Depois da Estação de Queluz, as janelas começavam a ser
fechadas. O ar entrava fresquinho e sentia-se que, lá fora, o vento soprava. A
temperatura e o cheiro de Lisboa, iam ficando para trás. O reboliço do Rossio,
do Cais do Sodré, da Duque da Terceira, rua do Arsenal e do Alecrim, ficavam
para o dia seguinte.
Fui-me “construindo” nesta dualidade de vivências. A
ruralidade da Abrunheira e a urbanidade da grande Capital. Sempre gostei das
duas.
Sabia-me bem participar nas movimentações de muitas pessoas;
o comboio na hora-de-ponta, a Estação do Rossio, os passeios cheios e a
necessidade de me desviar das que vinham de frente, sempre assim, subindo até
ao Largo do Carmo, onde, em abril, o Capitão Salgueiro Maia pôs o antigo regime
de joelhos, pela Trindade e Chiado e descendo até ao fundo da rua do Alecrim. O
trabalho durante o dia, o convívio com os colegas e, ao fim da tarde, o
regresso ao sossego de Sintra e da Abrunheira.
Das mangas-curtas pelo calor da beira Tejo, passava a manga
cumprida ou mais uma peça de roupa para compensar o fresco da chegada a Sintra.
Na Abrunheira, pelo Largo Chafariz e pela rua principal, ainda se pisavam
muitas caganitas de ovelha e, não poucas vezes, era requerida habilidade, para
ziguezaguear por entre “bostas” de vaca. Na Abrunheira, pelo Largo do Chafariz,
pelo Santo António ou por outros caminhos, ainda se cheiravam “perfumes” do
campo.
Nos terrenos à volta, para lá da ponte e até à colónia e aos
celões, ou a seguir ao Ti Alexandre nas pateiras, ou para o caracol até à arroteia
e aos quatro-donos, ou para lá do forno nas maçarocas, ainda vi ondulantes
searas de cereais. Na altura do crescimento do trigo, cevada ou aveia, e com
olhar abrangente, o vermelho das papoilas, o lilás dos lírios, o amarelo dos
malmequeres e os azuis das alcachofras, completavam a beleza da nossa
ruralidade. Eu não sabia que gostava tanto disto, mais ainda, quando as
cigarras e os grilos não paravam de cantar.
E depois, beber a bica no Manel num copinho de vidro e,
quando os mais velhos deixavam, uma partidinha de damas. Havia autênticos
campeões. Lembro-me por exemplo, do Batista, do Caracinha, do Chico Chamiço ou
do Durães e mais outros, que não me lembro os nomes. Da nossa classe, o campeão
era o Rui.
Mais tarde, passamos a ir bebê-la ao Ramos/Cabaço e as
jogatanas de matrecos e de kingue. Muitas horas de paleio. As conversas eram
sérias. Até os namoricos eram sérios. Alguns vingaram, outros nem tanto. Tudo
isto me confortava no regresso. Lembro-me de todos e todas, de cada um e de
cada uma.
Algumas horas de cama e a Ti Augusta não me dava folga. Uma
tigela de sopas de café (cevada) com leite e toca a andar, que se faz tarde.
De volta à Capital e, nas olhadelas pela
“janela-do-terceiro-andar”, conseguia ver tudo. Já algumas vezes disse que, por
lá, via o mundo. É uma maneira de lhe atribuir grandeza, por tantas imaginadas
imagens, que me chegavam.
“Daquela-janela”, ainda vi fragatas e faluas no Tejo,
provavelmente a pouco tempo de, definitivamente, desaparecerem, mas também vi
muitos petroleiros ancorados no mar da palha, esperando pela vez de entrarem
nas docas da “Lisnave”. Vi muitos “cacilheiros” trazendo e levando pessoas,
entre as duas margens. Vi muitos “amarelos” subindo e descendo a rua do alecrim
e outros “verdes” que já muito poluíam o ar, como o 8, o 44 ou o 45.
Lá, “da-janela”, via pessoas boas e más, homens e mulheres,
adultos e crianças. Olhando mais para baixo, ligeiramente à direita, conseguia
ver quem entrava e saía do “Bragança”, utilizando as escadinhas e a mesma porta
do “Eça”, aquele, que era “Queiróz”. Ainda, mais por debaixo, via a “velha”
Nova do Carvalho dos bares que, no tempo de agora, virou moderna, a abarrotar
de gente bem-bebida e “cor-de-rosa”.
“Da-janela-do-terceiro-andar”, via, ao longe, muito longe,
navegando pelo “Atlântico”, centenas de compatriotas a caminho da guerra. Na
Rocha Conde de Óbidos, tinham-se despedido das mães, dos pais, das namoradas e,
por aí fora, pelo mar, compunham expectativas bem incutidas nas cerebrais,
pelos especialistas da matéria, em sessões contínuas.
No sossego da Abrunheira e do alto da nossa varanda, com o
sol já atrás da Serra escondido, conseguimos um recorte único. Muitas vezes
tive saudades desta visão. Este lado da Serra era e é, lindo e acolhedor.
Silvestre Brandão Félix
21 novembro de 2017
Foto: Minha-2010 Recorte da Serra de Sintra tirada da Abrunheira
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