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terça-feira, 28 de novembro de 2017

DESTE LADO DA SERRA, A INSEGURANÇA E OS SONHOS DO CABOUQUEIRO

“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.

Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam, o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era “Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.

Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha metido na sacola, antes de sair de casa.

Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.

Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou para a direita?

— Que raio… onde é que eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)

— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga. É só, se vou para um lado ou para o outro!

Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja, para o lado direito.

Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a consciência estava-lhe pesadona.

Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.

Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.

Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR porque brincadeiras destas não se faziam.

E o das “Sesmarias” perguntava:

— Mas qual GNR? Não há aqui nada disso!

— Há, sim senhor! Eu posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR na Abrunheira. (dizia o Coutinho que era Bernardino)

Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.

Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.

Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.

Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.

«Um GNR e uma GNR, saíam do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira, debaixo do braço.

Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”, continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro, tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das ferramentas, que estava no sítio do costume.»

O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.

Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no sítio onde, no sonho, elas ficaram.

Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo (retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na Abrunheira-2001.