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sexta-feira, 19 de novembro de 2021

ÁGUA-PÉ, A TABULETA E A CIÊNCIA DA PEDRA

 

— Eu é que não posso sair do meu sítio e deste tempo em que os nossos filhos atravessam os mares, muitas vezes navegados, para irem combater outros filhos de outras sofridas mães, noutras também abençoadas terras, porque gostava de ir ver esse fenómeno. Como é possível, nesse futuro do COVID,  andarem com a Abrunheira às costas dum lado para o outro?

— Juro que é verdade, amigo Rio das Sesmarias. Muitos anos lá para a frente, vai estar colocada a seguir ao cruzamento da “Charneca”, mas depois, no dia seguinte, quando eu vier de Mem Martins, a Abrunheira vai estar outra vez na curva da “Quinta Lavi”.  

— Oh! Coutinho que és Bernardino, lá que, nesse tempo que há de vir, queiram fazer as pazes com os Abrunheirenses ao ponto de lhe darem tamanha importância andando com eles ao colo, eu até admito, mas nesse caso, a mudarem a Terra de sítio, só vão complicar mais as coisas.

— Bom dia, Amigo Rio das Sesmarias e Bernardino que não és Coutinho, ando a ficar um bocado surdo, mas será que ouvi bem? Lá para a era do COVID, vão mudar o poiso da Abrunheira?

— Ouviste muito bem, J’aquim que és Artista! Nesses tempos, lá no futuro, em que tudo vai ser bué de complicado e demorado, em que não se vai poder fumar na taberna nem se ligará nem acreditará na minha “ciência-da-Pedra”, a tabuleta da Abrunheira vai andar dum lado para o outro enquanto o “diabo esfrega um olho”.

— A tabuleta? Mas qual tabuleta? É no “Alto da Bonita”? Sim, porque o cemitério é que é, a “quinta-das-tabuletas”.

— Lá estás tu, J’aquim que és Artista, a divagar, “por-dá-cá-aquela-palha”! Não é nada no cemitério, é cá em baixo...entre a Charneca e a esquina da Quinta Lavi!

— É pá, vossemecês  estão a baralhar-me...mas qual palha?

— Não é palha nenhuma, é só uma maneira de dizer...é que tu, J’aquim que és Artista, quando começas a contar estórias, nunca mais acabas e a gente até já as ouviu todas.

— Ora bolas, oh! Couinho que és Bernardino e eu que cheguei a pensar, mesmo sendo com esses anos todos para a frente, como o Rio das Sesmarias diz, para a era do COVID, fosse coisa para eles, os inteligentes, cumprirem algumas promessas aos Abrunheirenses como:

"Anúncio" de futuro (há 20 anos) quartel GNR 
Foto de Fernando Castelo
...Centro de Saúde, Centro de Dia e Creche, Quartel da GNR, Pavilhão Multiusos, Escola pública, pelo menos até ao 9º ano, legalização das AUGI’s, regularização da entrada principal da localidade (rotunda), continuação da Rua Humberto Delgado até à Capa Rota, ligação em condições ao Casal da Peça, reposição de carreiras diretas em autocarro para Sintra via Ranholas e São Pedro e desagregação da “União”, voltando à Freguesia de São Pedro de Penaferrim...

— Pára lá, oh! J’aquim que és Artista! Pára (com acento), porque daqui até aquele tempo
do COVID, muita água o nosso Amigo Rio das Sesmarias vai deixar correr e não me apetece voltar a ouvir mais uma vez, a mesma “lenga-lenga”. Só estávamos a falar da “Tabuleta” e da “água-pé” do Amigo Pena.

— Ora aí está uma conversa que me interessa. “Água-pé”! Tudo o que tenha a ver com “água”, é comigo. E não fosse eu, o maior e mais simpático Rio da Abrunheira e arredores.

— Oh! Amigo Rio das Sesmarias, mas a “água” que o Coutinho que é Bernardino estava a dizer, não é dessa que corre no teu leito. É da outra que tem “pinta” de vinho e embebeda que não é brincadeira e, no meu caso, fazendo jus à minha alcunha, dá-me cá uma caganeira que para me desenvencilhar dela, apanho sol ou CHUVA. Mais chuva, porque o verão do S. Martinho são só três dias e depois começa a chover.

— É verdade, meus amigos. Muita água vou deixar correr, antes que ma desviem... não sei para onde, mas que isso vai acontecer. Também já me avisaram sobre as enguias que sobem por mim acima até ao poço da nora na horta do Zé Silvestre. Vão desaparecer quando desviarem a água das minhas nascentes a montante.

— O meu sogro Caracol Velho, tem longas conversas de “espírito-santo-de-orelha” com o melro “Simão” que, lá de cima, vê muito melhor o que se passa cá por baixo, do que nós. Vai daí, ainda ontem me disse, que o melro lhe piou sobre esse tempo pestilento lá para a frente. Disse ele, que as águas do Rio das Sesmarias, vão encher muitos tanques que as pessoas vão construir nos quintais. Constroem uma casa, abrem um tanque e enchem de água. Para regar as hortas não vai ser, porque, diz ele, eles não as têm e botam-se lá dentro quando têm calor.

— Bom, mas vamos lá a ver oh! Rio das Sesmarias, tu que és maior que o tempo e hás de chegar à era do COVID, o que pensas de tudo isto, a tabuleta onde deve ficar?

— Olha lá, oh! Coutinho que és Bernardino, tantas coisas importantes como as que o J’aquim que é Artista à bocado lembrou, achas que me vou gastar e torvar a minha água, por causa da porra duma tabuleta? É certo que define a falta de carácter de algumas pessoas com poder, mas não vai ser isso que secará a minha água, nem vai “secar” a importância e mais valia dos Abrunhenses, deste e daquele tempo que há de vir, mesmo sendo um sítio “do lado de cá da Serra”.

Silvestre Brandão Félix

19 novembro de 2021

Foto: Fernando Castelo

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O LIXO, A MULHER E A POBREZA ENVERGONHADA

 

Rio das Sesmarias Junto à Ponte na Abrunheira
Pelos zambujeiros e oliveiras, abrunheiros e mulatas, cedros e choupos, caminhos e curvas que começam a ficar debruados de ricos carrascos porque de muita bolota lhe pesarão, e os silvados que, com a chegada das andorinhas, coloridos de amoras se hão de encher, que antes, mas mesmo muito antes, foi território do melro “Simão” e da melra “Micas” que, na idade do Caracol Velho, sua filha Judite e genro Coutinho que era Bernardino, voavam e controlavam a zona.

Agora, muitas gerações para a frente, lindos melros, melras e suas proles, lhes fazem honras e se apresentam em enchentes, quase bandos, chilreando desde que o Sol desponta nestas terras ao fundo do Caracol, do Peixoto, do João da Batata, do Azevino e da Arroteia.

