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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

SOMBRA DAS ÁRVORES, O FORNO, A PONTA DA ÁGUA E OS SONHOS

Fascinado ficava, com a variedade de cores que, depois de arrefecido e das pedras de cal retiradas, se via nas paredes e no poço do “forno”. Era o resultado dos escorrimentos incandescentes que, fornada a fornada, se iam verificando, digo eu, completo desconhecedor científico da matéria, mas apreciador do colorido e formas estampadas no “forno” do “Cerrado-do-Forno”.

Eu não sabia, mas o Zé Fernando explicava-me tudo. O pai dele, Ti Abílio, também era “forneiro”. Passava meses seguidos tomando conta de fornos, como este. Só voltava a casa quando a “cozedura” estava concluída e, aí, contava as aventuras ao Zé Fernando, mas também lhe dizia a parte mais séria, ou seja, a técnica de preparação e efetivação, até toda a “abóboda” de pedregulhos cair, de cozida, no fundo do “forno”.

Ele, que absorvia todas as estórias e ensinamentos que o pai lhe trazia, não descansava enquanto não as punha em prática e, muita vez, fui seu parceiro na construção de mais um “forno-de-cal” de brincadeira.

Entre uma cozedura e outra, ao contrário de quando estava em laboração, ninguém dormia no anexo existente para o efeito e, durante o dia, também ninguém lá parava. O meu pai e a minha mãe, constantemente me diziam para não ir ao forno porque era muito perigoso. E era verdade, o fundo era como se fosse um poço, só que não tinha água e, pelas beiras, podia haver sempre alguma pedra que se desprendesse. Mesmo assim, e levado pela curiosidade, algumas vezes lá fui para admirar aquela dança de cores lustrosas nas paredes.

Aquela margem direita do “Rio-das-Sesmarias”, entre a ponte e o caminho da “Colónia” e o quintal do Ti Rafael, marcaram a minha segunda infância e tornaram-me inteiramente devotado ao que lá existia: A horta, que assim chamávamos, mas que muito mais tinha, o poço e a nora, o tanque de rega, e, lá mais acima, o “forno-de-cal”. Pelo meio, o campo de cultivo e, depois da “ceifa”, muitas vezes transformado na “eira” do Silvestre-Velho, para a debulha e enfardamento dos cereais cultivados nos seus terrenos à roda da Abrunheira, e não só.

Ao abrigo dos canaviais, que separavam os talhões, e à sombra dos pessegueiros, das nespereiras, das ameixeiras, das macieiras, dos limoeiros ou das pereiras, muitas caminhadas fiz pelos regos que levavam a água do tanque até às hortícolas, que o meu pai continuamente semeava ou plantava. Corria à frente da ponta da água, e, lá adiante, com o sacho bem aconchegado de terra seca, a encaminhava para o rego lateral, tapando, como se porta fosse, o rego principal. E, depois deste, seria outro, e mais outro e sempre assim, juntinho com a fonte da vida até ficar tudo alimentado e fresquinho.  
  
Nos meus oito, nove ou dez de idade, contada em anos, olhava, praguejava e lamentava a caminhada monótona da “Carocha”, em círculos à volta do poço, fazendo com que os alcatruzes da nora se deslocassem até ao fundo, onde estava a água e, de volta, chegassem ao cimo, virando-se e despejando a água que ia diretamente para o grande tanque, contentando o grande cágado que por lá andava. Até agora, tanto tempo passado, e como me lembro bem da chinfrineira provocada pelo movimento da nora, que abafava tudo à volta, incluindo as passadas da “Carocha”.

O meu mundo estava ali.

Ao contrário, de manhã, na escola, enfiando a atenção na história de Portugal daquém e dalém mar, na geografia do império do Minho a Timor, nas linhas de caminho de ferro da metrópole, de Angola e, principalmente de Moçambique, nas dezenas de rios que desaguavam em três oceanos diferentes, nas serras, que subiam em direção a constelações do hemisfério norte e do hemisfério sul, em climas temperados e tropicais, e também na gramática, na tabuada, nos problemas e na geometria avançada para a época.

Tudo isto, eu sabia que tinha de aprender, mas o que eu gostava mais, era da horta, da sombra das árvores que davam deliciosas frutas, da Carocha, da Marcina, da Estrela e da Bonita que —  tantas vezes já ditos— por esses caminhos acima, as levava a pastar até aos “celões”, fronteira com quinta do Ti Zé da Beloura e de mais caminhos até ao Linhó e à Colónia.

Gostava de ter por perto o Rio-das-Sesmarias, os melros e os pintassilgos que, por ali, muito saltitavam. E o grande rebanho de ovelhas do meu tio João que, na ida e na vinda, se abeiravam da margem para comporem do precioso líquido, a remoedura. Do meio, lá vinha em correria na minha direção, a antes, borreguinha, que eu e a minha mãe criamos em casa a biberon e que, ovelha adulta, nunca esqueceu quem lhe deu mimos e alimento quando ela mais precisava. Berregava em saudação, lambia-me as mãos e, depois de lhe fazer a habitual festa, regressava contente para o pé das companheiras.  Tanto tempo depois, o universo dos complicados sonhos que muitas noites me atormentam o sono, ainda passam, uma ou outra vez, por aqueles locais e por aqueles dias, que foram reais.

