sábado, 19 de março de 2011

O NOSSO CINEMA PARAÍSO…

Chegou sem avisar numa carrinha com duas portas atrás e, no meu olhar de criança, muito grande, grande demais. Entrou no lugar e logo fez duas ou três voltas de cima para baixo e de baixo para cima, e, de altifalante ligado…. “Atenção! Atenção! hoje… às nove e meia da noite… cinema nesta localidade…o espectacular filme – TARSAN! O HOMEM MACACO. Não percam, logo, pelas nove e meia da noite, na Sociedade da Abrunheira, Tarsannn!!! O Homem Macaco”… e repetia, repetia…., metendo, de vez em quando um separador musical, que, quase sempre, era um “pasodoble” ou coisa parecida.

A meio do percurso, o andamento da carrinha já arregimentou um cortejo de putalhada que não é brincadeira. Depois de duas voltas à Abrunheira, que naquele tempo eram muito rápidas, o “homem do cinema” dirigiu-se para a Sociedade, e, por artes mágicas, começou a tirar aquelas tralhas todas da carrinha. Como é que aquilo lá cabe tudo? Bom, com certeza é por ser do cinema, se calhar também tem magia. Tirou tudo nas calmas, eu e os outros putos, vimos e até ajudamos. Dentro da “Sociedade”, montou a torre de projecção do lado do palanque e virada para a parede do lado da porta e do bufete onde iria pendurar um grande lençol branco. Depois começou a rebobinar as fitas, e eu, na minha lógica de puto, perguntei cá para mim – então, mas porque é que o homem não fez isto em casa? E as bobinas eram mesmo muito grandes, e demoraram a rebobinar e o homem dava à manivela sempre… sempre… e já transpira e o suor pinga… pinga, e ele continua …continua, e a bobina grande vai ficando cada vez mais pequena e a pequena cada vez maior, e o homem dá à manivela e o suor pinga, e as bobinas roçam nas hastes laterais e fazem aquele barulho irritante de metal contra metal, e rodam… rodam… rodam, até que uma está muito grande e a ponta final da fita salta da outra bobina, que continua a rodar sozinha, e o “homem do cinema” deixou de dar à manivela devagar… devagar… e tudo parou. Estava concluída a primeira parte do trabalho do “homem do cinema”.

Lá pelas oito e meia, o pessoal começou a chegar, e eu, naquele dia, que não me lembro há quanto tempo contado em anos foi, era puto e consegui ir ao cinema. Provavelmente fiz de pau-de-cabeleira da minha Irmã que nessa altura namorava o Alfredo. Sei que estava lá muito cedo e vi tudo. As pessoas a chegar e o “homem do cinema” com um livro daqueles que parecem rifas, e como ainda não havia IVA e a ASAE ainda não tinha sido inventada, cobrava e cobrava e cobrava… não me lembro quanto, dava metade da senha e a pessoa tinha direito a sentar-se naqueles bancos de madeira corridos para ver o “TARSAN – O HOMEM MACACO”.

A Sociedade, onde se passava tudo o que de mais importante acontecia na Abrunheira, encheu depressa e, às nove e meia, o “homem do cinema” apagou a lâmpada muito grande que de gambiarra ia até ele. As figuras começaram a mexer-se no lençol branco estendido na parede. Primeiro, a propaganda do regime com aquele grande selo no princípio – Visado pela comissão nacional de censura. Este intróito incluía sempre discursos do Américo Tomás, paradas militares, visitas e inaugurações, passagens com grandes feitos “ultramarinos”, atividades da mocidade portuguesa, algumas “virtudes” do ditador, enfim, tudo boas notícias… e, só depois, vinha o “Homem Macaco”. E o outro homem, o do cinema, dava à manivela… dava… dava, e as imagens iam andando à velocidade da manivela e o homem ia narrando as cenas, «…. E agora, muita atenção…. O TARSAN vai beijar a JEAN….,» e, quando a cena se aproxima do auge, breves instantes de “suspence” para aumentar o gosto, e, num gesto bem sabido por tantas vezes já ter sido executado, o “homem do cinema” pára a manivela. Neste preciso momento, a plateia desata num barulho infernal em misto de alegria e admiração, sendo que, no meio, também os há com pudor, falso ou verdadeiro, não interessa. O “Homem do cinema”, quando viu que chegava de alegria, recomeça a dar à manivela e as cenas sucedem-se e, como de narrador precisava a cena – “Agora reparem bem, o Tarsan vai lançar-se duma árvore para a outra e a macaca vai atrás dele, e agora ele cai no lago….e… e….” e por aí fora, só se calando quando apareceu o lençol todo branco.

