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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

SANTO ANTÓNIO E O GALO, O RIO E PARA ONDE FOI A ÁGUA

“Outro galo (não) cantaria”, não fosse, a vontade, a dedicação e a paciência do Vicente da Colónia, de lá, ter trazido, o cata-vento que, por obra e habilidade dos dois da Virgínia, o Ti Zé e o Ti Manel, com a serventia do Albano e de muitos outros abrunhenses – incluindo o meu pai Zé, que, para todos os efeitos e conhecimento, lhe chamavam Zé Silvestre e ele aceitava, sendo o acrescentado, como era uso, nome do pai, que, neste caso, era meu avô e padrinho de batismo – o terem colocado no “carrapito” do telhado-alpendre da bica, ali armada, em honra do Santo António que, desde aquele longínquo início da segunda metade do século vinte, passou a ser, também, Da Abrunheira.

Água com fartura, muitos dias até demais porque, à volta dos bebedouros e dos tanques de lavar a roupa, se chapinhava e, quem lá fosse, cuidado tinha de ter, para não enfiar os calcantes na lama, muitas vezes bem misturadinha com o resultado da remoedura, digestão e eficaz transito intestinal, das vaquinhas, Marcina, Estrela, Bonita e, muitas vezes, também da Carocha.    

Todos eles, os mestres construtores, serventes e mais abrunhenses ajudantes e, depois, os utilizadores da bica, da mina, das pedras roçadas de tanta roupa lá ser batida, e da água limpinha que bem lavava e voltava a correr sempre nova, e bem como as minhas vaquinhas e a Carocha, se indignariam com as patifarias e sem-vergonhices levadas a cabo por prevaricadores sem rosto, se por cá voltassem agora – em tempo de (des) uniões da europa, de freguesias e com dois amalocados em cada ponta do planeta, a disputarem a sua própria destruição – e vissem como está tudo seco de água, tanto no verão como no inverno.

E a mina, de água cheia sempre estava, boa e gostosa para matar a sede, agora, se se abrir a porta, em fossa pestilenta está transformada.

Onde está a água? Para onde foi? Perguntariam a Ti Maria do Florindo, a Ti Maximina ou a Ti Silvéria.

Protestaria, e muito, pela seca, também o João Barriga ou Ti Artur Germano. Não era, que muito amantes fossem de água lisa da bica do Santo António ou de qualquer outro sítio. Como acontecia com a maioria dos homens e, porque não, de algumas mulheres da Abrunheira, para bebida ia melhor tinto ou branco, desde que estivesse cheio, o copo ou a garrafa, e amarinhasse até aos neurónios e os deixasse contentes e anestesiados para uma boa sesta.

Do mesmo mal, da falta de água de verão e da maior parte do inverno, se vem queixando aos amigos e atravessadores, o Rio das Sesmarias. Sim, o mesmo que, num projeto camarário parido à pressa e com o cordão umbilical a apertar-lhe o gasganete, lhe quiseram trocar o nome e a categoria.

Classificaram-no como ribeira e deram-lhe um nome de uma terra que está pertinho do Estoril. Aqui, na Abrunheira, sempre se chamou Rio das Sesmarias e é assim que queremos, continue. Porque “carga-de-água”, agora haveria de ter um nome diferente? Os “senhores-inteligentes”, se não sabem, venham perguntar aos abrunhenses como se chama o seu rio.

Retomando as queixas do nosso Rio das Sesmarias, constata-se que há uns tempos, o seu leito está mais tempo seco do que molhado, ao contrário do que era habitual. Mesmo no inverno, corre sempre de fininho até vir uma chuvada. Aí, sobe até meio e, em poucas horas, volta ao “fininho”. Se não chover nos quinze dias seguintes, de “fininho”, passa a parado até voltar a chover outra vez. No verão, seca completamente.

Os atravessadores agora são muitos, mas como a maioria passam encavalitados em andantes de duas ou quatro rodas, sempre cheios de pressa e a grande velocidade, não há oportunidade nem tempo de entabular uma conversa digna desse nome, para além de, nem repararem na presença do nosso Rio das Sesmarias. Diz ele, que tem saudades da companhia do “Artista-Sapateiro”, Ti Joaquim Caga-a-Chuva e do “Cabouqueiro” que tinha a “Ciência-da-Pedra”, Coutinho que era Bernardino.

Eles sabiam, tal como o Rio das Sesmarias, tanto no tempo em que a Ti Mariana Soleto, mãe do Bernardino que não era Coutinho, dele tomava conta, como depois de se ter entregue aos carinhos da Judite Caracol, e do Ti Joaquim ter vindo com a Margarida dos “ditos-e-contos”, do Linhó, para a nossa terra, que todos os viventes que acompanhavam o seu leito desde o cimo da Abrunheira, no Olival e por trás do Cipriano, em frente à horta e por baixo da ponte da colónia, por trás do Santo António, pelos quatro-donos e arroteia até à casa-da-água, passando pela Azenha do Sebastião Moleiro na Capa-Rota, e por aí abaixo iam até à foz, foram morrendo e, hoje, nem enguias que, quando passavam pelo cano até ao poço da horta, eram quase da grossura dum braço, nem ao menos rãs, sapos ou girinos, sobrevivem no pouco tempo de água.

Voltando ao Santo António, que em boa hora tem, neste tempo, cuidadores dedicados que garantem a dignidade do sítio, mesmo que a água corrente já lá não esteja. Somos gratos por esse cuidado e dedicação.