Compensando a falta dessas coisas boas que já não são, sopraram-me há tempos, que, a preservação do “forno-de-cal” do “Cerrado-do-Forno”, estava garantida. Se assim vier a ser, fico muito contente pelos motivos pessoais que aqui foram escritos, e tenho a certeza que a maioria dos abrunhenses ou abrunheirenses como outros dizem estar correto, também ficarão.

Não sei quando será nem como o vão fazer, mas, para já, o que resta do “forno” não vai ser demolido e, algures para a frente no tempo, todos poderão ver como se fazia cal, indispensável para a construção e revestimento das habitações, até à década de sessenta do século vinte.

Silvestre Brandão Félix
9 de outubro de 2017
Fotos: (1)Ruínas do Forno de Cal do “Cerrado-da-Fonte” na Abrunheira. Tirada hoje, por mim. (2) Desenho-esboço de Forno de Cal (Google).


terça-feira, 19 de agosto de 2014

MALDITA CORVINA!

Jardim do Bairro da Colónia - Silvestre - 1973
Em tempo passado, corrido e contado em anos, irão, pelo menos, uns quarenta e um. É verdade, ainda vivíamos no regime do “botas” que já não era, embora, na fase final duma “primavera” que nunca chegou a ser. Mil novecentos e setenta e três, derradeiros anos do terceiro quartel do já longínquo século vinte. No ano anterior – setenta e dois – tinham acontecido os Olímpicos de Munique e, por isso, por esses caminhos acima até ao “novoBairro da Colónia, levei o meu rádio, gravador e leitor de cassetes pirata e sem serem, dentro do saquinho branco com o símbolo olímpico e escrito “Munique “72”.

Quem vai por esses caminhos acima também vem por esses caminhos abaixo. Realmente vim, mas depois de muita “praga” ter atirado à corvina. Sim, corvina! Aquele peixe muito bom que, nos últimos tempos, anda fugido das nossas peixarias. Em setenta e três do século passado – ano do III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro que a PIDE-DGS desavergonhadamente invadiu – penso que por volta de Abril, o Caravaca-PaiGuarda prisional dos antigos – desafiou alguns amigos do Caravaca-filho para se fazer a “folha” a uma cabeçorra de corvina cozida. E então lá fui por aí acima com os do costume, estrear a casa nova do Caravaca que, até aí, morava, como muitos outros guardas prisionais da Colónia, na Abrunheira, junto ao Chico Cobeca, no início da Travessa do Norte.

Maldita corvina!” Então, não é que, com o que lhe juntei de bebida, talvez vinho branco ou verde-branco fresco, armou um sarilho alcoólico-intestinal que me ia desfazendo todo em vómito e diarreia como nunca antes nem depois experimentara. “Maldita corvina” foi o que mais repeti cambaleando no bonito jardim e boca d’água do “Novo bairro da Colónia” de mil novecentos e setenta e três quando, ainda, a dois passos do Chiado, a PIDE-DGS torturava o operário, a doméstica ou o intelectual, só porque a linha de pensamento divergia e eu, duma “janela dum terceiro andar” que, com o Tejo como espelho, conseguia ver todo o mundo pelo lado dos dezoito anos que nunca mais voltaram. 

Desde essa época, em anos o tempo conta quarenta e um e, pelo menos, durante metade, quando pelos caminhos acima ou abaixo, vamos ou vimos pela Colónia – sempre com muito cuidado como a minha querida Mãe dizia quando, em tempo contado para trás em anos seriam dez, onze ou doze e me deixava conduzir pela burra Carocha, pela ternurenta vaca Bonita, pela Marcina, pela Estrela e por outras que os nomes voltavam por passarem de mães leiteiras e parideiras para vitelas filhas e criadas com tanto amor pela Ti Augusta, que muita tristeza se abatia lá por casa quando o destino se cumpria e o Fachadas ou outro qualquer comprador se abeirava e carregava o animal – revolve-me o estomago mas não por causa da “corvina” nem do branco maduro ou verde fresco. O “Bairro da Colónia” está velho e abandonado de manutenção e arranjos básicos. As velhas moradias, por exemplo a do “guardaVicente, há muito que “desistiram” e telhados ou paredes se deixaram cair, os prédios – como o do Caravaca – de mil novecentos e setenta e dois e setenta e três, vão pelo mesmo caminho se não lhe puserem “a mão” rapidamente.

O antes “novo” e agora “velhoBairro da Colónia, está como este País, a cair aos bocados no meio duma revolta estomacal só que, agora, a culpa não é da “maldita corvina”, mas sim, da

“Maldita corja!”


Silvestre Félix