O “Homem do cinema” acendeu outra vez aquela grande, mas mesmo muito grande lâmpada que de gambiarra vinha até ele. Quando foi este tempo, fez-se silêncio de morte na Sociedade, era como se tivesse acabado o mundo, por fora estava tudo muito iluminado com aquela grande lâmpada mas, por dentro, as pessoas ficaram nas trevas. Durante noventa minutos de tempo contado, todos tinham subido às nuvens, tinham conseguido fantasiar em doce, todo o amargo que a vida lhes dá e, por isso, queriam mais, mais qualquer coisa, só não queriam regressar à vida de verdade, as pessoas queriam viver de faz de conta porque a vida vivida e toda a que iam viver no tempo que faltava, era verdade, e a verdade, quase sempre era dura, muito dura.

Depois daqueles momentos de negação da realidade, os cinéfilos abrunhenses, lá começam a sair da Sociedade em direção a suas casas. Eu ainda fiquei para trás com o assentimento da minha irmã que aproveitou para namorar mais um bocado. Entretanto, o “Homem do cinema” desmontou rapidamente a torre de projecção, tirou as bobinas e levou-as para a carrinha muito grande. E eu, que pronto já estava para me perguntar outra vez porque razão o “homem do cinema” não rebobinava as fitas, quando, num momento de lógica assumida conclui que, tal como aconteceu quando depois de almoço aqui chegou, ia deixar o trabalho de rebobinar para a Terra onde amanhã fosse mostrar o “Tarsan Homem Macaco” dando à manivela e parando na altura do beijo, qual cinema paraíso.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

P.S. «O Rui lembrou-me que na “Sociedade”, para além de televisão, (uma das duas existentes na Abrunheira durante bastante tempo, a outra era do Raposo que morava na Avenida dos Combatentes, nome atual, ao lado do café “O Combatente”) também se via cinema mudo. Aí está, embora um pouco ficcionada, uma das sessões a que eu assisti. Muitas outras aconteceram, primeiro mudas com ou sem narração, e depois, em versão moderna com som e a cores.»

Silvestre Félix

quarta-feira, 16 de março de 2011

BOMBEIROS DE SÃO PEDRO

O Jornal da Região, edição de Sintra, que hoje saiu para a rua, trás chamada à primeira página, a entrevista com o Comandante Pedro Ernesto dos Bombeiros de São Pedro, a propósito da inauguração do novo quartel, que pode ser lida nas páginas interiores.


(CLICAR NA PÁGINA PARA LER)

Silvestre Félix

(Linkado do próprio site do JR)

terça-feira, 15 de março de 2011

NO LUSCO-FUSCO ABRUNHENSE

E a mim não me escapavam as notícias que saíam daquele rádio de plástico de cor bege que descansava na mesa da cozinha com a antena bem esticadinha para o teto. As sílabas mais difíceis eram soletradas devagar mas já conseguia ler bem o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro

(Pergunta o inteligente) Na taberna? Mas os putos….

Sim, eu sei… mas o Ti Álvaro deixava-me ler “O século” durante o dia.

Elas, as notícias, estavam lá, podiam não estar todas porque os homens do lápis azul cortavam muitas, principalmente as que falavam do “Estado Português da Índia” que já não era, porque o Nehru, uns dias antes do Natal, tinha expulsado os militares portugueses de Nagar-Aveli, Goa, Damão e Diu. Também riscavam e cortavam todos os telegramas e telexes sobre a Guerra que tinha começado em Angola e nunca deixavam escrever sobre os nossos tropas que iam em navios para lá. Mas eu lia as notícias da Guerra do Vietname que era com os Americanos e os homens do lápis azul não se importavam.

Oh Mãe… quando o Vitor for p’a tropa já não há guerra, pois não?

Ai Filho, Deus queira que não, ai… valha-me Deus, o que te havias de lembrar.

Oh Mãe, quando eu for p’a tropa já não há guerra em Angola pois não?

Oh Filho… falta muito tempo contado em anos para ires para a tropa.

Mãe, eu não gosto da tropa.

Filho, não digas isso, fala baixinho… «diz a minha Mãe olhando à volta muito aflita, porque naquela época salazarenta até as paredes tinham ouvidos.»

