Mobilidade (urbana), era, na certa, palavrão ausente do
vocabulário dos abrunhenses de há quarenta ou cinquenta em tempo contado em
anos.
Ainda por cima, se fosse reduzida, como é detetável e provada
nestes dias do último quartel da segunda década do século XXI, depois do
atrofiamento “troikadero” e no meio da pressão sobre a “geringonça”.
Tem dias, em que um abrunhense, para conseguir chegar ao
Palácio da Vila, à Volta do Duche ou, ao ainda, Centro de Saúde, precisa de
“suar as estopinhas”. Se levado por qualquer andante de quatro rodas, pode
correr o risco de chegar a Chão de Meninos ou pouco mais abaixo, e alinhar na
“bicha” até lá abaixo.
Se este abrunhense, pela zona alguma vez cirandou usando os
pedantes em tempos de menos fartura, sabe que pode meter pela esquerda em pelo
menos duas alternativas (não tem nada a ver com a atual maioria na AR) e ser
brindado com uma das melhores vistas da Serra, o Jardim da Vigia, e deixar-se
escorregar até ao “Morais”, Tuna e Estação. Se não, pode demorar meia-hora, uma
hora ou mais e, lá chegado, estacionamento? Nem o cheiro, quanto mais o lugar.
Como tantas vezes já me dizia o Ti Joaquim “Caga-à-Chuva”,
queixando-se da utilização da carreira “Boa-Viagem” que vinha de Oeiras e
parava lá em cima a seguir ao “Café Brasil”, demorando dez minutos até à
Estação de Sintra, passando por Chão de Meninos. Que continuava a preferir ir a
pé até à “ajuntadeira”. Naquela época, não entendia a lógica. A carreira era
muito depressa para a sua noção de tempo.
Como gostariam os utilizadores das carreiras de hoje, poderem
demorar dez minutos, em percurso direto até à Estação de Sintra, por Chão de
Meninos e a preço aceitável.
O normal, nesses idos tempos do “Artista Sapateiro”, de antes
e depois da revolução, era a velocidade que a “Carocha” dava à carroça e a
disposição que tinha, naquele preciso momento, para obedecer aos “mandamentos”
da Ti Augusta. Atrelada que estava e decerto manifestando o seu desagrado pelo
peso e desconforto dos arreios, cabresto enfiado pela cabeça abaixo e o freio
na boca, assim que se lhe soltou as guias, aí foi ela “desencabrestada” e só
parou quando muito bem entendeu. Saiu do quintal e difícil foi virá-la à direita
e, assim que se apanhou no alcatrão, correu pela Largo do Chafariz com o
Tavinho dum lado e o Ti Álvaro do outro a assistirem à corrida e, pelo Olival,
que ela conhecia bem, rolou até à curva. Aí, a Ti Augusta, com muita
dificuldade, lá a encaminhou pela esquerda em direção à Quinta Lavi e aos
eucaliptos.
E então, a sorte passou-lhe à frente (da Carocha) e, a nós
também, porque cambaleados na carroça, de vento na cara e cabelos voando, não
teríamos tempo para nada, se, passados os eucaliptos e chegados ao cruzamento
da Charneca, o mercedes 280 que vinha do lado de Lisboa, não tivesse travasse a
fundo, dando primazia à que chamávamos burra, mas que de burrice não tinha
nada.
Ela sabia que o caminho era à esquerda, mesmo que nunca
tivesse demonstrado qualquer simpatia por essa opção ideológica e, quando se
aproximou do Chafariz da Charneca (D. Maria I), saiu do alcatrão e estancou em
frente ao bebedouro, metendo umas litradas para dentro do bandulho.
A Ti Augusta, que até ali nem tinha tido tempo para respirar,
desce da carroça e, dirigindo-se à orelha direita da Carocha, agarrando-a e,
como se estivesse a falar para dentro dum grande funil, disse-lhe, num tom bem
repreendedor, daquelas boas, que ninguém gosta de ouvir.
Eu, muito quietinho, não estava a perceber nada. Então, a minha
mãe subiu, agarrou as guias, destravou a carroça, puxou a guia esquerda fazendo
a Carocha recuar o veículo um metro ou pouco mais e, com um ar triunfante como
muitas vezes lhe via, atiçou a Carocha encaminhando-a para a estrada e aí fomos
nós em trote controlado, até virarmos em Ranholas, à direita, para Vale-Porcas
que ainda não era Vale Flores.
Também me lembro bem, que a viagem de regresso, carregada de
erva acabada de apanhar para as vaquinhas, correu uma maravilha e, a D.
Carocha, nada de aventuras. As grandes orelhas oscilavam conforme a voz da
minha mãe se fazia ouvir. Quando chegamos, e depois de a desatrelarmos da
carroça e de a libertarmos dos arreios, cabresto, freio e demais acessórios
“prisioneiros”, a Ti Augusta teve uma longa conversa com a Carocha, deu-lhe a
guloseima preferida, fez-lhe a doze certa de festinhas e, acredito eu, igual, a
burra que “era esperta que nem um alho”, nunca mais voltou a fazer.
A minha mãe foi apanhada desprevenida e teve muito medo no
cruzamento. Contou-me depois, que chegou a pensar que o carro viria contra nós
e que, incluindo a Carocha, ia tudo p’ro “maneta”. A Ti Augusta conversava com
os seus animais. E, duma forma geral, porque os tratava bem, conseguia que lhe
obedecessem. Foi o que aconteceu ali, junto ao Chafariz da Charneca.
A propósito de Charneca, ali, naquele sítio, em menos dum
quilómetro quadrado, foram, do ponto de vista da toponímia, ignoradas
designações originais dos locais e pessoas: Charneca, Chancuda, Casal da
Charneca, Ti Zé da Charneca ou Chafariz da Charneca. Não tenho nada contra as
personalidades usadas para as vias e rotundas da zona, sendo que, algumas, se
calhar, até mereciam ruas, rotundas ou avenidas mais importantes. Condenável é,
na minha opinião, não serem levadas em conta, para este efeito, a tradição, os
nomes dos sítios e pessoas, quando é necessário colocar uma placa toponímica.
Pois é, da “mobilidade-urbana-reduzida”, fiz jus à expressão
e, entusiasmado com a lembrança daquela viagem até Vale-Porcas com a minha mãe
e encarroçado na velocidade louca da Carocha, escrevi pouco. E é um tema tão
importante para os abrunhenses. Fica para a próxima.
Silvestre Brandão Félix
Abrunheira, 11 de setembro de 2017
Foto tirada por mim: Chafariz da Charneca (D. Maria I –
Século XVIII)