Muito
calcorreávamos as ruas da nossa Terra porque de máquinas andantes ainda nem o
inferno estava cheio, quanto mais o céu. Mesmo as bicicletas só chegavam a bolsos
mais aconchegados. O alcatrão ainda era pouco porque as ruas, a principal e as
outras, «nos dedos duma mão, bem cabiam»! O caminho era negro desde a entrada,
à padaria, em direção ao Chafariz e um pouco mais “ralo” (via-se mais pedras
que alcatrão) no largo até à menina Emília, pelo Sigamó até ao Olival. Daí para
cima até à estrada na curva, era calçada à portuguesa um bocado mal- amanhada.
Para baixo do Chafariz, pela principal, o alcatrão era melhor até acabar a
seguir à curva do Ti Faneca. Até onde vai a lembradura desta descrição, o
“Curronquinho” ainda não tinha alcatrão e muito menos vivendas. Era o caminho
mais apetitoso para calcorrear. Tinha sempre uma erva muito rentinha, parecia
relva plantada. Da curva até ao nosso castelo em ruinas era sempre relvinha
fofa. Esta fortaleza, onde espadeirávamos horas a fio, estava um bocadinho a
seguir, onde muito tempo depois, com a construção do bairro, havia de ser
plantado o “nosso” café – primeiro do Ramos e depois do Cabaço.
Também de
relvinha fofa calcorreava, com o Zé Fernando, Zé Augusto, Rui, Fernando
Pedroso, Filomeno e, se calhar, com mais outros que a minha memória
negligenciou no ficheiro do tempo, aquela que era azinhaga desde a esquina da
casa da fruta do “Pechincha”, junto ao Rio das Sesmarias, até ao passadouro
para o lado da pedreira do Ti Miguel. Onde agora, na segunda década deste
desgraçado século XXI, existe uma ponte, O
das Sesmarias autorizava que o atravessássemos colocando os andantes nas
pedras altas que, uma-a-uma, nos levada à outra margem. Muitas vezes, pela
relvinha, calcorreávamos com os nossos “carrinhos-de-arame”, para desembocar,
não no Rio, mas subindo à direita até à oficina (dos carrinhos-de-arame) do Zé
Fernando. Aí, reparávamos todas as avarias endireitando as rodas e reforçando
as ligações ao eixo de direção que era uma cana bem comprida que levava o volante
até à altura do condutor. Também na oficina preparávamos os atrelados que,
quase sempre, derivavam de “dignas” e, antes, nutritivas latas de conservas
nacionais. Naquela época, já de arreliados dias bélicos pelas colónias e onde,
irmãos ou primos mais velhos, por obrigação, guerreavam a mando do salazarento
regime, as conservas eram sempre nacionais. Não carecia de verificarmos a
origem do atum, da sardinha ou das enchovas. Não corríamos o risco de
utilizarmos atrelados que tivessem vindo dos “nuestros hermanos”, como agora,
neste desgraçado século XXI que já vai na segunda década e onde, cada vez mais,
sinto inglórias as grandes batalhas nos céus da Europa em guerra,
protagonizadas (do lado dos que aprendi a serem os bons nos muitos
“quadradinhos” que devorei) pelo Major Alvega.
Muito
andávamos a pé e, alguns de nós, “dos putos”, literalmente. Nem todos tinham o
“privilégio” de poder usar, nos pés; botas, sapatos ou, simplesmente, chinelos.
Calçados ou descalços lá calcorreávamos os caminhos da Abrunheira, juntos ou
sozinhos, com a maior das naturalidades. Os calçados, para trabalho dos
sapateiros que, cá na Terra, eram verdadeiros artistas. Não contando com outros
também famosos que já não eram, que deles se dizia e eu ouvia «tivessem a alma
em descanso» como o “Sapateiro de Manique” porque era de Manique, claro está!
Muitos contos (de histórias, não de dinheiro) me narraram deste sapateiro que
por companhia tinha o “Cabeço de Manique” e que, para além de amanhar botas e
outro calçado, também tinha rebanho de ovelhas que lhe completava o rendimento
no leite, lã e na feitura de eiras para debulha de cereais durante o verão. Por
isso mesmo, o Silvestre Velho não prescindia da sua vinda. “Velho” no meu avô
não era nome, era da idade e dos cabelos e bigode brancos. Os filhos homens que
com ele andavam na lida do campo e os que por outras bandas se governavam, eram
conhecidos pelo nome próprio mais o do pai que, assim, funcionava como alcunha,
sendo que, quando se referiam ao verdadeiro Silvestre, acrescentavam o “Velho”
para não se confundir com os filhos.
Ainda na
onda dos sapateiros, outros havia que a alcunha não tinha nada a ver com o nome
do pai ou avô, como o Ti J’aquim (Cagachuva), mas decerto com outras
circunstâncias nada simpáticas para o simples olfato de qualquer abrunhense.