Por ali, pela Gago Coutinho que é mesmo Coutinho em homenagem ao Bernardino da Judite, abeirei-me do nosso amigo Rio das Sesmarias —"bem-aventurado” confessor e adivinho da nossa Terra que, por estes dias, corre de (barriga) água cheia com pressa de chegar à Azenha do Ti Sebastião — para nos dizer as últimas parangonas do jornal da caserna.

Não disse, mas soprou-me que os caixotes do lixo andam muito remexidos.

— Remexidos?

Interroguei eu! Que quereria o meu amigo dizer? Eu só pensei, mas ele adivinhou a dúvida, e voltou a soprar-me ainda mais forte que mais parecia a volta da “nortada”

— Têm umas varetas com um gancho na ponta e remexem… remexem… até encontrarem alguma coisa que se coma.

— O quê, será que percebi bem?

E pela “nortada” insistiu

— Sim! Percebeste bem, sim! Andam à procura de comer. Naturalmente que sempre acabam por ir outras coisas que as pessoas atiram para o lixo, mas é a necessidade de encher a barriguinha, que os leva a procurar nos caixotes aquilo que não têm nas despensas.

Aí, certificando-me que não havia mais ninguém por perto, perguntei em voz alta:

— Oh! Meu amigo Rio das Sesmarias, partindo do princípio de que me entendes bem, diz-me: São sempre os mesmos? E quantos são?

— Alguns vêm sempre de manhã cedo e ao lusco-fusco, outros vêm às vezes e, há uma mulher também. Esta, muito vestida e quase toda tapada, é difícil ver-se-lhe o rosto.

— Uma mulher? Pois é Amigo Rio das Sesmarias, são tempos de pobreza e muita, é envergonhada.

— Juro, por esta água que há de chegar à costa do Estoril em São Pedro, que nem no tempo do Caracol Velho, do Simão e da Micas, havia assim tanta pobreza de comidinha.

— Tens razão Amigo, a pobreza era outra. Mesmo assim, para comida e outras coisas de primeira necessidade, hoje há alternativas aos caixotes do lixo. As famílias com estas carências podem contactar a Junta de Freguesia em São Pedro pelo telefone 219 105 810, em Sintra 219 100 390 ou mail:  acaosocial@uniaodasfreguesias-sintra.pt .

O meu Amigo Rio das Sesmarias, ficou confortável com esta dica e agora corre bem cheiinho direito à Azenha que já foi do Ti Sebastião (moleiro).

Silvestre Brandão Félix

26 de fevereiro de 2021    

domingo, 24 de janeiro de 2021

CHICO DA BELOURA, CALADINHO E A UNIÃO

 


Àquela hora, não era normal o Chico da Beloura estar ali, pensou e admirou-se o Ti J’aquim Artista que do servicinho à chuva, vinha. O sol ainda não se via por cima da casa do Silvestre Velho. É certo que ainda era janeiro, portanto nunca (o sol) subiria muito, mas, ainda assim, cedo marcava o batente lá de casa.

— Eh! Chico! Bom dia! Então, já mungiste o rebanho todo?

— Bom dia Ti J’aquim! Já! E por isso mesmo é que me encontra aqui a esta hora. Dei por falta de três ovelhas e, logo se fez dia, “desatei” à procura delas.

— Então e vieste logo por aqui? Ainda se te lembrasses de trazeres uns queijinhos frescos, mas assim, a seco?

— Vim direito do Casal da Beloura para aqui, indo o janeiro tão seco, podiam ter tido sede e vir ao Santo António, mas não! Por aqui não estão. Agora vou dar a volta pelos “Celões”, “Campo da Colónia” e pelo caminho até ao Linhô. Onde raio se terão metido.

— Oh! Chico, mas também podiam ter ido pelo caminho da Capa Rota até à Azenha do Ti Sebastião e Manique ou subindo pelas Maçarocas até ao Casal da Peça.

O sol de inverno, começava a despontar por cima da casa do Silvestre Velho. Nos últimos tempos, toda a gente percebia que alguma coisa não ia bem com o velhote. Não se deixava ver. A idade não perdoa e não demoraria muito a ir até ao “Alto-da-Bonita”.

À mesma hora, no lugar de cima, encostado à esquina da taberna do Ramos, lá estava o “observador” de nome Calado, mas que todos chamavam “Caladinho”, visto, raramente falar. Os seus sentidos mais apurados eram o ouvido e o olhar e havia quem dissesse que também o olfato, tal era o apuro com que lhe “cheirava” a fatiotas e gabardines cinzentas. Das poucas vezes que falava ou sussurrava com os colegas da fábrica, não parava de olhar em volta. Em jeito de aviso, dizia aos amigos — cuidado com o que dizem porque “as paredes têm ouvidos”.

Do lado do “Olival”, vindo da pedreira do Ti Miguel, aproximou-se o Coutinho que era Bernardino, que nunca entendeu a maior parte do discurso do Caladinho. Ia meter pela goela, um de três, tinto, mas antes, cumprimentou o amigo e perguntou-lhe pelas novidades.   

— Oh, Bernardino que não és Coutinho, novidades a bem dizer, não tenho. Com tudo censurado com o “lápis-azul”, é muito difícil haver novidades antes da distribuição da “folha-do-costume”.

— Mas oh, “Caladinho”, o “Rio-das-Sesmarias” disse-me, quando lá passei, que o Presidente da Junta ia mudar de sítio. Então isso não é uma novidade?

— Chiu!! (sussurra o “Caladinho”) Fala baixinho!! Tens de ter cuidado porque a “bufaria” não desarma e Caxias não fica assim tão longe. Sim! Eu sei dessa mudança, mas isso não é no nosso tempo.

— Não é agora? Então como é que o “Rio-das-Sesmarias” sabe?

— Sabe, porque ele, “O Rio-das-Sesmarias”, é eterno e ainda não para de “correr” em frente. É certo que vão querer dar cabo dele, vão querer roubar a água das suas nascentes, mas ele, como sabe o futuro, em cada “tempo” vai reagindo e contrariando essas maléficas intenções.

— Oh! “Caladinho”, se ele sabe o futuro, porque não diz ao Chico da Beloura, onde estão as ovelhas tresmalhadas?

— Coutinho que és Bernardino, não podes comparar a gestão do rebanho de ovelhas do Chico, com a importância do “apagamento” da Freguesia de S. Pedro de Penaferrim que, ainda assim, só vai acontecer lá muito mais para a frente. Antes disso, o “Botas” vai cair duma cadeira, vão inventar uma “primavera” que nunca acontecerá, os “bufos” e a Pide vão mudar de nome, mas continuarão perseguindo antifascistas, os “reservistas” vão trocar a cor do lápis, mas continuarão a censurar, e num “abril”, “depois-do-Adeus” e de “Grândola-Vila-Morena”, os “figurões” irão dentro e o povo sairá à rua em “liberdade”. Logo de seguida, a “Guerra-das-Áfricas” acabará e os soldados virão para casa.

— Oh! “Caladinho”, com tanta coisa, até fiquei engasgado! Como é que sabes tudo isso? Eu cá a mim, parece-me que é tudo bom!

