“Outro galo (não) cantaria”, não fosse, a vontade, a dedicação
e a paciência do Vicente da Colónia, de lá, ter trazido, o cata-vento que, por
obra e habilidade dos dois da Virgínia, o Ti Zé e o Ti Manel, com a serventia
do Albano e de muitos outros abrunhenses – incluindo o meu pai Zé, que, para
todos os efeitos e conhecimento, lhe chamavam Zé Silvestre e ele aceitava,
sendo o acrescentado, como era uso, nome do pai, que, neste caso, era meu avô e
padrinho de batismo – o terem colocado no “carrapito” do telhado-alpendre da
bica, ali armada, em honra do Santo António que, desde aquele longínquo início da
segunda metade do século vinte, passou a ser, também, Da Abrunheira.
Água com fartura, muitos dias até demais porque, à volta dos
bebedouros e dos tanques de lavar a roupa, se chapinhava e, quem lá fosse,
cuidado tinha de ter, para não enfiar os calcantes na lama, muitas vezes bem
misturadinha com o resultado da remoedura, digestão e eficaz transito intestinal,
das vaquinhas, Marcina, Estrela, Bonita e, muitas vezes, também da
Carocha.
Todos eles, os mestres construtores, serventes e mais
abrunhenses ajudantes e, depois, os utilizadores da bica, da mina, das pedras
roçadas de tanta roupa lá ser batida, e da água limpinha que bem lavava e
voltava a correr sempre nova, e bem como as minhas vaquinhas e a Carocha, se
indignariam com as patifarias e sem-vergonhices levadas a cabo por
prevaricadores sem rosto, se por cá voltassem agora – em tempo de (des) uniões
da europa, de freguesias e com dois amalocados em cada ponta do planeta, a disputarem
a sua própria destruição – e vissem como está tudo seco de água, tanto no verão
como no inverno.
E a mina, de água cheia sempre estava, boa e gostosa para
matar a sede, agora, se se abrir a porta, em fossa pestilenta está
transformada.
Onde está a água? Para onde foi? Perguntariam a Ti Maria do
Florindo, a Ti Maximina ou a Ti Silvéria.
Protestaria, e muito, pela seca, também o João Barriga ou Ti
Artur Germano. Não era, que muito amantes fossem de água lisa da bica do Santo
António ou de qualquer outro sítio. Como acontecia com a maioria dos homens e,
porque não, de algumas mulheres da Abrunheira, para bebida ia melhor tinto ou
branco, desde que estivesse cheio, o copo ou a garrafa, e amarinhasse até aos
neurónios e os deixasse contentes e anestesiados para uma boa sesta.
Do mesmo mal, da falta de água de verão e da maior parte do
inverno, se vem queixando aos amigos e atravessadores, o Rio das Sesmarias. Sim,
o mesmo que, num projeto camarário parido à pressa e com o cordão umbilical a
apertar-lhe o gasganete, lhe quiseram trocar o nome e a categoria.
Classificaram-no como ribeira e deram-lhe um nome de uma
terra que está pertinho do Estoril. Aqui, na Abrunheira, sempre se chamou Rio
das Sesmarias e é assim que queremos, continue. Porque “carga-de-água”, agora
haveria de ter um nome diferente? Os “senhores-inteligentes”, se não sabem,
venham perguntar aos abrunhenses como se chama o seu rio.
Retomando as queixas do nosso Rio das Sesmarias, constata-se
que há uns tempos, o seu leito está mais tempo seco do que molhado, ao
contrário do que era habitual. Mesmo no inverno, corre sempre de fininho até
vir uma chuvada. Aí, sobe até meio e, em poucas horas, volta ao “fininho”. Se
não chover nos quinze dias seguintes, de “fininho”, passa a parado até voltar a
chover outra vez. No verão, seca completamente.
Os atravessadores agora são muitos, mas como a maioria passam
encavalitados em andantes de duas ou quatro rodas, sempre cheios de pressa e a
grande velocidade, não há oportunidade nem tempo de entabular uma conversa
digna desse nome, para além de, nem repararem na presença do nosso Rio das
Sesmarias. Diz ele, que tem saudades da companhia do “Artista-Sapateiro”, Ti
Joaquim Caga-a-Chuva e do “Cabouqueiro” que tinha a “Ciência-da-Pedra”,
Coutinho que era Bernardino.
Eles sabiam, tal como o Rio das Sesmarias, tanto no tempo em
que a Ti Mariana Soleto, mãe do Bernardino que não era Coutinho, dele tomava
conta, como depois de se ter entregue aos carinhos da Judite Caracol, e do Ti
Joaquim ter vindo com a Margarida dos “ditos-e-contos”, do Linhó, para a nossa
terra, que todos os viventes que acompanhavam o seu leito desde o cimo da
Abrunheira, no Olival e por trás do Cipriano, em frente à horta e por baixo da
ponte da colónia, por trás do Santo António, pelos quatro-donos e arroteia até
à casa-da-água, passando pela Azenha do Sebastião Moleiro na Capa-Rota, e por
aí abaixo iam até à foz, foram morrendo e, hoje, nem enguias que, quando
passavam pelo cano até ao poço da horta, eram quase da grossura dum braço, nem
ao menos rãs, sapos ou girinos, sobrevivem no pouco tempo de água.
Voltando ao Santo António, que em boa hora tem, neste tempo,
cuidadores dedicados que garantem a dignidade do sítio, mesmo que a água
corrente já lá não esteja. Somos gratos por esse cuidado e dedicação.
Em tempos, outras e outros cuidadores, pelo local olharam. Lamentando
o meu fraco índice “memorial”, decorrente do crescente “litígio” à medida que a
PDI avança, com a desorganização dos ficheiros de nomes no rígido, que cada vez
está mais mole, torna impossível indicá-los sem os inevitáveis falhanços. De
maneira que, quando me surgem dúvidas, não arrisco nomeação, ficando com o ónus
de alguma injustiça pela omissão.
Um que nunca esqueço, não sei se alguma vez assumido, o de
cuidador, mas, pelo menos, guardador de proximidade, foi. A horta por cima da
mina, era o seu local de trabalho preferido e, de hortelão, sabia ele. O Ti
Mendes, com aquela comprida barba amarelada, por causa da fumarada que
permanentemente por ela passava, dava-lhe um ar de sábio. Acho que, de verão ou
de inverno, de casacão se vestia e, dos seus grandes bolsos, sacava os
cachimbos que ele construía a partir das melhores canas da horta.
Grandes
baforadas, deitava, em troca da ausência de faladura. O ritual enchimento da
grande fornalha, caracterizava-se pela função imprescindível daquela grande
unha, calcando o tabaco para o seu interior.
Por ali, sempre se via e, se não estivesse, era porque ia até
à casa da fruta do Pechincha, ou subia pelo Largo do Chafariz até ao Álvaro ou
à “Menina-Emília”.
Típica figura que associo sempre ao Santo António. Também o
Ti Mendes, hoje, sentiria falta da água corrente da mina e, por consequência, do
“treu-laréu” do mulherio a lavar a roupa nos tanques.
Para onde foi a água?
Silvestre Félix
18 de setembro de 2017
Fotos: Google (publicadas no extinto blog «aldeiaviva)