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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O SPEED GONZALEZ E O MANEL A TIRAR UMA BICA...


Este fim-de-semana, estive a arrumar arquivo. Ou seja, aliviar de ficheiros e mesmo, pastas de arquivo, do PC para o disco externo e pen’s. A minha “velha” e muitas vezes, maltratada massa cinzenta, muita dificuldade teria, se eu tivesse a ousadia, de a levar a imaginar mudar de sítio, o equivalente, em folhas papel A4, álbuns de fotos e respetivas caixas de cartão. Como seria e quanto tempo demoraria.

Esta reflexão transporta-me no tempo…

Antes de abrir o café do Manel, só víamos televisão na “Sociedade”. Todos os dias, ao começo da noite, alguém da direção abria a porta, varria as beatas da noite anterior, alinhava os grandes bancos-corridos de madeira com o necessário corredor ao meio e, com alguma paciência e sapiência, ligava o aparelho de televisão.

Era um grande “caixote” colocado numa prateleira larga, no topo da empena poente e tinha uma imensidão de coisas lá dentro. Quando botava as coisas cá para “fora”, eu, nos meus 7 ou 8 anos, matutava como os tipos conseguiam pôr tudo lá dentro. A caixa era grande, mas caber lá tanta coisa, era obra! 

Estive lá muitas vezes aquela hora porque, até aos meus 10 anos, morávamos na atual Rua do Olival, entre a Quinta de Santo António e a Quinta do Olival. Era uma casinha antiga de traça saloia, com um grande quintal, meia-dúzia de figueiras, um grande cedro e dois grandes eucaliptos. Foi o sítio onde gostei mais de morar. 

Então, enquanto a minha mãe acabava de tratar dos animais, eu esperava-a na Sociedade. Era a hora daquelas séries antigas ou desenhos animados: Robim dos Bosques, o Último dos Moicanos, Gato Silvestre, Gato Félix, Speed Gonzalez, etc., etc. É claro que era preciso, primeiro, que a televisão fosse ligada. Quando recordo estes momentos, vejo sempre o Ti Jorge Farpela. Ele era alto, mas não tanto que tocasse na televisão. Puxava um banco, subia para cima e, assim, chegava ao aparelho. Lá ligava o interruptor, mas nunca dava à primeira. Era sempre uma carga de trabalhos. É preciso ver que estávamos no início da década de sessenta. Mas, jeitinho daqui, pancadinha dacolá, as válvulas aqueciam e lá “começava a jorrar a corrente elétrica” como se canalização de água se tratasse.

Depois do jantar, a Sociedade enchia-se de gente e de fumo de tabaco. Naquela idade, não eram muitas as vezes que tinha autorização de lá ir aquelas horas. Só quando, na qualidade de “pau-de-cabeleira” da Felicidade e do Alfredo. O que é certo é que uma parte considerável da Abrunheira daquela altura, incluindo já, algumas mulheres, despejava ali. Os donos das tabernas, no que respeitava aos homens, começaram por não achar graça à coisa e, lá mais para a frente, também tiveram que “abrir-os-cordões-à-bolsa” para comprarem aparelhos de televisão. Nos primeiros tempos, para além da televisão da Sociedade, só havia uma outra na Abrunheira. Era do Raposo, um abrunhense que morava ao lado do que é hoje, o café “Combatente”. Acho que o Raposo também era “Rádio Amador” e muito dado às “novas” tecnologias da época.

O Manel, quando abriu o “Café-Brasil”, para nós sempre o “Café-do-Manel”, já lá tinha o dito aparelho, bem alto, na parede do lado direito quando se entrava a porta. A primeira televisão, já era bem mais moderna que a velhinha da Sociedade. Para além disso, o pecúlio do — em boa-hora achado e aconselhado — sogro Ti Sabino, era muito mais “atestado” do que o dos sócios da Sociedade.

O Café do Manel passou então a ser a “plateia” preferida dos abrunhenses, para ver televisão. Com uma bica ou um garoto, ambos servidos num copinho de vidro sem asa, com as calmas do Manel, dava direito a assistir, a toda a programação ao longo do serão.

O Manel era único a tirar os cafés. A máquina era daquelas quase manuais; ele metia o pó de café — sempre muito devagar — dentro do recipiente da máquina com uma colherzinha, só para aquele efeito, depois pegava num calcador e, devagar, calcava o pó na medida exata. Só depois — passavam uns minutos — levava o manípulo à máquina e, com um jeito que só ele tinha, encaixava-o devidamente. Depois de bem medida a distância a que o seu corpo estava da máquina, puxava, de cima para baixo, um “braço” da máquina, que fazia pressão e provocava a saída do café. Ele manobrava o tal braço, para cima e para baixo — sempre devagar — até o café estar como queria. Era uma manobra complicada e demorada. Se alguém protestasse com a demora, tinha sempre resposta: — Se tens pressa, vai ao Cabaço! (ou ao Ramos, conforme a altura).

A partir de determinada hora, não era fácil arranjar uma cadeira para alguém se sentar. As cadeiras e as mesas eram grandes, pesadas e de madeira. As mesas tinham um tampo em mármore.

Pouco tempo depois, o Manel arranjou uma sala interior onde se jogava bilhar, laranjinha de mesa e matraquilhos. Na sala principal, havia sempre um ou dois tabuleiros de damas que, especialistas, ignorando o espetáculo da “televisão”, jogavam em silêncio. Das “damas”, arrisco nomes, mas por antecipação, peço já desculpa por algum engano ou esquecimento. Lembro-me, por exemplo; do Durães, do Xico Chamiço e do Caracinha. Havia mais, mas não consigo recordar-me quem eram. Na sala interior, nos matraquilhos, e considerando o pessoal mais velho, recordo: O Baptista, os meus primos Fernando e António (Pézinhos), Xico Cruz, Xico Pardal… e não consigo mais…

Aquela caixa, que penduravam em prateleiras altas e tinha a suas manhas para trabalhar em condições, começou a mudar a nossa vida.

Como podíamos imaginar que, passados quase 60 anos, tudo o que a televisão nos dava, poderia ser multiplicado muitos milhões de vezes em capacidade, e apresentado num pequeno “chip”, numa “pen” ou, vá lá, num vulgar telemóvel?

Silvestre Brandão Félix
8 de outubro de 2018
Gravura: Google