Há meio século, tudo tinha outra “cor-embaciada”.
No dia seguinte, a Ti Augusta completava mais um ano
de vida. Ia nos cinquenta e cinco. “Essa vida”, cheia de trabalho e sofrimento,
mas também de muitas alegrias, como fazia sempre questão de dizer. O incentivo
da minha Mãe foi decisivo para aceitar a “proposta” do Chico.
E, querendo, era para o dia seguinte, porque naquele 10 de
junho de 1969, como era tradição, estava o Terreiro do Paço cheio com uma gigantesca
parada de militares, comemorando o “célebre-dia-da-raça”.
Muitos — a propósito dos quais o Almirante e o “Professor
da oportunidade perdida” e da primavera chamada “esperança”, espetaram medalhas
no peito dos pais, das mães, das viúvas ou dos filhos e filhas — não puderam
responder à chamada, porque os desígnios do império os transformaram em heróis depois
de os levarem desta terrena vida. Quase todos os que responderam de viva voz
para receberem a medalha, os heróis vivos, foi, porque transportaram no corpo o
resultado das balas ou dos estilhaços que os haviam atingido.
Parece-me, agora, que tudo se passou noutra “encarnação”. O “Botas”,
demente terminal, ainda vivia. Só se “apagaria”, um ano depois, também num 27
de julho.
A hora da despedida - Ida para a Guerra - Imagem RTP |
Aquela Guerra Colonial, que ao tempo se chamava (baixinho
porque algum “bufo” podia ouvir) “Guerra do Ultramar”, estava ativa em
todas as frentes e, do Cais da Rocha Conde d’Óbidos e de Alcântara,
continuavam a zarpar “paquetes” das companhias: Colonial de Navegação e Nacional
de Navegação, carregados de tropa para combater os movimentos de libertação
nas franjas do império. As despedidas, comportavam o cais cheio de lenços
brancos acenando aos seus, até que o mastro mais alto desaparecesse no horizonte.
De todos os que partiam, e porque iam para a guerra, nem todos regressariam.
Ainda não tinha feito os quinze, mas lembro-me bem que por
aqueles primeiros dias de trabalho na STAR, no 10 da Rua do Alecrim, que
por ali ia no seguimento da boleia na lambreta do Chico até Oeiras, o comboio
esteve parado alguns minutos à frente do “Cais da Rocha”, e assisti,
embasbacado, a um daqueles tristes espetáculos. Naquele momento, impressionado,
pareceu-me não faltar muito tempo para eu próprio, poder ser protagonista de cena
idêntica.
O meu primo Chico, depois de se ter safado das cheias do “Cacheu”
e dos tiros nas emboscadas dos guerrilheiros do PAIGC, e ter tido a sorte de
desembarcar em Alcântara, na volta, voltou para a marcenaria onde já trabalhava
antes de “assentar-praça”.
Um dos clientes habituais onde ele se deslocava muitas vezes,
era a STAR. Numa dessas idas, o Sá Rodrigues, homem da contabilidade e
pessoal (ainda não tinham inventado a expressão-recursos humanos) da STAR
na Rua do Alecrim, seu bem conhecido, aceitou que ele, o Chico, levasse lá
o primo de catorze anos para preencher a vaga de “paquete” na secção dele. O
primo de 14 anos era eu e assim lá fui! Naquele 11 de junho de 1969 e depois das
perguntas e respostas, fiquei aprovado e comecei nesse mesmo dia a trabalhar e
a ver o mundo pela “janela do terceiro andar”.
Tenho uma relação péssima com datas, mas, “mil anos que viva”,
não me esquecerei daquele dia. Fez cinquenta de tempo contado em anos. O mesmo
tempo, assim contado, do primeiro salto na Lua.
Como um simples comentário ou recado pode ser tão importante
na vida duma pessoa. Se o Sá Rodrigues não se tivesse cruzado com o Chico
naquele dia, o meu percurso de vida teria, certamente, sido diferente.
Desde aqueles dias e pelos outros dias, semanas, meses e anos
seguintes, com o “trago” da dose de cafeína emborcada no Cyntia — antes
bem medida e tirada pelo Ti Rodolfo e mais tarde pelo Ti João — e depois
embalado no comboio até ao Rossio, lá ia à procura da experiência e do conhecimento
que me transformaram em homem, fosse na carruagem da “sueca” e “bisca-lambida”,
das “gordas do Diário de Notícias” ou de leitura em livro censurado e “forrado” por causa dos “mirones”, ou na de
bancos castanhos com os engravatados e “flausinas” com as bochechas cheirosas e “empoadas”.
Praça Duque da Terceira (Cais do Sodré) - Google |
Da “janela do terceiro andar”, via o bem e o mal. Com
a “janela” aberta à minha frente, escolhia o caminho. Umas vezes bem, outras
nem por isso, mas ouvia sempre um sopro atrás da orelha que me punha no certo.
O Cais do Sodré ensinava tudo. Mesmo que não quisesse, aprendia sempre
alguma coisa. Dos bitoques e imperiais do “Califórnia”, dos bás-bás do “Caneças”,
dos pastéis de nata da “Zarzuela”, das bicas do “Recife” ou da “Brasília”, dos
digestivos do “Brithis Bar”, das fresquinhas do “Atlântico, da loiça partida do
“Grego”, das vieirinhas do “Porto de Abrigo”, do frango no espeto do “Rio
Grande”, das sardinhas do “Carvoeiro”, das cabeças de peixe da “Tasca da
Ribeira”, das bifanas do “Escondidinho”, do SG gigante da “Inglesa” e dos
livros do Eduardo Olímpio.
Enfim! Sendo o ponto de partida do lado de cá da Serra, nas
bordas do “Das Sesmarias” e Abrunheira dita “Brasil” por lembrança do voo
escaqueirado protagonizado pelo Coutinho que era Bernardino e pelo Sacadura que
era Borrego, mais tinha era de aprender.
Desde a “janela do terceiro andar” via, ouvia e sentia
tudo. Dos amores nados e desfeitos, até às debandadas à frente da Pide/DGS e
seu “exército” de “bufos”, passando pelas angústias e ansiedades com a tropa e
uma ida certa e obrigada para a Guerra.
Como é que, alguns, ainda podem querer dar “colorido”
aquele tempo de há meio século?
Silvestre Brandão Félix
27 julho de 2019