— Não és só tu, Bernardino que não és Coutinho, que conversas com o nosso amigo “Rio-das-Sesmarias”.

— Está bem, pronto! Então, mas com essas coisas todas que disseste, para onde irá o Presidente da Junta de São Pedro de Penaferrim?

— Bom, depois de tudo aquilo e no caso de não se verificar a profecia que tantas vezes oiço; “a dois mil chegarás, de dois mil não passarás”, vai aparecer um novo “figurão” — sim, porque essas sementes de má índole, “rebentam” de vez em quando — que inventará, contra os interesses das populações e no meio de um “mandato”, uma fórmula matemática com régua e esquadro, para diminuir a quantidade de “freguesias”.

— Então, “Caladinho”, queres tu dizer que a nossa freguesia vai acabar?

— Oficialmente não, mas na prática, sim! O pior é que não vão perguntar nada a ninguém. Cozinham lá a coisa nas assembleias e nos executivos e o povo, “népia”! Nada lhes vai ser perguntado. Alguns, vão prometer reverter a situação logo seja possível, mas acho que depois, quando o povo lhes pedir explicações, não se vão lembrar dessas promessas e assobiarão para o lado.

— Bom, voltando ao nosso tempo, será que o Chico da Beloura já achou as ovelhas?

— Não sei, Coutinho que és Bernardino, mas se não as encontrou, vai encontrar. Por enquanto, ainda se consegue ser “Prior nesta freguesia”. A estória das ovelhas fui eu que inventei só para dar início ao escrito porque até agora e por mais algum tempo, “todos os caminhos vêm dar à Abrunheira”.

Mas que esta “União” não encaixa, lá isso não!

 

Abrunheira, 24 janeiro de 2021 (Dia de eleições presidenciais)

Silvestre Brandão Félix

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A BOLA, A SOCIEDADE ANTES DA URCA E OS FUNDADORES

Panorâmica da Abrunheira 

Aqui, também se jogava à bola. Pelo vale encaixado entre Santa Eufémia com a Cruz Alta e a colina do Casal da Peça com o Cabeço de Manique, bem vincado no leito do Rio das Sesmarias, quando engrossado era, pelas águas nascidas no “Penedo”, acima de Vale de Porcas; pela “Chancuda”, mesmo atrás do Chafariz da Charneca que a D. Maria, a primeira, abençoou; pela barrenta que nascia nos “Barros”, muito longe de se adivinhar a feitura de jornais e revistas que falam coisas e algumas verdades; pela enchida, até deitar por fora, Mina do Lavadouro que primeiro dava de beber a esse “Lavadouro”, primeira versão de “rede-social” cá no sítio que ainda não era “site” e, em cima, o poço da bica do Santo António, tudo paredes-meias com as Hortas do Ti Mendes dum lado e do Ti Manel da Virgínia, do outro e, lá mais à frente, vinda de cima, corre a nascida junto à Quinta do Anjinho que vem depressa e até teve honra de túnel sob o autoestrada, ao contrário da antiga e “assassinada” — porque os habitantes pouco contam e nem lhes foi perguntado o que queriam — rua da Abrunheira ligando esta, a Ranholas, por onde a minha Mãe me levou tantas vezes, para o Mercado de São Pedro e, outras, até à “Casa-da-Serra” na Tapada do Roma, onde, ao cimo da ladeira, a minha avó Cândida nos esperava enquanto a Ti Franquelina já aprontava o café que cheirava e sabia, como nunca mais, noutro lugar, encontrei.

A seguir, todas as regueiras se juntam ao Das Sesmarias a chegar aos “Quatro-Donos”, rente à “Arroteia” no fundo dos Celões que, seguindo muito tempo em anos contados, havia de ser morada de condóminos bem resguardados com o nome da “Beloura” que já não é do Chico.

Retomando a bola e indo ao ponto que me levou, hoje, a despejar letras, palavras, pontos e vírgulas por aqui afora, recuo a pouco tempo depois de finada a II Guerra Mundial, quando rolava e voava a bola de cabedal que ao ouvido soava “catechum”, autêntico luxo comparado com as bolas de muitas meias enfiadas umas nas outras e, nesse caso, ideais para jogar de pé descalço no largo da Quinta do Olival onde também se festejava a inauguração da luz elétrica na Abrunheira que, por isso, se chama “Beco da Saudade” ou no verde do Carrascal, antes do Caracol, porque lá havia carrascos com fartura. A de “catechum” era bem dura para ser rematada com botas que ainda não eram “chuteiras” com pitons, mas que os abrunheirenses do Clube de Futebol, nas solas, aplicavam umas travessas para eliminar a lisura e travar a escorregadela.

Os, “cinquenta” se foram e os “sessenta” chegaram. Na mesma cadencia que outros portugueses, vindos de outras bandas, se iam instalando nesta terra de abrunheiros e zambujeiros com fartura. O Jorge Farpela estava a deixar de defender os postes da baliza dos futebolistas da Abrunheira que, em boa verdade, se resumia a uns solteiros e casados e pouco mais, sendo, os últimos anos, jogados no campo de futebol da Colónia.

À parte da estória, convém explicar que esta designação de “Colónia”, não é de férias — neste início dos anos vinte do século vinte e um, pós troika e em plena invasão de mais um “corona-vírus” que há cem anos, um antepassado direto, batizado “pneumónica” ou “gripe-espanhola”, limpou o cebo a mais de 50 milhões de indivíduos — como podem pensar, os Abrunheirenses ou Abrunhenses com menos de 40 anos, mas sim, prisão.

Era assim o nome antigo que agora se chama, “Estabelecimento Prisional de Sintra”. Bem sei que, fazendo fé e acreditando no saber do Dicionário da Porto Editora, “estabelecimento”, pode ser uma “instituição”, como é o caso. Para mim, estabelecimento, será sempre uma mercearia, taberna, ou qualquer outra loja com montra e tudo. Aqui, neste “estabelecimento”, a montra até seria uma péssima ideia porque tudo o que o rodeia, está a cair aos bocados. Só visto, porque contado, ninguém acredita. Os prédios do bairro e todas as moradias onde habitam guardas prisionais, estão num estado de quase ruína e outras já há muito, caíram.

Bom, voltando ao Jorge Farpela. Com as botas já a pesarem-lhe, deixou-se ficar, e bem, pela colaboração na direção da “Sociedade”. Organizavam, ele e mais alguns, uns bailaricos com as imperdíveis atuações do Ti João Baleia, do jovem filho Augusto, do Adelino Baleia, do Ti Faneca  (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2011/03/um-corridinho.html) e um dos seus filhos. O Jorge Farpela e o meu tio Rafael, que tantas vezes por aqui tenho escrito a seu propósito, faziam a gestão da “Sociedade” à sua maneira.

Com a chegada da televisão, a “Sociedade” passou a ter trabalho todos os dias e a presença deles os dois e mais alguns que a memória me “roubou”, era assídua. Portanto, da bola, se encarregavam outros abrunheirenses.