Bom artista de calçado e muito bom contador de histórias. Sempre as ouvia com
gosto mesmo sendo uma segunda, terceira ou décima vez contada. É assim como
aqueles filmes que vemos vezes sem conta, e sempre gostamos como se, de
primeira, sempre seja. Outro artista sapateiro havia, que se foi deste mundo há
bem pouco tempo já neste desgraçado século vinte e um. O Zé Celorico, como a
minha Mãe lhe chamava porque veio de Celorico da Beira. Com o Ti Zé partilhei
labuta – a minha primeira na condição de assalariado. Na Atil, que já não é, eu
e muitos rapazes da minha idade, na dita, com catorze de tempo contado em anos
– um puto, aprendíamos a disciplina e as agruras do operariado. Não é do meu “ser”,
nem teria razões para me queixar. Era bem tratado e por lá, na secção de
pintura, o Ti Zé Celorico pintava tudo o que de embelezamento precisava.
A adesão à
classe trabalhadora naquela altura foi por vontade própria, porque, acreditava,
a alternativa estudantina, para mim, era bem mais dura. A Ti Augusta fez tudo o
que lhe estava ao alcance para me convencer do contrário, mesmo sofrendo todos
os dias com o meu começo de jornada desde a Abrunheira até ao Cacém…
“Escuro, mas muito escuro e a chuva
caía às dez para as seis da manhã como já caía às dez da noite de ontem.
— Não filho, assim não! Descalça lá
os botins primeiro! Isso! Põe o pé aqui no banco. A Mãe vai enrolar o jornal
nas tuas pernas para não ficares com frio. Já podes calçar este botim. Agora a outra
perna, põe aqui o pé! Isso! Assim ficas mais quentinho!
— Oh Mãe! Deixo ficar assim, todo o
dia?
— Sim! Não tires antes de chegares a
casa!
— Com a saca bem presa à cintura, não
molhas as pernas! Segura bem o chapéu-de- chuva junto à cabeça. Quando vires a
camioneta a chegar, desatas o cordel e deitas a saca fora!
— Tá bem Mãe, até logo!
— Tem cuidado, vai sempre p’la
beirinha e olha bem quando atravessares para os “plásticos”. Dá cá um beijinho!
A chuva caía sempre! Gostava mais de
ir pelos eucaliptos até à Charneca, embora mais longe e descampado, porque pela
quinta “Lavi” até aos “plásticos” era muito escuro e no pinhal parecia que
estava sempre lá alguém escondido…tinha medo! Os botins pesavam e chapinhavam
na água acumulada. A camioneta do “Eduardo Jorge”, muito amarelinha, passava às
seis e vinte da manhã. Quando entrava às oito no Cacém, não tinha outra
hipótese. E os botins frios e pesados. E a professora de Matemática… que raio
de lembrança. Corredores, escola velha, escola nova, oficinas, recreio e sandes
de mortadela no Ti Rodrigues com sobremesa de cigarrito a dois, cinco tostões.
O fulano da “Mocidade Portuguesa”, o “chefe de castelo” ou lá o que era, não
nos largava. Insistia comigo e com outros para não faltarmos no sábado. Desde
que o tipo me obrigou a marchar sozinho, nunca mais lá pus os pés. Andavam
sempre a dizer que contava para a “nota” mas era mentira.”
Calcorreando
uma vida inteira por esses caminhos. Chegados ao largo, que pode ter “Chafariz”
ou não, que deveria ter todas as saídas embelezadas e de piso direitinho sem
pretextos para tropeções, deparamo-nos com um muro fechado a toda a volta e, na
maior parte das vezes, a azinhaga donde viemos também se fecha atrás.
É urgente
encontrar uma brecha no muro para continuarmos o “calcorreamento”. Tem de haver
uma falha!
— O que achas oh Bernardino que não
és Coutinho? Consegues guiar-me para esburacar a parede? (pergunta de
picareta – ferramenta da caixa do Coutinho que era Bernardino)
— Acho que sim! (diz o
Coutinho que era Bernardino). Com a minha força delegada em
competência, pelo povo da nossa “Terra”, e com toda a “ciência da pedra”, arte
minha aperfeiçoada em muito tempo de anos contado, e com a tua rijeza de bom
ferro fundido em forja bem quentinha, vou conseguir enfiar-te pelo muro dentro
e encontrar uma saída, mesmo que seja muito estreita!
Silvestre Félix
(Factos e outros não, ficcionados
na minha onda incluindo alguns nomes reais e outros inventados.)
22 de Julho de 2014
Um abraço meu caro Amigo. Um texto de memórias, digno, completo.
ResponderEliminarObrigado Amigo Castelo. Abraço!
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