O Manel da Colónia, embora não o dissesse a ninguém, nem a
mim, não “podia levar à paciência”,
ter de levar com o cheiro de peixe, todos os dias, até ao fim da sua vida.
Ainda escuro, só com o lampejo da madrugada, já a Ti Aurélia e a filha Lucinda
ou Lucília, separavam o peixe trazido pelo Ti João “pexeiro”, da lota de Cascais.
Todo o santo dia, tinha que levar com aquela cena. Era de tal
maneira que, pelo cheirinho, já sabia o que a Aurélia e a Lucinda ou Lucília,
iam vender naquele dia.
Não tínhamos nenhuma pena dele. Que levasse com o cheiro do
peixe e de todos os piores cheiros do mundo que não nos importávamos com isso.
Mais cheiro, menos cheiro, a vida continuava.
Os putos como eu, não “iam
à bola” com o Manel da Colónia. Não “iam à bola”, nem lhe davam a bola,
porque senão…
Ali, na ponta de cima do Largo do Chafariz, longe dos gansos
do Ti Veríssimo — pertinho do Ti Miguel, da
nova taberna da Menina Emília, da Deolinda e do João Tirapicos, do meu Tio António
e da minha Tia Espírito Santo, do Chico e da Maria Augusta, da Gina e do Zé
Eduardo que comigo alinhavam, do Zé da Natália e da Natália e, claro, do Manel da
Colónia — os putos, às vezes, juntavam-se a dar uns toques na bola. O homem
“tinha um pó” aquela coisa redonda,
que só visto. Se, na altura em que ele ia a passar, a bola estivesse ao seu
alcance, ou, “por mal dos nossos
pecados”, a bola fosse parar ao quintal dele, era “certo e sabido” que, inteira (a
bola), nunca mais ficava. Sacava da navalha e, zás! Era uma vez, uma bola.
Indiferentes às bolas e às contrariedades dos cheiros, a
peixe ou outros, a Ti Aurélia e a Lucinda ou Lucínia, (a estratégia do “ou”, vai no sentido de desculpabilizar a falta de
rigor desta memória para nomes, que, em culpa direta da PDI, digo eu, está cada
vez mais abandalhada) lá vão percorrendo o lugar acima e abaixo, vendendo
um chicharro aqui à Maria Augusta, umas fanecas ali à Ti Estrudinhas, umas
sardinhas acolá à mulher do eletricista, umas pescadinhas de rabo na boca à Ti
Augusta, uns carapaus à Ti Ermelinda, e, por aí iam as duas, apregoando
baixinho, que não eram mulheres de gritaria: “Olhó vivinho da costa!” E era! Pescado na nossa costa, sempre, em
pouco mais de doze horas.
Como as coisas são diferentes. Hoje, se quisermos comprar
peixe, será com dois, três ou mais dias desde que foi pescado, sendo português,
porque se for importado, ainda pode ser mais tempo.
Há uns tempos, em troca dum “saco de lentilhas”, foram-se: a pesca, a agricultura e alguma
industria média-pesada e, agora, para além de consumirmos piores produtos,
temos que levar com os que nos mandaram as “lentilhas”.
Silvestre Brandão Félix
13 novembro de 2017
Foto: Peixeira (Google)
Nota: Embora baseado em factos e pessoas reais, o texto que aqui reproduzo, é ficcionado.
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