Antes de continuar, embora já o tenha dito e escrito muitas vezes, é importante lembrar mais uma vez — Faço o possível por referir factos e pessoas verdadeiras, mas muito tempo contado em anos já por mim passaram, pelo que, o “arquivo” já não está nas melhores condições; ou as letras estão sumidas, ou não entendo bem a caligrafia, ou as pilhas dos neurónios estão gastas, enfim, são muitas as razões que me levam a manter um antigo litígio com a “lembradura” de nomes de pessoas e lugares, levando-me a fazer umas trocas, a esquecer-me e a inventar outras. Espero que me desculpem.

Feito o “relembro”, voltamos ao futebol. À frente da baliza dos abrunheirenses futebolistas, estava, e bem consolidado no lugar, o Zé Maria. Ele, jogador na posição de guarda-redes, mas também diretor, organizador, roupeiro, massagista e treinador. O Zé Maria, nos anos sessenta, foi realmente o grande impulsionador da criação da equipa de futebol da Abrunheira, naquela época, devidamente organizada e integrada no Grupo Desportivo da Abrunheira, como muito bem me lembrou o Zé Nascimento.

O Zé Maria, casado com a Dina, filha da Ti Maria (do Florindo) e, claro, do Ti Florindo. A Ti Maria do Florindo, de quem me recordo com muita saudade, era a “alma” do “Santo António”. Mau grado o desaparecimento precoce de alguns mais próximos, era uma mulher sempre com um sorriso nos lábios. O seu filho mais novo, Zé Manel Dionísio, é muito ativo aqui, nas redes sociais, onde nos cruzamos de vez em quando.

Voltando ao futebol e recuando aos anos cinquenta, é importante referir a chegada à Abrunheira de algumas famílias oriundas de outras regiões do país, designadamente da Beira Alta. É importante porque, mais tarde, os filhos dessas famílias, principalmente e de quem me lembro, os filhos do Alexandre Nascimento; David, António e o mais novo Zé e, do Zé da Cruz, o Francisco e o tio deste, o Martins, que vão ser decisivos para, em conjunto com o Zé Maria, o Carlos Jorge, filho mais velho da Deolinda e do Ti João Tirapicos, o João Balagueiras filho mais velho do Ti Balagueiras, guarda prisional da Colónia, O Baptista, que da mais alta “estrela” também desceu, e outros, desenvolverem e consolidarem o Grupo Desportivo da Abrunheira. A propósito, da mesma região beirã e na mesma altura, chegaria e assentaria morada na Abrunheira, o Zé “Celorico” e a mulher. O Ti Zé, era “artista” sapateiro e, durante muitos anos, exerceu a sua arte correspondendo à grande procura a que o Ti Jo’quim “Cagachuva”, não dava vencimento. O apelido “Celorico” assim seria, devido à sua origem de Celorico da Beira. Este casal não tinha filhos e pela segunda metade dos anos sessenta, fui encontrar o Ti Zé e com ele convivi alguns meses, na Fábrica de Plásticos Atil, onde tive o meu primeiro emprego durante cerca de seis meses.

O nosso campo de “casa” era o “pelado” da Colónia. Naquela época, a Colónia ainda não tinha bairro residencial. Só havia uma ou outra moradia, pelo que a maioria dos guardas morava na Abrunheira, mas também no Linhó e Ranholas. Na Abrunheira moravam muitos e, boa parte, acabaram por cá ficar e mais os seus descendentes. Deste grupo de Abrunheirenses, são alguns dos meus melhores amigos até hoje. Quero com isto dizer, que havia uma forte ligação da população da Abrunheira à Colónia, daí, o ser absolutamente natural a utilização deste campo de futebol.

Já nos anos sessenta e com o desenvolvimento industrial na zona, começaram a chegar cá outros futuros futebolistas vindos do Alentejo e da Madeira.

As fábricas começaram a aparecer em Mem Martins: A Adreta, a Resiquímica, a Comportel, a Messa, etc., etc., a Sincal e a Borracha Leacok, na Abrunheira.

Do Alentejo, devido às condições de vida adversas, muitas famílias inteiras trocaram o trabalho do campo por estas novas oportunidades e aqui se instalaram com os seus filhos. Passaram pela equipa de futebol, pelo menos, vários membros da família Lagarto que seguiram as pisadas do Gilberto, o Chico Cobecas e a entrar os “setenta” o Valentim, o Vicente, o Vítor “Negrete”, o Fernando e o Zé Marques talvez um pouco mais tarde, e outros.

Da Madeira, em virtude da construção da fábrica de borracha dum industrial madeirense — Leacok Rosa, Lda — que, por escassez de mão de obra no continente, de lá, da Madeira, trouxeram alguns especialistas e operários. Vieram com as famílias e com muitos filhos.

Da Madeira, também já pelos “setenta”, lembro-me do Virgílio (Jimmy), do Eleutério (autêntico craque), dos irmãos Sousa com o Bruno na baliza, do Costa e dos Pombos.
Que não se pense que os nascidos e criados na Abrunheira, não chutavam na bola. Todos, uns mais que outros, jogavam à bola. Até eu, o Rui, o Zé Fernando, os Pardais, o Julinho, o Vítor do eletricista e, principalmente o Mário. Ele era bom de bola e foi um grande entusiasta da secção desportiva da URCA, depois acompanhado pelo irmão Paulo.

Pelos últimos dias de 1974 e primeiros de 1975, muitas conversas se desenvolveram entre vários elementos do Grupo Desportivo, lembro-me bem do Chico Cruz e do António Nascimento, e do emergente Grupo Cultural. Muita força se fez para unir os dois grupos, de forma a não dispersar o esforço e a concentrar a capacidade de organização e de trabalho, numa única coletividade.  Foi assim que nasceu a URCA—UNIÃO RECREATIVA E CULTURAL DA ABRUNHEIRA a 3 janeiro de 1975.

Por esta altura já alguns craques jogavam pelos clubes a sério da zona; 1º de Dezembro, Mem Martins Sport Clube e, acho, até no Sintrense que na altura já militava na 2ª Divisão do Campeonato Nacional. Mais tarde, na passagem da década de setenta para oitenta, apareceu outra fornada de bons futebolistas. Por essa altura, a URCA teve uma equipa de futebol nos distritais.

Na verdade, a fundação desta nova coletividade, selou a UNIÃO dos abrunheirenses socialmente mais ativos.

São estes os fundadores da URCA. Onde andarão eles? Alguns, mais ligados ao futebol, conseguem encontrar-se e confraternizar, pelo menos uma vez por ano, mas… e os outros, os que não jogavam futebol, onde estão?

Há uns anos, garantiram-me e eu acreditei, que todo o acervo escrito de, pelo menos, duas décadas, desde a fundação, tinha desaparecido. Dezenas ou centenas de fotos, correspondência, livros de atas e outros documentos importantes da URCA e do projeto do Centro Social, ou seja, a história da coletividade e o legado dos fundadores, tinham sido “apagados”!