À hora da última ordenha…

(que digo assim só para que neste tempo se entenda, porque em todas as vacarias da Abrunheira se dizia “mungir” e “mungidela”)

…e da última refeição de manjedoura bem cheia de palha, feno e ração demolhada com “talinhos” de alfarroba, o meu destino ficava em caminho e no banco corrido da “sociedade” conseguia ver as imagens na caixinha da televisão que o Jorge Farpela ligava à mesma hora que o Ti Américo, a mulher Ausenda, ou o Zé da Natália, abriam o “posto do leite” no sítio onde, no tempo de agora, tem um café que se chama “O Combatente”. Todos se encaminhavam, durante uma hora de tempo contado, para o “posto do leite”, levando o precioso líquido para o “grémio”. No dia seguinte, muito cedo, os úberes das vacas lá voltavam a fazer pressão nas tetas apressando a mungidela da manhã.

(E dizia o inteligente) – Vaca, úbere, tetas… mas que raio de linguagem… daqui a cinquenta de tempo contado em anos, tudo isto tem outro significado. A Abrunheira é terra pacífica e os abrunhenses estão todos de bem com a nação (por enquanto. Digo eu que sou inteligente e não pio o que sei a ninguém) mas é bom não arriscar, deixando que a “mostarda” lhes chegue ao nariz.

Na “sociedade” via, e lia, os desenhos animados. As legendas passavam depressa e eu corria atrás sem me distrair: O “Perna-longa” o “Gato Félix” e o “Gato Silvestre”, o “Bip-Bip”, o “Speed-Gonzalez”, etc., eram alguns dos heróis.

No lusco-fusco abrunhense e os postes da luz já acesos. De baixo para cima em direção ao Chafariz, a luz do interior da taberna do Ti Álvaro era amarela. Sem som, como se de mimos falássemos, mexiam os braços com copos na mão. De dois ou de três, os copos eram sempre cheios de vinho e depressa se despejavam naquelas gargantas sedentas.

Oh Filho! Espreita só, não entres!

E eu espreitava e via e não ouvia!

Na Abrunheira, os copos de dois ou de três, envenenavam a alma. As passadas trôpegas avançavam num trilho irregular e, pela noite dentro, não traziam a boa-nova, o carinho, o bom trato.

Durante o dia, eu lia o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro e não havia notícia que me escapasse. Mesmo as que não estavam escritas ou haviam sido riscadas a lápis azul, eu, as conseguia adivinhar …, sem que o “inteligente” desse por isso…

Silvestre Félix

quarta-feira, 9 de março de 2011

POR ESSES CAMINHOS ACIMA…

Naquela época, “Por esses caminhos acima” chegávamos ao Linhó, aos Celões, a Ranholas e, mais perto e a direito, à Colónia. Hoje, só conseguimos chegar à Colónia ou, como se diz no papel, Estabelecimento Prisional de Sintra. E lá, muito tempo passado com anos contados em quatro paredes muito apertadas pela sociedade madrasta. Os homens feitos neste tempo enviesado e ausente de valores criados pela sua mão. Incapazes de fazer a curva do sucesso socialmente aceite.

Oh filho! Vê lá, tem cuidado, porque eles andam sempre por aí.

É verdade Mãe, eles andam sempre aí, mas não é só “por esses caminhos acima”, eles estão por todo o lado, nos sítios onde menos esperamos, aí estão eles.

Na maior parte das vezes estão ao pé de nós e não os vemos, tem ocasiões que até dizem que são nossos amigos e depois de contarmos dias, meses, anos se for preciso, olhamos duas vezes seguidas, «com olhos de ver…» sim, porque muitas vezes olhamos e não estamos a ver, e assim, «com olhos de ver», conseguimos descortinar que não são eles mas sim os outros, aqueles que a minha Mãe sempre me avisava:

Cuidado filho, não acredites sempre à primeira, tens de esperar o teu tempo, não vás de repente “por esses caminhos acima”.

O tempo vai sendo contado e muita água vai correndo pelo Rio das Sesmarias…. sempre a correr…. até quando não chove, ela, a água, corre…. corre, pelo Rio das Sesmarias, e, já no verão da vida, consigo também ver, «com olhos de ver», o contrário. É como se fosse um espelho ou como se conseguíssemos olhar para dentro de nós. Eu agora quero sempre olhar «com olhos de ver». A verdade dos sentimentos é tão firme e forte, como o leito do Rio das Sesmarias depois de assoreado para se lhe tirar a sujidade e as areias que mantinham a estrada principal da Abrunheira transitável. Ainda que só por lá passassem as carroças, os carros de bois e, uma vez por ano, a máquina debulhadora dos cereais produzidos pelas searas do meu Avô Silvestre (Velho).

