Quando a “sorte-grande” calhava, tinha ordem de soltura para
poder ver, naquele dia, “O Santo”, na televisão da “Sociedade”. Eu e os outros
ainda putos, quando, assim era, muito contentes ficávamos.
Começava a prosa para a minha Mãe e ela respondia:
“De santos está o mundo cheio!”
E eu, sem saber muito bem o que havia de dizer, insistia até
ouvir:
Tá bem, vai lá, mas quando acabar vem logo para casa.
Na Abrunheira daquela altura, que, como agora, de manhã se
vazava e ao cair da noite se enchia de operários e operárias das fábricas à
volta. A maior de todas era a Messa das máquinas de escrever. Eram alguns
milhares. De números certos não sou sabedor como o Bento, que por lá laborou.
Eu, uns anos mais tarde, muitos calos ganhei nos
“indicadores” das duas mãos, matraqueando naquelas teclas duras e que exigiam
alguma força.
Peças pré-históricas, hoje, para a miudagem que já nasce com
“écrans-touch” numa mão e xuxa na outra.
A Estrada de Mem Martins, da Estação ao Cruzeiro, nas horas de ponta, se
enchia de caminhantes idos ou vindos da Messa.
Como sempre vou repetindo, para ver se em mim acreditam, a
relação que tenho com a lembrança de nomes, é má, muito má, mesmo! Por isso,
não se arreliem os meus amigos citados, não fazendo parte da estória, ou os
outros que, não citados, poderiam lá ter estado. Inventar, nos escritos, faz
parte dos “abençoados” desabafos seniores.
Ver televisão na “Sociedade” era divertimento de luxo. O Ti
Jorge Farpela lá ligava a “coisa” e estava sempre atento quando lhe dava os
habituais “fanicos”. Ele, sabedor e especializado, lá ia e mexia no botão da
esquerda no da direita, ao centro, pancadinha daqui e dali e a “coisa” deixava
de tremelicar. Outras vezes era mesmo preciso ir corrigir a direção da antena.
Há dias, mencionei aqui num escrito, o carneiro “Baltazar” do
Tavinho. Era um “cornudo” ensinado pelo dono e, à coca estava sempre, pelo
Largo do Chafariz. Ali, iam muitos animais beber água e era caminho de todos os
abrunhenses. O danado do “Baltazar”, metia-se com todos para gaudio do Tavinho.
Ria que nem um perdido. Mas, então, porque escrevi sobre ele, perguntaram-me
mais pormenores sobre o “Baltazar” e eu não soube responder. Não soube, porque
não o conheci. Quem parece, ainda levou algum “encosto” do carneiro, foi o
meu irmão Vitor. Através da “musica” dele, é que eu soube do “cornudo”.
O meu habitual receio de passar no Largo do Chafariz naquele
tempo, era, por causa dos gansos do Ti Veríssimo. Aqueles “monstros” de penas,
também faziam guarda ao Largo e, andante que não lhes agradasse, corriam atrás
e mordiam-lhe as canelas. Desses é que eu tinha medo.
Claro, fui crescendo e os, antes, “monstros”, já não me
pareciam assim tão grandes. Ainda assim, os fulanos, de pescoço acima e abaixo,
sopravam e sopravam, se calhar, na esperança que em dragões se transformassem
e, à força do fogo, me pusessem dali para fora.
Já espigadote, sentado com o Rui e o Zé Fernando no degrau do
armazém do Ti Álvaro, muitas vezes miramos as tentativas dos gansos em levantar
voo. Vinham a correr com as asas a-dar-a-dar para cima e para baixo, desde o Ti
Miguel e, quando chegavam perto do Chafariz, as patas, por breves instantes,
levantavam um pouco do chão. Paravam e desistiam ao pé do João-d’Leião.
Diz-se, “que a conversa é como as cerejas”, não tem fim e, a
escrita, é como uma torneira aberta (com o freio nos dentes), não acaba. Assim
seja!
Naquela época dos gansos do Ti Veríssimo, à volta da terceira
ou quarta classe, pela primavera e verão acima, muitos grilos e cigarras se
ouviam na Abrunheira. Pelo Rio das Sesmarias corria água e lá andavam as
enguias que iam e enchiam os alcatruzes do poço da horta, nalguns sítios até
dava para tomarmos banho, quando o calor apertava. À noite, junto dos novos
postes da luz, dezenas de morcegos cirandavam caçando os insetos encadeados
pelas lâmpadas. Fora do perímetro do clarão elétrico, uma multidão de
pirilampos ou, como lhes chamávamos, “caga-lumes”.
Andando cá para a frente, cinquenta e muitos de tempo contado
em anos, que nem dá para a reforma por inteiro, muitas tretas vemos, ouvimos e
lemos. A maior parte, não dá para acreditar porque, no fim, são tretas, mesmo!
Fique claro que não quero voltar aquela época. Já foi! Já
passou!
Evoluímos e hoje temos uma vida melhor, mas, mesmo assim,
gostava que os caga-lumes continuassem a ser vistos, que os morcegos “mamassem”
os mosquitos e melgas sem ser preciso usarmos inseticida para os matar, que o
Rio das Sesmarias continuasse a ter água e enguias a maior parte do ano, que os
grilos e as cigarras se ouvissem.
Os lugares são feitos de pessoas. A Abrunheira tem história e
devemos conhecê-la. É importante que se lembrem os protagonistas dessa
história.
Neste tempo de elaboração de programas eleitorais, de promessas,
mesmo que sejam vãs, como infelizmente na maior parte das vezes acontece, que
se faça um esforço para dignificar a memória dos abrunhenses idos, se respeitem
os do presente e se prepare a chegada dos que aí vêm.
Silvestre Félix
31 de agosto de 2017
Foto: Google
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