avental, empurrando o carrinho de madeira e rodas de bicicleta e travessão, caminhando pelas poucas ruas da Abrunheira daquele tempo, vendendo os seus chicharros, pescadinhas de rabo na boca, J’aquinzinhos, sardinha, chocos, fanecas, cachuchos e outros sempre fresquinhos que todas as noites viajavam da Lota de Cascais trazidos pelo Ti João Pinto, para nós Ti João “P’xeiro” e seus Filhos João, Eurico ou Jaime.


A Ti Aurélia P’xeira, que só de boa gente falo eu, era uma jóia de pessoa como dizia a minha Mãe. Era das pessoas que a minha Mãe gostava muito. Desde essa juventude na idade que lá ficou, que tinha muita simpatia por esta Ti Aurélia que todos conheciam por “P’xeira”.


O Ti João, tinha aqui na Abrunheira a sua morada e entreposto, mas vendia em Mem Martins. Todos os dias, com o seu inseparável cigarro e bigodinho à maneira, lá ia na motoreta e atrelado com o seu peixinho fresco para Mem Martins.


Nestes dias de “marca-crise” económica, financeira e também de valores, não podemos comer peixe fresco da Lota de Cascais porque, como outras coisas, acabou. Há 20 ou 25 anos atrás, tivemos políticos que acharam ser melhor para nós, e também para os Abrunhenses, receber dinheiro da antiga CEE para deixar de cultivar, de pescar, de transformar metais, de fazer comboios, de reparar grandes petroleiros, de construir navios, bacalhoeiros e barcos de pesca, etc., etc..


Pois bem, há 25 anos, o peixe que a Ti Aurélia P’xeira vendia na Abrunheira, era pescado por pescadores portugueses com barcos construídos nos nossos estaleiros e revendido na Lota de Cascais todos os dias normais de trabalho. O peixe era fresco e de boa qualidade. Em todos os portos de pesca era assim. Hoje, o peixe consumido na nossa Abrunheira e em todas as outras Terras pelo País fora, é quase todo importado do estrangeiro, pesa muito no deficit da balança de pagamentos é menos fresco e, muitas vezes de qualidade duvidosa.


Já há alguns modernos dicionários onde não consta o substantivo “peixeira (o)”.


Dos Abrunhenses se fez e faz a nossa história. A Ti Aurélia P’xeira lá tem o seu lugar de destaque.


Silvestre Félix
27 de Abril de 2011


(Extraído dos textos "Abrunheira, Terra com História" de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue "Aldeia Viva" durante 2007 e 2008.)

(Correção e atualização do autor em 2011)