Esta época pandémica, completamente anacrónica, faz-nos refletir sobre a pouca valorização que atribuímos a coisas importantes da nossa vida. Só mais para a frente, damos conta disso.

O papel que tivemos naquele tempo, os desportistas e os mais dados à cultura e recreio, fundando e organizando a URCA e projetando e construindo os alicerces do Centro Social que, infelizmente, nunca avançou, foi muito importante, mas hoje, pouco ou nada resta!

Silvestre Brandão Félix
6 julho de 2020




sábado, 23 de novembro de 2019

UM PONTEIRO, S. MARTINHO E A ÁGUA-PÉ


Se eu fosse um ponteiro de relógio… a volta completa tinha dado… o Bernardino que não era Coutinho, no mesmo sentido e pelos mesmos caminhos, também, muitas voltas, deu.

Por esta altura do ano, com o suave aroma da “água-pé” do Pena, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2017/11/sao-martinho-e-agua-pe-do-pena.html) o nosso “Cientista-da-Pedra”, muitos S. Martinho’s comemorou. Dali, da “pedreira do Ti Miguel” — onde, exatamente, neste dezanove do XXI, existe um ótimo campo de jogos a nascente dum lindíssimo verde parque — o Bernardino que não era Coutinho, muito fiel ao ditado, “No São Martinho vai à adega e prova o vinho”, não provava o vinho, porque esse, já o emborcava o ano todo. Especialmente no dia de São Martinho, em vez de vinho, intervalava a labuta na “pedreira” e ia provar e bem beber, a afamada “água-pé” do Pena.

Rio das Sesmarias (Foto minha-5.11.2019)
Logo que, bem de manhã, passava pelo amigo e companheiro Rio das Sesmarias, nesta altura do ano, bem aviado estava de água das chuvas e das nascentes a montante, o motivo da conversa era a “água-pé” do Pena.

 Até antes disso, quando ao sair de casa e no mesmíssimo momento em que o melro “Simão” e a sua companheira “Micas”, (https://largodochafarizaosol.blogspot.com/2018/03/cagado-que-naquela-epoca-se-chamava.html)batismo feito a meias, pelo seu sogro Caracol Velho e filha Judite — chegavam ao poiso habitual dando-lhe os bons dias com o característico “pianço”  e desejando-lhe um ótimo dia de São Martinho, já aí, a última parte, era pura imaginação, mas a sede da “água-pé” era tanta, que até lhe soube mal o vinho que a Judite, misturando com pão duro que nem os cornos do carneiro Baltazar, transformou em “sopas de cavalo cansado”.

O Caracol Velho reivindicava a exclusividade da interação com os melros, mas sem o “velho” saber, o Coutinho que era Bernardino foi conseguindo meter-se naquela “conversa”. Depois, uma parte, o simpático casal piava como lhe apetecia, a outra parte, o Coutinho que era Bernardino, punha a sua singular imaginação a trabalhar e, do Simão e da Micas, passava a ouvir o que muito bem queria. Naquele dia, de São Martinho, achou que estavam sintonizados com a sede de “água-pé” que ele tinha.

Se eu fosse um “ponteiro de relógio”, às oito horas, tinha atravessado a Arroteia — que continua combinada com as letras do alfabeto e numerais simples — de nascente para poente até ao das Sesmarias, paredes-meias, ou melhor, Rio-meias com a Beloura, que não a do Chico, no tempo do Coutinho de era Bernardino. No sentido do “ponteiro”, lá está o início da rua que o homenageia; Rua Gago Coutinho! Como havia ele de saber que muito tempo contado em anos lá para a frente, alguém se havia de lembrar porque chamaram Brasil, à Abrunheira. Porque foi ali, por cima das “Pateiras”, que um dos Zambujeiros mais altos, serviu de rampa de lançamento para — querendo imitar o feito do Gago Coutinho e Sacadura Cabral voando até ao Brasil — aproveitando uma “rabanada” de vento, iniciarem o memorável voo. Só que, em vez de voarem, escaqueiraram-se os dois do chão.
  
Pois bem, seguindo o sentido do “ponteiro” e pela da Colónia acima, à moderníssima Urbanização das Sesmarias, cheguei. Muito ali calcorreou o Coutinho que era Bernardino dando voltas e mais voltas pela pedreira do “Ti Miguel” que ali, cheia de entulho, foi!

Rua das Sesmarias, subindo a partir do Rio (Foto minha - 5.11.2019)
Com a devida vénia ao Rio das Sesmarias por cima dele passei com a lembrança do Ti Joaquim da fruta e começando a subir a rua a que o Rio também deu o nome. Tantas tropeça-delas o Coutinho que era Bernardino, por ali deu. A ânsia de chegar à Menina Emília ou lá acima ao Faial, para molhar a garganta, atrapalhavam-lhe o andamento, mas, neste dia, do que falamos é da “água-pé” do Pena. Pois bem, subindo a rua, à esquerda o Cipriano no Serrado do Penedo e à direita, o beco para a casa do Pena. Era lá, naquele dia de São Martinho, que “morava” a melhor “água-pé” da Abrunheira, deste mundo e arredores.

Muitas voltas de relógio que nem ponteiro, se podem dar, pisando as mesmas pedras do abrunhense que tinha a “Ciência-da-Pedra” — O Coutinho que era Bernardino.


Silvestre Brandão Félix      
23 novembro de 2019

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

AS HORAS DO LUÍS, RELÓGIOS E OS NOSSOS BOMBEIROS


Com as tripas à mostra estava, acabadinho de ser esventrado, pelo habilidoso jeito ao canivete, dado pelo Luís, para que assim pudesse desfrutar das miudezas, com atraso, pela velhice, mas todas a mexer, não fosse o aparelho, um Tissot, com quase quarenta anos.

Explicava-me o Luís, possuído duma tal fascinação que, até a mim, puto de nove ou dez anos — sem nada perceber de rodas de balanço, cordas assim e assado, dentadas d’aqui, dentadas d’acolá — me entusiasmava para ver como é que a coisa chegava ao fim, quer dizer; o arranjo! Sim! Porque se estava na mão do Luís, era sinal que estava avariado. Pois, porque aquela máquina espetacular, tinha chegado ao Luís, porque se estava a atrasar meia-hora por dia e o dono até já queria substitui-lo por um mais moderno, de pulso. O Luís tratou de o convencer que não, que o velhinho, ainda ia durar muitos anos no bolso dele, bastava que se limpasse e ajustasse o que havia para ajustar. Ele se encarregava de o fazer!

Eu gostava de o ver destripar os relógios e a arranjá-los com aquelas ferramentas muito pequeninas. Naquele dia, explicou-me tudo à medida que ia mexendo no velho Tissot de bolso. O que é certo, é que no dia seguinte estava certinho. Foi todo limpinho e uma “dentada”, que ele me tinha mostrado, foi ajustada na justa e necessária medida.

