Fascinado ficava, com a variedade de cores que, depois de
arrefecido e das pedras de cal retiradas, se via nas paredes e no poço do
“forno”. Era o resultado dos escorrimentos incandescentes que, fornada a
fornada, se iam verificando, digo eu, completo desconhecedor científico da
matéria, mas apreciador do colorido e formas estampadas no “forno” do “Cerrado-do-Forno”.
Eu não sabia, mas o Zé Fernando explicava-me tudo. O pai
dele, Ti Abílio, também era “forneiro”. Passava meses seguidos tomando conta de
fornos, como este. Só voltava a casa quando a “cozedura” estava concluída e,
aí, contava as aventuras ao Zé Fernando, mas também lhe dizia a parte mais
séria, ou seja, a técnica de preparação e efetivação, até toda a “abóboda” de
pedregulhos cair, de cozida, no fundo do “forno”.
Ele, que absorvia todas as estórias e ensinamentos que o pai
lhe trazia, não descansava enquanto não as punha em prática e, muita vez, fui
seu parceiro na construção de mais um “forno-de-cal” de brincadeira.
Entre uma cozedura e outra, ao contrário de quando estava em
laboração, ninguém dormia no anexo existente para o efeito e, durante o dia,
também ninguém lá parava. O meu pai e a minha mãe, constantemente me diziam
para não ir ao forno porque era muito perigoso. E era verdade, o fundo era como
se fosse um poço, só que não tinha água e, pelas beiras, podia haver sempre
alguma pedra que se desprendesse. Mesmo assim, e levado pela curiosidade,
algumas vezes lá fui para admirar aquela dança de cores lustrosas nas paredes.
Aquela margem direita do “Rio-das-Sesmarias”, entre a ponte e
o caminho da “Colónia” e o quintal do Ti Rafael, marcaram a minha segunda
infância e tornaram-me inteiramente devotado ao que lá existia: A horta, que
assim chamávamos, mas que muito mais tinha, o poço e a nora, o tanque de rega,
e, lá mais acima, o “forno-de-cal”. Pelo meio, o campo de cultivo e, depois da
“ceifa”, muitas vezes transformado na “eira” do Silvestre-Velho, para a debulha
e enfardamento dos cereais cultivados nos seus terrenos à roda da Abrunheira, e
não só.
Ao abrigo dos canaviais, que separavam os talhões, e à
sombra dos pessegueiros, das nespereiras, das ameixeiras, das macieiras, dos
limoeiros ou das pereiras, muitas caminhadas fiz pelos regos que levavam a água
do tanque até às hortícolas, que o meu pai continuamente semeava ou plantava.
Corria à frente da ponta da água, e, lá adiante, com o sacho bem aconchegado de
terra seca, a encaminhava para o rego lateral, tapando, como se porta fosse, o
rego principal. E, depois deste, seria outro, e mais outro e sempre assim,
juntinho com a fonte da vida até ficar tudo alimentado e fresquinho.
Nos meus oito, nove ou dez de idade, contada em anos, olhava,
praguejava e lamentava a caminhada monótona da “Carocha”, em círculos à volta
do poço, fazendo com que os alcatruzes da nora se deslocassem até ao fundo,
onde estava a água e, de volta, chegassem ao cimo, virando-se e despejando a água
que ia diretamente para o grande tanque, contentando o grande cágado que por lá
andava. Até agora, tanto tempo passado, e como me lembro bem da chinfrineira
provocada pelo movimento da nora, que abafava tudo à volta, incluindo as
passadas da “Carocha”.
O meu mundo estava ali.
Ao contrário, de manhã, na escola, enfiando a atenção na
história de Portugal daquém e dalém mar, na geografia do império do Minho a
Timor, nas linhas de caminho de ferro da metrópole, de Angola e, principalmente
de Moçambique, nas dezenas de rios que desaguavam em três oceanos diferentes,
nas serras, que subiam em direção a constelações do hemisfério norte e do hemisfério
sul, em climas temperados e tropicais, e também na gramática, na tabuada, nos
problemas e na geometria avançada para a época.
Tudo isto, eu sabia que tinha de aprender, mas o que eu gostava
mais, era da horta, da sombra das árvores que davam deliciosas frutas, da
Carocha, da Marcina, da Estrela e da Bonita que — tantas vezes já ditos— por esses caminhos
acima, as levava a pastar até aos “celões”, fronteira com quinta do Ti Zé da Beloura
e de mais caminhos até ao Linhó e à Colónia.
Gostava de ter por perto o Rio-das-Sesmarias, os melros e os
pintassilgos que, por ali, muito saltitavam. E o grande rebanho de ovelhas do
meu tio João que, na ida e na vinda, se abeiravam da margem para comporem do
precioso líquido, a remoedura. Do meio, lá vinha em correria na minha direção,
a antes, borreguinha, que eu e a minha mãe criamos em casa a biberon e que,
ovelha adulta, nunca esqueceu quem lhe deu mimos e alimento quando ela mais
precisava. Berregava em saudação, lambia-me as mãos e, depois de lhe fazer a
habitual festa, regressava contente para o pé das companheiras. Tanto tempo depois, o universo dos complicados
sonhos que muitas noites me atormentam o sono, ainda passam, uma ou outra vez,
por aqueles locais e por aqueles dias, que foram reais.
Compensando a falta dessas coisas boas que já não são,
sopraram-me há tempos, que, a preservação do “forno-de-cal” do
“Cerrado-do-Forno”, estava garantida. Se assim vier a ser, fico muito contente
pelos motivos pessoais que aqui foram escritos, e tenho a certeza que a maioria
dos abrunhenses ou abrunheirenses como outros dizem estar correto, também
ficarão.
Não sei quando será nem como o vão fazer, mas, para já, o que
resta do “forno” não vai ser demolido e, algures para a frente no tempo, todos
poderão ver como se fazia cal, indispensável para a construção e revestimento
das habitações, até à década de sessenta do século vinte.
Silvestre Brandão Félix
9 de outubro de 2017
Fotos: (1)Ruínas do Forno
de Cal do “Cerrado-da-Fonte” na Abrunheira. Tirada hoje, por mim. (2) Desenho-esboço de Forno de Cal (Google).
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