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quarta-feira, 4 de maio de 2011

EU, O PATO E O JOÃO BARRIGA

Por artes mágicas com pozinhos perlim-pim-pim e tudo, o que antes se chamava “Vale de Porcas” ou “Vale Porcas” sem “de”, virou “Vale Flores”. A origem do primeiro nome tem a ver com a existência de muitas cortes suínas de que até a realeza se recorria para abastecer as despensas e as salgadeiras dos Palácios da Vila e da Pena e, também, o de Queluz, desde a época dos desvarios de Carlota Joaquina que consorte rainha se tornou quando o regente D. João foi Rei com o número VI.


Este “Vale”, agora “Flores” e antes “Porcas”, corresponde à parte antiga com entrada por Ranholas ou Chão de Meninos, na banda de cima do A 16. Do lado de Mem Martins, fica então a parte nova de “Vale Flores” que nunca chegou a ser “Vale Porcas” e, antes, “Chancuda” e “Casal da Charneca” do Ti Zé da Charneca e mulher, pais da Lucinda, viúva do Ramos com o café dos quatro onde nasceu a antiga mercearia que me estreou no trabalho fora de casa, armado em ajudante do Ti Ramos. A Lucinda tem uma irmã que no Casal da Charneca também nasceu, esposa do Comandante Gaspar dos Bombeiros de São Pedro. Ainda de mercearia falando. Arrumado no sítio certo ainda tenho a lembrança duma tarde do Verão de 1966. Não tinha costume, mas, naquela tarde, o Ti Ramos ligou a telefonia quando os “magriços” já perdiam por dois a zero. De alegrias carenciados com tal resultado e, com o fôlego ainda meio entupido, os coreanos do norte marcam mais um, encolhendo rapidamente a esperança de virarmos o resultado. Na pele de marçano ajudante, muito contente fiquei, com os cinco espetados à Coreia do Norte.


Deixando a mercearia e o futebol, matérias intrometidas na sequência do escrito que de “Vales” e seus limites falava, esta dualidade na designação do “Vale” diz respeito ao que quero contar. Agora é “Flores” mas a época que vou reportar era “Porcas” de forma que, para o escrito, vai ser Vale Porcas” e ponto final.


Depois de eu ter nascido mesmo em frente do Rio das Sesmarias, decerto de seco leito que o estio já ia forte, a família decidiu ir tratar da vida para outras paragens e eu, que comer e sujar fraldas mais não faria nem entendia, lá fui. E para onde? Para “Vale Porcas”. Os meus pais tomaram de renda o “Casal Novo” que de fruta e horta não pedia meças. A estadia por lá muitas histórias tem que alguma vez poderão ser contadas mas, o fio do meu escrito vai direitinho para o nosso regresso à Abrunheira passados 4 anos e meio.


Estávamos por finais de 1958 princípios de 1959 e o dia a acabar, quando chegamos à porta da casa onde morava a minha Irmã Maria José, logo abaixo do chafariz à direita, nas casas do João de Leião. Ainda meio atordoado com a viagem que me pareceu maior que o costume e porque com os balanços da carroçaria me embalaram para mais um sono…ouvi atrás de mim:


Olha o “pato bravo”!


Gritou o João Barriga quando se aproximava, naquele passo muito rápido e mais pequeno do que a perna…., inclinando o corpo todo, à direita e à esquerda conforme as passadas. Eu lembrava-me daquele fulano, quando às vezes, ao Domingo, vinha com a Minha Mãe ou com a minha irmã Felicidade a casa dos meus Avós …. Ai aquela sopa de feijão que a minha Avó fazia…. Mas, o que é que ele, o João Barriga, sabia de mim para me chamar “pato bravo”?? E o que era isso de pato e ainda por cima bravo??


A carroça era pequena para tanta tralha e ainda a cadela mimi, com uma trela improvisada presa ao taipal da carroça e a gata miss, dentro duma alcofa daquelas de junco seco com desenhos pintados a vermelho e verde, com as pegas atadas para o animal não fugir. Eu, a Minha Mãe e a minha Irmã, vínhamos à frente nos bancos da carroça e a tracção, claro, como não podia deixar de ser, a burra carocha que não era nada burra e antes esperta que nem um alho. Logo que sentia qualquer coisa em cima do lombo, nunca deixava de dar o seu coice, e, se pudesse, desatava a correr com ou sem freio nos dentes. Só o meu Irmão é que conseguia tê-la à rédea curta.


Era final do dia e aí se explica aquele encontro com o João Barriga, que vinha do trabalho da “novíssimaResiquímica, ou, naquele tempo, talvez Resistela. Nos dias, meses e se calhar anos que se seguiram, sempre que se cruzava comigo, o (depois) simpático e divertido João Barriga, saudava-me sempre por “pato bravo”. Uma vez explicou-me porquê. Muito simplesmente porque vim de fora da Abrunheira, era estrangeiro. Claro que ele conhecia bem a minha família e sabia que eu tinha cá nascido, mas enfim, era uma maneira de entrar comigo e brincar um bocado.


O João Barriga era caçador (de antigamente) de pau. É verdade, não me lembro de ver aquele homem com uma espingarda. Naquele tempo, as espingardas eram inacessíveis à grande maioria dos Abrunhenses, e o João Barriga, como outros, por exemplo o meu Tio Rafael (Coxo) e até algumas vezes o meu Pai, caçavam com pau e com bons cães. O João Barriga e a sua mulher tinham sempre muitos cães, uns de caça e outros não. Lembro-me bem de ver o João Barriga com coelhos à cinta, caçados com o seu pau e os seus cães. Tratavam muito bem os seus cães e também alguns que nem deles eram. Na campa do João Barriga, no cemitério de Chão de Meninos, entre as placas de mármore, podemos ver alguns cães em cerâmica que, decerto, a sua mulher lá colocou para testemunhar o seu amor pelo melhor amigo do homem.


Pois nós tínhamos vindo do dito “Casal Novo” em “Vale Porcas”. Enquanto a casa para onde nós íamos morar esteve indisponível, ficamos em casa da minha Irmã, e foi aí que chegamos de carroça cheia. Outras coisas já tinham vindo antes incluindo a (mini) manada de vacas leiteiras da Minha Mãe, que ficaram numa vacaria do meu Avô.


Esse dia, é para mim o princípio da memória consciente. Teria quatro anos e meio, mais mês menos mês, e é a partir desse acontecimento que tenho recordações cronologicamente arrumadas, e, o João Barriga, está lá num sítio muito privilegiado, porque, para além de estar associado a esta fase do meu crescimento, era um Homem que fez da Abrunheira a sua Terra e que, de certeza, é recordado com saudade por muitos Abrunhenses como eu."


Silvestre Félix
4 de Maio de 2011


(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008. Corrigido e atualizado pelo autor em 2011)