Pelas duas janelas se via, ao longe, o cimo da torre da Pena e a Cruz Alta. Mais na encosta, Santa Eufémia que, de lá, com certeza também nos observava e, se fosse caso disso, nos corrigia o caminho porque, se ela falasse, muita história contaria. Algumas, consumadas a todos os primeiros dias de maio, olharia bem para os lados antes de o fazer, porque a bufaria por todo o lado andava escutando.

Mais perto, quase a nossos pés, o Rio das Sesmarias e a saudosa horta. É como se estivesse a olhar agora; o Rio tinha água que corria… corria… na horta os pêssegos rosa estavam quase maduros.

Era dali, das janelas ou da varanda, que o Silvestre Velho, antes, via o mesmo e as searas até à beira da Colónia, desde o Cerrado da Fonte até aos Celões.    

O Luís, para além de conhecer por dentro e por fora, as máquinas que dão horas, também sabia e sabe tudo sobre os bombeiros do concelho, principalmente dos de Sintra e, ainda duma forma muito especial, dos de São Pedro, não fosse de lá, que veio.

Quando me apanhava a jeito, tinha sempre novidades dos bombeiros. Que eu saiba, nunca foi bombeiro, mas sabia (e ainda saberá) a história das associações e, de São Pedro, até dos fundadores; do Tibúrcio e do Alfredo Esteves que não era Esteves.

Neste tempo, em que tudo pode girar à volta dum telemóvel na mão, mas mesmo tudo — podemos ter a nossa vida completa numa coisa destas que, por acaso, também serve de telefone — como é que ainda temos capacidade para recordar (os mais velhos), como era importante sentirmos um relógio preso por uma corrente à casa de um botão do colete que, por sua vez, se colocava no bolsinho, quase sempre do lado esquerdo?

São as “passadas” do tempo ou,

   Faz bem que tenhamos sempre presente a importância relativa das nossas coisas ou, daquelas, de que nos servimos. Para o Luís, naquela altura, era muito importante saber dos relógios e de tudo o que se passava nos bombeiros da nossa terra. É claro que as prioridades dele hoje são outras, mas, ainda assim, continuará a avaliar, quanto importante era a “bomba-braçal” que o Tibúrcio e o Alfredo Esteves (que não era Esteves) conseguiram adquirir para o Corpo de Bombeiros de São Pedro, naqueles idos do princípio do século XX, ainda em regime monárquico da Casa de Bragança —

são as nossas “passadas” pelo tempo?

Silvestre Brandão Félix
12 dezembro de 2018
Foto: Relógio de Sol (Google)

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CHUVA, RIO DAS SESMARIAS E AS BRUXAS


— Finalmente, sinto que estou a dar uso à minha capacidade de corrente e, a aplicar as minhas competências nos limites das margens. Como me sinto “cheio” com esta abençoada água. Que chova! Que chova!

Desabafa assim o nosso amigo Rio-das-Sesmarias que, ansioso andava, pela pouca chuva caída até este último dia de outubro.

Recuando meio século, ou mais, durante este dia, já por lá teriam passado alguns dos seus amigos e parceiros.

O Artista-Sapateiro seria o primeiro porque, perna mais comprida, assente fora da enxerga e aí, que lá vai também a mais curta, depois as duas e rapidamente direitinhas à margem nas traseiras da casa, para aliviar o resultado do trabalho noturno, da máquina digestiva. Era uma visita diária obrigatória, embora “malcheirosa”, mas ainda assim, necessária ao começo de mais um dia, a maior parte do tempo sentado no tripé rústico que, num dia já distante, contado em, para mais de 30 anos, ele tinha resolvido construir. Foi há tanto tempo que a “maria-faladeira”, parceira de casa e de pouco mais, ainda não era velha.

 Já de dia, também passaria por ele, o nosso amigo e conhecido Coutinho que era Bernardino. A primeira vez ainda iria leve, pois, as sopas de cavalo-cansado que a Caracoleta lhe facultou ao levanto, não lhe pesavam assim tanto. Ao contrário do Caga-à-Chuva, que empurrado era, pela desesperada vontade de “obrar”, o Cientista-da-Pedra ia ter com os seus companheiros de vida e de ciência. Era uma motivação diferente. É claro que, com o correr do dia, a leveza da manhã, ia-se transformando no habitual “so-li-dó”, de idas à menina Emília, ao Faial ou Ramos, emborcar “ciganas” ou “charretes”, conforme a hora.

O Rio das Sesmarias tinha sempre água corrente com fartura, mas agora, o sítio do Rio está lá, mas água é que… nem por isso. Ontem e hoje correu alguma, a medo, mas se não chover mais, amanhã praticamente já não haverá água.

Será bruxedo?

Silvestre Brandão Félix
31 outubro de 2018
Gravura: Google

terça-feira, 6 de março de 2018

CÁGADO QUE NAQUELA ÉPOCA SE CHAMAVA MANEL

Cágado Mediterrânico

Aquele dia de quaresma, nascia com borriceira “molha-parvos”, e molha os outros também, digo eu. Não se tinha ficado, a borriceira, pela Serra. Desceu à Abrunheira, até ao lugar-de-baixo e mesmo ao “Caracol”.

Que o diga o Coutinho que era Bernardino que, ainda “lusco-fusco”, esticou a cabeça pelo postigo da porta da cozinha, como sempre fazia ao levantar-se, e logo sentiu o borriço na cara que, em boa hora, substituiu a ida matinal à bacia de esmalte, para, com dois dedos da mão direita, chapinhar na água gelada, diligentemente colocada pela Judite antes de se deitar, e esfregar, devagarinho, os dois olhos que a terra lhe havia de comer.    

Na certa, seria mais um dia igual aos outros daquele mês, fazendo jus ao ditado que muito se dizia e se ouvia: “Março, marçagão, de manhã inverno e à tarde, verão!”. Ou seja, ele, o dia, acordava molhado, mas, a pouco-e-pouco, ia abrindo e, ainda antes do almoço, estava limpo e solarengo.

A primeira quinzena de março anunciava a primavera e, já no dia anterior, a Judite lhe tinha dito, ter visto andorinhas a esvoaçar pelo lado do Peixoto, que é onde têm ninhos na varanda. O mesmo teria sido reparado pelo patriarca “Simão”, de negro brilhante e lindo bico alaranjado, e pela sua companheira, matriarca “Micas”, de negro menos brilhante quase castanho, e também bonito bico, mas amarelo, que, ao contrário do que os dois fazem durante o outono e inverno, desde há uns dias, já não passam a noite no cedro do muro, onde apanham os primeiros raios do sol nascente.

Quando as andorinhas chegam, eles, os dois inseparáveis, costumam passar mais tempo no cedro do lado do “zambujeiro” onde, durante duas ou três semanas, trabalham que nem uns desalmados, reabilitando o ninho do ano anterior nos “carrascóides” mais altos para, quando chegar a altura, ela lá pôr os ovinhos cinzentos quase azuis, donde, uns tempos depois, sairão os filhotes que, crescidos, aumentarão a família residente fixa de três casais ou, então, novos melros ao mundo darão, para outras paragens. Os outros dois casais, correspondem a duas fêmeas filhas do Simão e da Micas que, juntando os trapinhos com dois outros machos de fora, regressaram ao acolhimento dos seus pais e por aí têm feito a vida.

