“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino
estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o
conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava
tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.
Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de
escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam,
o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era
“Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.
Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha
na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a
mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha
metido na sacola, antes de sair de casa.
Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de
sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal
de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.
Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do
Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou
para a direita?
— Que raio… onde é que
eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)
— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda
ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga.
É só, se vou para um lado ou para o outro!
Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja,
para o lado direito.
Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as
ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha
acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a
consciência estava-lhe pesadona.
Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e
com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que
devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento
completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu
logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de
vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.
Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e
filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para
compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.
Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR
porque brincadeiras destas não se faziam.
E o das “Sesmarias” perguntava:
— Mas qual GNR? Não há
aqui nada disso!
— Há, sim senhor! Eu
posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque
não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR
na Abrunheira. (dizia
o Coutinho que era Bernardino)
Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que
estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira
do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.
Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já
de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a
muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.
Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali
a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas
vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou
à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.
Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se
e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.
«Um GNR e uma GNR, saíam
do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o
tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito
estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da
GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira,
debaixo do braço.
Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”,
continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era
Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro,
tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das
ferramentas, que estava no sítio do costume.»
O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um
sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.
Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira
coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no
sítio onde, no sonho, elas ficaram.
Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo
(retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na
Abrunheira-2001.
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