Pela fresquinha, “por esses caminhos abaixo”, acordando o
Sol, muito se descobre… e recorda…
O Centro Social era para ter sido e não foi, mas a rua, que
estava mesmo à mão (e ao pé), não a deixamos fugir. Não havia Centro Social,
mas pelo menos havia rua.
Antes da ladeira, as Maçarocas, que na semeadura não me
lembro de as ver, as de milho, mas recordo-me bem do grão-de-bico. De pedras
era farta e, por isso e pela secura, a adequada seara do seco e rijo
grão-de-bico. E aí, pelas Maçarocas, que nunca consegui perceber, para além do
grão, também havia fartura de grilos. Era uma contínua cantoria de grilos e,
para entremear, também de cigarras.
Ao alto fui, e a um “passo” do Casal-da-Peça, fiquei. Não
desci, porque muito longa e desprotegida, no que toca a bermas, a caminhada
ficava. Que soberba panorâmica se topa de toda a Abrunheira em direção à Serra.
A luz do Sol, ainda rasteira, dá-lhe um brilho que só dali se pode apreciar.
Pela do Casal Novo em estrada velha, caminhei. Ensaibrada,
desgastada e esburacada. É uma das pontas do que conhecemos por “Parque
Industrial da Abrunheira”. E dali se vê tudo! São dezenas de unidades industriais
e armazéns de todo o tipo. Das Maçarocas ao IC 19, muita gente ali trabalha
todos os dias.
Quando, pelo final dos cinquenta do século vinte, o Rafael
que não era coxo, entrou pelo portão da novíssima Fábrica de Lixas e Colas Sincal,
e uns poucos anos depois, chegados da pérola do Atlântico — Madeira, o pai do
Virgílio ou o pai do Costa, entraram na, acabada de construir, Fábrica de Borracha
Leacock Rosa, estavam longe de imaginar que sessenta anos depois, estas já não
existiam e, em vez delas, outras quarenta, cinquenta, sessenta ou mais empresas,
ocupavam os antigos espaços e todo o perímetro nascente da Abrunheira.
Genérico da primeira telenovela portuguesa, nos estúdios da Edipim |
Ainda antes das sete da matina, já ia alinhado com os muros,
a nascente, da “Quinta Lavi”. Dali, sentia o agradável cheiro a pêssego, a maça
ou a pera. Estavam do outro lado do muro, mas senti-os, os cheiros, mesmo junto
a mim. Os dez anos de idade, não inventavam outra maneira de me distrair do
medo. Era noite escura como breu e para a escola no Cacém tinha de ir. A Helena
Monteiro não perdoava atrasos. A carreira “Eduardo Jorge”, na paragem da “Adreta”,
me levava até ao comboio. À minha Mãe, doía-lhe ver-me sair de casa sozinho aquela
hora, mas “dos fracos não reza a história” e os putos daquele tempo, tinham de
ser fortes e bem cedo, como se pode ler: (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/10/estacao-de-sintra-o-cyntia-e-lambreta.html)
Por ali fui, pelas traseiras do “Leroy”, contornando o bem
cuidado ajardinado até passar por debaixo do IC 19 com o intuito de mirar o “Chafariz
da Charneca” que já não é Charneca e há de ser qualquer coisa entre a República
da Coreia e a, merecida Raul Solnado. Podia estar melhor. Como a esperança fica
sempre para a frente, acredito que ainda hei de ver aquele “monumento”, bem
tratado, com o destaque merecido e, para fazer jus ao seu destino, a deitar
água, porque agora está sequinho! Já lá vai o tempo em que a nascente da “Chancuda”
lhe dava toda a água precisa. Muitas pançadas de água fresquinha do “Chafariz
da Charneca”, as burras “Carocha”, mãe e filha, ali beberam como há uns anos
contei no link já a seguir: https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/09/mobilidade-adiada-charneca-esquecida-e.html
Esta “faladura” diz respeito à “Carocha-Filha”, mas a “Carocha-Mãe”,
muito contaria e, decerto, corroboraria as façanhas encavalitadas “salvo-seja”
porque, embora em correrias dadas a galope, nada tinha de cavalar, mesmo não
parecendo, era só prima, uma burra, uma jumenta, mas animal inteligente. Assim
que via o meu irmão, logo sabia o que havia de fazer. Ela estava sempre ao
dispor das investidas do Vítor, qual D. Quixote que, por entre searas e ventanias,
em pelo, “galopava” até a Carocha se cansar. Mais a sério, (naquele tempo o
adjetivo ainda era masculino), todos os dias a Carocha-Mãe se deixava albardar
para, devagarinho, com o meu irmão bem encaixado no lombo, levar as bilhas cheias
de leite — bem entaladas em cada um dos lados da pança — que a minha Mãe tinha acabado
de mungir das suas vaquinhas. Aí iam, desde o Casal Novo em Vale-de-Porcas,
virado Vale-de-Flores, e que já não existe, até à Abrunheira, ao posto de
receção do leite, ali, onde hoje, é o Café O Combatente.
Chafariz da Charneca visto por mim . outubro 2019 |
Na volta, nem sempre
os alforges iam vazios. O Vítor levava os recados que a minha Mãe lhe
encomendara e a paragem no Faial servia de descanso. De regresso voltavam a
passar pelo Chafariz da Charneca e, com o Casal do Ti Zé da Charneca à frente,
viravam à esquerda para entrar no fundo da horta do Casal Novo, passando por
cima da pequena ribeira.
Ora, o Chafariz da Charneca, construído em 1781 a mando do
Presidente do Senado da Câmara de Cintra, José Diniz de Oliveira, reinava há 4
anos a Rainha D. Maria I, está sempre na encruzilhada das nossas caminhadas,
sejam apeadas ou encavalitadas nas burras Carochas, Mãe ou Filha. Neste dia
também lá passei, antes de regressar, “a butes”, à Abrunheira, ainda pela
fresquinha.
30 outubro de 2019
Silvestre Brandão Félix