Em tempos, outras e outros cuidadores, pelo local olharam. Lamentando o meu fraco índice “memorial”, decorrente do crescente “litígio” à medida que a PDI avança, com a desorganização dos ficheiros de nomes no rígido, que cada vez está mais mole, torna impossível indicá-los sem os inevitáveis falhanços. De maneira que, quando me surgem dúvidas, não arrisco nomeação, ficando com o ónus de alguma injustiça pela omissão.

Um que nunca esqueço, não sei se alguma vez assumido, o de cuidador, mas, pelo menos, guardador de proximidade, foi. A horta por cima da mina, era o seu local de trabalho preferido e, de hortelão, sabia ele. O Ti Mendes, com aquela comprida barba amarelada, por causa da fumarada que permanentemente por ela passava, dava-lhe um ar de sábio. Acho que, de verão ou de inverno, de casacão se vestia e, dos seus grandes bolsos, sacava os cachimbos que ele construía a partir das melhores canas da horta.

Grandes baforadas, deitava, em troca da ausência de faladura. O ritual enchimento da grande fornalha, caracterizava-se pela função imprescindível daquela grande unha, calcando o tabaco para o seu interior. 

Por ali, sempre se via e, se não estivesse, era porque ia até à casa da fruta do Pechincha, ou subia pelo Largo do Chafariz até ao Álvaro ou à “Menina-Emília”. 

Típica figura que associo sempre ao Santo António. Também o Ti Mendes, hoje, sentiria falta da água corrente da mina e, por consequência, do “treu-laréu” do mulherio a lavar a roupa nos tanques.

Para onde foi a água?

Silvestre Félix
18 de setembro de 2017

Fotos: Google (publicadas no extinto blog «aldeiaviva)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

EU, O PATO E O JOÃO BARRIGA

Por artes mágicas com pozinhos perlim-pim-pim e tudo, o que antes se chamava “Vale de Porcas” ou “Vale Porcas” sem “de”, virou “Vale Flores”. A origem do primeiro nome tem a ver com a existência de muitas cortes suínas de que até a realeza se recorria para abastecer as despensas e as salgadeiras dos Palácios da Vila e da Pena e, também, o de Queluz, desde a época dos desvarios de Carlota Joaquina que consorte rainha se tornou quando o regente D. João foi Rei com o número VI.


Este “Vale”, agora “Flores” e antes “Porcas”, corresponde à parte antiga com entrada por Ranholas ou Chão de Meninos, na banda de cima do A 16. Do lado de Mem Martins, fica então a parte nova de “Vale Flores” que nunca chegou a ser “Vale Porcas” e, antes, “Chancuda” e “Casal da Charneca” do Ti Zé da Charneca e mulher, pais da Lucinda, viúva do Ramos com o café dos quatro onde nasceu a antiga mercearia que me estreou no trabalho fora de casa, armado em ajudante do Ti Ramos. A Lucinda tem uma irmã que no Casal da Charneca também nasceu, esposa do Comandante Gaspar dos Bombeiros de São Pedro. Ainda de mercearia falando. Arrumado no sítio certo ainda tenho a lembrança duma tarde do Verão de 1966. Não tinha costume, mas, naquela tarde, o Ti Ramos ligou a telefonia quando os “magriços” já perdiam por dois a zero. De alegrias carenciados com tal resultado e, com o fôlego ainda meio entupido, os coreanos do norte marcam mais um, encolhendo rapidamente a esperança de virarmos o resultado. Na pele de marçano ajudante, muito contente fiquei, com os cinco espetados à Coreia do Norte.


Deixando a mercearia e o futebol, matérias intrometidas na sequência do escrito que de “Vales” e seus limites falava, esta dualidade na designação do “Vale” diz respeito ao que quero contar. Agora é “Flores” mas a época que vou reportar era “Porcas” de forma que, para o escrito, vai ser Vale Porcas” e ponto final.


Depois de eu ter nascido mesmo em frente do Rio das Sesmarias, decerto de seco leito que o estio já ia forte, a família decidiu ir tratar da vida para outras paragens e eu, que comer e sujar fraldas mais não faria nem entendia, lá fui. E para onde? Para “Vale Porcas”. Os meus pais tomaram de renda o “Casal Novo” que de fruta e horta não pedia meças. A estadia por lá muitas histórias tem que alguma vez poderão ser contadas mas, o fio do meu escrito vai direitinho para o nosso regresso à Abrunheira passados 4 anos e meio.


Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959 e o dia a acabar, quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Ainda meio atordoado com a viagem que me pareceu maior que o costume e porque com os balanços da carroçaria me embalaram para mais um sono…ouvi atrás de mim:


Olha o “pato bravo”!


Gritou o João Barriga quando se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Minha Mãe ou com a minha irmã Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. Mas, o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? E o que era isso de pato e ainda por cima bravo??


A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a vermelho e verde, com as pegas atadas para o animal não fugir. Eu, a Minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.


Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssimaResiquímica, ou, naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem a minha família e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.


O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, não me lembro de ver aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver alguns cães em cerâmica que, decerto, a sua mulher lá colocou para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.


Pois nós tínhamos vindo do dito “Casal Novo” em “Vale Porcas”. Enquanto a casa para onde nós íamos morar esteve indisponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi aí que chegamos de carroça cheia. Outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da Minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.


Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e, o João Barriga, está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."


Silvestre Félix
4 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)