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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

PELA FRESQUINHA, ACORDANDO O SOL...


Pela fresquinha, “por esses caminhos abaixo”, acordando o Sol, muito se descobre… e recorda…

O Centro Social era para ter sido e não foi, mas a rua, que estava mesmo à mão (e ao pé), não a deixamos fugir. Não havia Centro Social, mas pelo menos havia rua.

Antes da ladeira, as Maçarocas, que na semeadura não me lembro de as ver, as de milho, mas recordo-me bem do grão-de-bico. De pedras era farta e, por isso e pela secura, a adequada seara do seco e rijo grão-de-bico. E aí, pelas Maçarocas, que nunca consegui perceber, para além do grão, também havia fartura de grilos. Era uma contínua cantoria de grilos e, para entremear, também de cigarras.

Ao alto fui, e a um “passo” do Casal-da-Peça, fiquei. Não desci, porque muito longa e desprotegida, no que toca a bermas, a caminhada ficava. Que soberba panorâmica se topa de toda a Abrunheira em direção à Serra. A luz do Sol, ainda rasteira, dá-lhe um brilho que só dali se pode apreciar. 

Pela do Casal Novo em estrada velha, caminhei. Ensaibrada, desgastada e esburacada. É uma das pontas do que conhecemos por “Parque Industrial da Abrunheira”. E dali se vê tudo! São dezenas de unidades industriais e armazéns de todo o tipo. Das Maçarocas ao IC 19, muita gente ali trabalha todos os dias.

Quando, pelo final dos cinquenta do século vinte, o Rafael que não era coxo, entrou pelo portão da novíssima Fábrica de Lixas e Colas Sincal, e uns poucos anos depois, chegados da pérola do Atlântico — Madeira, o pai do Virgílio ou o pai do Costa, entraram na, acabada de construir, Fábrica de Borracha Leacock Rosa, estavam longe de imaginar que sessenta anos depois, estas já não existiam e, em vez delas, outras quarenta, cinquenta, sessenta ou mais empresas, ocupavam os antigos espaços e todo o perímetro nascente da Abrunheira.

Genérico da primeira telenovela portuguesa, nos
estúdios da Edipim
Rente ao que foi a Átil do Gomes, consigo passo ligeiro pela do Thilo Krasmann, até olhar a placa de venda da velha Edipim. Ideia e construção do saudoso Thilo. Ouve-se o genérico da telenovela “Vila Faia”, os aplausos dos “parabéns” do Herman e, finalmente, o sucesso do “Conta-me como foi”. Tudo acaba, mas é sempre melhor quando acontece com dignidade.

Ainda antes das sete da matina, já ia alinhado com os muros, a nascente, da “Quinta Lavi”. Dali, sentia o agradável cheiro a pêssego, a maça ou a pera. Estavam do outro lado do muro, mas senti-os, os cheiros, mesmo junto a mim. Os dez anos de idade, não inventavam outra maneira de me distrair do medo. Era noite escura como breu e para a escola no Cacém tinha de ir. A Helena Monteiro não perdoava atrasos. A carreira “Eduardo Jorge”, na paragem da “Adreta”, me levava até ao comboio. À minha Mãe, doía-lhe ver-me sair de casa sozinho aquela hora, mas “dos fracos não reza a história” e os putos daquele tempo, tinham de ser fortes e bem cedo, como se pode ler:  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/10/estacao-de-sintra-o-cyntia-e-lambreta.html)

Por ali fui, pelas traseiras do “Leroy”, contornando o bem cuidado ajardinado até passar por debaixo do IC 19 com o intuito de mirar o “Chafariz da Charneca” que já não é Charneca e há de ser qualquer coisa entre a República da Coreia e a, merecida Raul Solnado. Podia estar melhor. Como a esperança fica sempre para a frente, acredito que ainda hei de ver aquele “monumento”, bem tratado, com o destaque merecido e, para fazer jus ao seu destino, a deitar água, porque agora está sequinho! Já lá vai o tempo em que a nascente da “Chancuda” lhe dava toda a água precisa. Muitas pançadas de água fresquinha do “Chafariz da Charneca”, as burras “Carocha”, mãe e filha, ali beberam como há uns anos contei no link já a seguir: https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/09/mobilidade-adiada-charneca-esquecida-e.html 
    
Esta “faladura” diz respeito à “Carocha-Filha”, mas a “Carocha-Mãe”, muito contaria e, decerto, corroboraria as façanhas encavalitadas “salvo-seja” porque, embora em correrias dadas a galope, nada tinha de cavalar, mesmo não parecendo, era só prima, uma burra, uma jumenta, mas animal inteligente. Assim que via o meu irmão, logo sabia o que havia de fazer. Ela estava sempre ao dispor das investidas do Vítor, qual D. Quixote que, por entre searas e ventanias, em pelo, “galopava” até a Carocha se cansar. Mais a sério, (naquele tempo o adjetivo ainda era masculino), todos os dias a Carocha-Mãe se deixava albardar para, devagarinho, com o meu irmão bem encaixado no lombo, levar as bilhas cheias de leite — bem entaladas em cada um dos lados da pança — que a minha Mãe tinha acabado de mungir das suas vaquinhas. Aí iam, desde o Casal Novo em Vale-de-Porcas, virado Vale-de-Flores, e que já não existe, até à Abrunheira, ao posto de receção do leite, ali, onde hoje, é o Café O Combatente. 

Chafariz da Charneca visto por mim . outubro 2019
Na volta, nem sempre os alforges iam vazios. O Vítor levava os recados que a minha Mãe lhe encomendara e a paragem no Faial servia de descanso. De regresso voltavam a passar pelo Chafariz da Charneca e, com o Casal do Ti Zé da Charneca à frente, viravam à esquerda para entrar no fundo da horta do Casal Novo, passando por cima da pequena ribeira.  

Ora, o Chafariz da Charneca, construído em 1781 a mando do Presidente do Senado da Câmara de Cintra, José Diniz de Oliveira, reinava há 4 anos a Rainha D. Maria I, está sempre na encruzilhada das nossas caminhadas, sejam apeadas ou encavalitadas nas burras Carochas, Mãe ou Filha. Neste dia também lá passei, antes de regressar, “a butes”, à Abrunheira, ainda pela fresquinha.



30 outubro de 2019
Silvestre Brandão Félix