Tem dias que aparecem outros, mas, só vêm de visita. Sabe o Caracol, que, de entre esses outros casais, vem com alguma frequência, um também diferente. O macho, tem o bico com um tom alaranjado mais carregado, quase vermelho e, a fêmea, do seu lado direito a seguir ao bico bem amarelo, trás um conjunto de penas ou penugem, quase brancas. São inconfundíveis. Acha o Caracol que eles também o conhecem bem e que, se o Simão e a Micas não estivessem cá, eles ficariam por aí a fazer-lhe companhia.  

De todas estas andanças, é sabedor o Caracol Velho que, em virtude da constante presença a três, desde que por ali apareceram aquelas lindas criaturas, os olhares e rotinas ocorrem como se fossem bons entendedores da mesma espécie.

As dobradiças já andam um bocado ferrugentas e, as botas, já lhe pesam muito, de maneira que, boa parte do dia, de cachimbada sempre ativa e fumegante, senta-se no banco à entrada do alpendre, bem abrigado da aragem corrente e com o sol a bater-lhe só nos pés e nas pernas, reparando e apreciando tudo o que se passa com a “passarada”. Foi ele que batizou o casal de melros que, adora. Na brincadeira disse à filha Judite e, ela, nunca mais deixou de falar do Simão e da Micas, como se da casa fizessem parte.

Quando estão à vista, vão reagindo conforme ele se senta ou se levanta, anda ou está parado, acende o cachimbo, levanta o sacho ou o poisa. Todos os movimentos têm uma resposta. Mais interação têm os dois, mas o Simão primeiro, quando o Caracol ou mesmo a Judite, metem pevides, cevada, milho ou trigo num vaso de barro que está, para o efeito, encostado ao muro antes do portão de baixo. Ele, o Simão, deixa passar um bocado para dar tempo a que se afastem e esvoaça logo direto ao vaso. Ela, a Micas, também voa na mesma direção, mas só vai ao vaso quando o Simão, sai. Raramente ficam os dois juntos no vaso. Curiosamente, nenhum dos outros melros, que alguns serão filhos, filhas ou netos do Simão e da Micas, vão ao vaso, mesmo que lá tenha alguma coisa.

Eles, naquele dia logo cedo, ainda antes do Caracol aparecer, observaram o Bernardino que não é Coutinho que, alheio a toda esta vivência, depois de ter esfregado os olhos e emborcado as sopas de “cavalo-cansado” que a Judite lhe preparou, saiu porta fora, coberto com o oleado para não se molhar e rumou ao lugar de acima como era costume, para laborar mais um dia na abertura da vala que havia de transportar a água para as casas dos abrunhenses. O Simão e a Micas, como acontece quase todos os dias, miraram os passos pesados do marido da Judite, até aos zambujeiros acima das “Pateiras”. Há uns meses que o Coutinho que era Bernardino andava nisto e, o grande buraco, ainda estava agora a sair do Largo do Chafariz e a chegar ao João de Leião. Muita terra e muita pedra aqueles fortes braços removeram, desde que, de picareta ao alto, se decidiu por este trabalho.

Perto do almoço, paredes-meias com o Rio-das-Sesmarias antes de passar debaixo da ponte da Colónia, na horta, gozando os prazeres da água quase corrente que, alcatruzes abaixo e acima à custa das rodadas que a “Carocha” dava à volta do poço, o Manel, que naquela época era cágado, bem sossegado na beira do tanque, esperançado em apanhar uns minutos de sol por cima da borriceira da manhã, levantou devagarinho a cabeça, para olhar bem nos vivos olhos dos melros mais bonitos que alguma vez tinha conhecido.

E as bonitas aves, ele e ela, beberam água no tanque e, o Manel, que naquela época era cágado, observou, seguro e contente a presença daqueles dois. Junto a ele, no tanque, vinha este casal de melros, pintassilgos, rolas, pitinhas e até pardais de telhado. Ele gostava!

Quando o puto, “atirado” a hortelão lá ia, ele, simulava mergulhar, mas, conhecendo-lhe a bondade da companhia, não o fazia e até se deixava pegar e olhava nos olhos do puto que se ria a “bandeiras-despregadas”.

O Manel, que naquela época era cágado, gostava do puto e sabia do Caracol e da sua filha Judite. Sabia, que lá, no fundo do lugar-de-baixo onde eles moravam, a paz reinava no coração deles. Até o Coutinho que era Bernardino, rude e bruto nos seus modos, era do bem. Outros eram do mal e o cágado Manel, sabia.

Ele, o Cágado, que naquele tempo se chamava Manel, não via televisão, não lia jornais nem revistas, não tinha internet e, por incrível que pareça, nem Facebook, mas sabia tudo. A Abrunheira não tinha segredos para ele, mas como? Sendo o Manel, naquela época, cágado, como poderia saber das promessas não cumpridas e das mentiras constantemente metidas?

Oh inteligência! Então e o que iam fazer os melros, os pintassilgos e a outra pardalada, todos os dias, à beira do tanque da horta?

Silvestre Brandão Félix
6 de março 2018
Foto: Cágado Mediterrânico (Google)
(Escrito ficcionado. Alguns nomes e locais reais, outros não)
   

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A ÁGUA CORRIA LOUCA, A CONDESSA E AS ENGUIAS

«— Pelos “Reis”, a “corrente” do meu leito, corria louca por esses vales abaixo. Água com fartura que, muitas vezes, até saltava fora como se restos de alguma indigestão fosse. Mas, não! Muito bem-disposto me sentia nesses tempos. Todos vinham ter comigo; a forte nascente da “Chancuda”, dos “Barros” e da “Charneca”. Engrossadas as “correntes” com as chuvas da época, quando me tocavam e no meu largo “leito” entravam, davam razão de ser à minha existência.

— Rio Das Sesmarias, me batizaram os abrunheirense, possivelmente lá pelos tempos do Rei Fernando, o primeiro de nome e o último da dinastia fundadora deste, que era “reino”, e já, “à beira-mar plantado”, corria o último quartel do século XIV. Sim, porque o segundo Fernando, havia de muito andar por estas bandas por ser consorte da Maria II e, por isso, regente à sua morte, enquanto o Pedro, que havia de ser quinto e muito depressa. No Ramalhão lá está a sua estátua. É responsável pela plantação de muita árvore na Serra e pela construção do Palácio da Pena e do mesmo parque. Havia também de construir, lá, o Chalé da sua segunda esposa; a Condessa D’Edla que, coitada, a rotunda organizadora de andantes fumarentos, lhe haviam de dar o seu nome. Que infelizes são, os inteligentes que nada sabem.

— Água com fartura e, toda a vida junto a mim, se compunha, crescendo com vigor para atingir o auge a meados de março, começo da primavera. Aí, mantinha a minha zona de influência com humidade suficiente para tudo ir crescendo e tomando cor.
  
— Pelos “Reis”, contra a “corrente”, começavam a subir as enguias que, passando pelo cano da horta, chegavam ao poço, cada vez em maior quantidade.

— A “mina” do Santo António, nestes meses, chegava à altura da porta e corria com mais força para os tanques que, assim, depressa renovavam a lavagem e voltava a chegar, outra vez, até mim, que, pelo leito abaixo, a tempo de apanhar a confluência da “regueira” do “Anjinho” e, pelos “Quatro-Donos” e “Arroteia”, depressa na Capa-Rota e Manique, estava.»

Assim, era, o Rio das Sesmarias! Todo o ano com água. As nascentes debitavam-lhe o precioso líquido e mantinham “corrente” no leito. Quando chovia, enchia e transbordava, mantendo-se cheio durante muitos dias.

Agora… agora alguma água corre quando chove muito. É preciso mesmo chover muito. Ao fim do dia seguinte, a água desaparece.

Por estes “reis”, choveu e matei as saudades de ver o Rio das Sesmarias com água corrente. Foi só um dia.

Toda a gente tem conhecimento deste crime. Sim! Porque se a água não chega aqui, é porque vai para qualquer outro lado… ou não?

Silvestre Brandão Félix
15 janeiro de 2018
Foto: Condessa D'Edla (Blogue riodasmaças) (Google)

terça-feira, 28 de novembro de 2017

DESTE LADO DA SERRA, A INSEGURANÇA E OS SONHOS DO CABOUQUEIRO

“Não podia levar à paciência!” O Coutinho que era Bernardino estava destroçado. Sabia que era descuido seu, mas, que diabo, toda a gente o conhecia, porque haviam de lhe pregar esta partida? Sim, ele ainda acreditava tratar-se duma brincadeira, sem graça nenhuma, mas brincadeira.

Infelizmente não era! Passou-se uma semana inteira e nada de escopro nem de marretinha. Duas das mais importantes ferramentas que, levavam, o Bernardino que não era Coutinho, a poder dizer a “todos os ventos” que era “Cabouqueiro” e, por via disso, sabia e tinha a “Ciência da Pedra!”.

Naquele sábado, tinha saído da pedreira pelas onze da manhã. Tinha na ideia voltar assim que tivesse a “girafa” com tintol, para acompanhar a mastigação, engolir e digerir o almoço que a Judite Caracol(eta) lhe tinha metido na sacola, antes de sair de casa.

Desceu ao Amigo Rio das Sesmarias, trocaram meia dúzia de sons a que outros chamavam, “meias-palavras”, e que tinham a ver com o fraco caudal de água corrente, mesmo que na noite anterior tivesse chovido bastante.

Subiu o caminho do Cipriano e, em frente ao “gaveto” do Abílio, parou e cismou… vou ao Faial/Osvaldo ou ao Álvaro, para a esquerda ou para a direita?

— Que raio… onde é que eu já ouvi isto? Ainda não bebi nada e já estou bêbado? (disse em voz alta)

— Não, porra! (continuou em voz alta) Bêbado, não estou! E a estória da esquerda ou direita, não tem nada a ver com aquilo que o “outro” não gosta que se diga. É só, se vou para um lado ou para o outro!

Depois das cismas todas, decidiu-se a ir ao Álvaro, ou seja, para o lado direito.

Tudo bem refletido e pensado, só que, devia ter arrumado as ferramentas na caixa e fechado o cadeado, e não o fez. Nada que, já não tenha acontecido muitas outras vezes, mas naquele dia, não sabia explicar, a consciência estava-lhe pesadona.

Moral da estória… Quando voltou à pedreira, a meio da tarde e com o bandulho cheio de “ciganas”, agarrando com as duas mãos a “girafa” que devia ter acompanhado a almoçarada da Judite, cambaleando e com o pensamento completamente toldado pela quantidade de tintol a fermentar, mesmo assim, deu logo por falta das duas mais preciosas ferramentas, do conjunto das mais de vinte peças que habitualmente usava na sua arte de “cabouqueiro”.

Ai que, deste e daquele, daqui del-rei e daquel’outro, e filho deste e daquela, enfim, impropérios que lhe saiam da boca para fora, para compensar a caladura que era, quando a secura vencia a força do álcool.

Em completo delírio, não parava de dizer que ia chamar a GNR porque brincadeiras destas não se faziam.

E o das “Sesmarias” perguntava:

— Mas qual GNR? Não há aqui nada disso!

— Há, sim senhor! Eu posso estar bêbado e, mesmo que não estivesse, para o efeito, tanto faz, porque não sei uma letra do tamanho dum comboio, mas estou a ver o novo quartel da GNR na Abrunheira. (dizia o Coutinho que era Bernardino)

Delirava e com os olhos muito abertos, repetia sem parar, que estava em 2001, já depois do “não passarás”, e que, do lado de cima da regueira do terreno do forno do João de Leião, estava lá o quartel da GNR da Abrunheira.

Preocupado estava o Amigo Rio das Sesmarias, mas, também já de outras vezes assim viu o Bernardino que não era Coutinho, tinha premonições a muito tempo de distância, quase sempre, otimistas em demasia.

Passou-lhe água do seu leito pelo rosto várias vezes e, dali a duas horas, o Cabouqueiro lá se conseguiu levantar. Bocejou uma ou duas vezes, espreguiçou-se e, agradecendo a ajuda do Amigo Rio das Sesmarias, voltou à pedreira para arrumar o alforge e rumar a casa.

Mais duma semana depois, com a luz da madrugada, levantou-se e sentou-se na beira da cama, lembrando-se do sonho que acabara de ter.

«Um GNR e uma GNR, saíam do quartel da Abrunheira, ali abaixo do Cabaço, no mesmo sítio onde ele já o tinha visto mais vezes em sonhos, levando ela, a GNR, o que também achou muito estranho, se calhar era por ser sonho, onde já se viu; uma mulher guarda da GNR, mas, lembrava-se ele, a mulher levava um saco que parecia de sarapilheira, debaixo do braço.

Assim, como milagre de “pozinhos-perlim-pim-pim”, continuou a ver os dois, mas já estavam na pedreira. O Bernardino que não era Coutinho viu tudo como se fosse real; a GNR abriu o saco e, de lá de dentro, tirou a sua marretinha e o seu escopro e colocou-os em cima da caixa das ferramentas, que estava no sítio do costume.»

O Cabouqueiro, esfregou muito os olhos e abriu-os bem. Era um sonho e a GNR da Abrunheira tinha resolvido o desaparecimento das ferramentas, mas, entretanto, a verdade é que já era um novo dia.

Mais tarde, chegando como de costume à pedreira, a primeira coisa que viu, foram as ferramentas desaparecidas que, poisadas estavam, no sítio onde, no sonho, elas ficaram.

Silvestre Brandão Félix
28 novembro de 2017
Foto: De Fernando Castelo (retalhosdesintra.blogspot) – Anúncio de construção de quartel da GNR na Abrunheira-2001.