O Sapateiro de Manique também tirava areia para marcar a eira que o seu rebanho de ovelhas, à custa de muita pisadela, ia fazer no Serrado da Fonte. E o bacalhau cozido com batatas que a minha Avó Gertrudes se encarregava de dispor para os comensais… e o Sapateiro de Manique, naquele ano e todos os anos antes e todos os anos depois… Oh patroa, o que é que pôs no bacalhau? Está cá um pitéu! Deite lá mais uma postinha… E, no Rio das Sesmarias, na linha de partida “por esses caminhos acima”, os princípios e os sentimentos só valem se forem como o seu leito: Profundo e limpo!

Assim conseguimos ser mais felizes e acreditar que podemos ir “Por esses caminhos acima”, mesmo que tenhamos de contornar os obstáculos da vida.

Silvestre Félix

domingo, 6 de março de 2011

UM CORRIDINHO?

E o Ti Faneca toca, toca… e o pé bate, bate… e o cigarro no canto da boca, arde, arde… e os pares dançam, dançam, dançam…. até que, o Rafael Coxo, faz sinal ao Ti Faneca, a concertina pára.… o Rafael Coxo sobe ao palanque, e diz, aplicando toda a sua sapiência: "Alto e para o baile! Os Cavalheiros fazem favor de levarem as Damas ao bufete!". E o Ti Faneca volta a por a concertina a jeito e lá começa a tocar, a tocar… e o pé a bater, a bater… e tudo volta ao mesmo, só os Cavalheiros é que não acharam graça à “lembradura” do Rafael Coxo. A maior parte nem consegue disfarçar. Alguns, se pudessem, largavam já a Dama e punham-se a mexer. Ele é Mestre nestas surpresas e, por isso, quem se quer agarrar à “febra” tem de saber, ou calcular, qual é a moda em que o Rafael Coxo manda as Damas ao bufete.

Para a maioria dos Cavalheiros, cinco tostões é dinheiro, e uma gasosa ou uma laranjada é o bastante para lhe levarem o que sobrou para o fim-de-semana, e nem sempre a Dama o merece. Mas regra é regra e não se pode ficar mal à frente do pessoal. O cigarro do Ti Faneca está a chegar ao fim, quase lhe queima os lábios que habituados já estão destas queimadelas, e é o tempo para a moda chegar ao fim. O cigarro é como se fosse uma ampulheta, mede o tempo da tocadela assim como o bater do pé mede o compasso da moda.


Os pares desfazem-se, os Cavalheiros regressam ao seu sítio do lado da porta e em frente ao balcão do bufete, por detrás dos dois bancos corridos que estão ali exactamente para marcar o terreno. As Damas vão para o assento ao lado da sua Mãe, ou de quem está encarregada de controlar com quem a Dama dança… sim, porque essa coisa de ir ao baile tem muito que se lhe diga. Os assentos das Damas e suas acompanhantes são os conhecidos bancos corridos de madeira, dispostos em volta do recinto de dança.

Os Cavalheiros que têm tostões de sobra bebem o seu copo, olham as Damas, ensaiam sinais conhecidos ou piscadelas de olho, e um mais afoito e a atirar para o marialva barato, grita: "Oh Ti Faneca toque uma devagarinho!", e o Ti Faneca, que destes pedidos está ele farto de ouvir, e também porque tinha tanto de malandreco como de cabelo em falta na cabeça, põe a mão em jeito de funil na orelha, e responde bem alto para o Cavalheiro atrevido: "O quê ?? um corridinho ?? É p’ra já!" E antes que o interlocutor consiga reagir, já se ouvem os primeiros acordes dum corridinho do Algarve, daqueles mesmo muito rápidos.

E o Ti Faneca com a sua concertina às costas, pedalando a sua bicicleta, corre, corre… estrada acima, corre, corre…estrada a baixo, Linhó, Albarraque, Manique de Cima e Manique de Baixo, Mem Martins, Casais de Mem Martins, Ranholas, Lourel, Várzea de Sintra, Ribeira de Sintra e… até onde o chamam para tocar uma moda devagarinho ou um corridinho do Algarve….

São ambos figuras relevantes da nossa Abrunheira. O Ti Faneca era um Artista e Bom Homem conhecido em todo o Concelho de Sintra, Mafra e Cascais e deve ter morrido nos finais da década de 60 princípio de 70.

O Ti Rafael meu tio, era o "animador de serviço". Grande entusiasta da vida associativa da nossa Terra. Era da sua responsabilidade a realização dos bailes, enterro do bacalhau no Carnaval, e tudo o que era diversão. Quando havia uma festa, um baile, lá estava o "Rafael Coxo". Morreu no princípio da década de 80. O «Coxo» do "Ti Rafael" era alcunha e usada com todo o carinho do mundo, porque felizmente o "Ti Rafael" não era deficiente motor.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 1 de março de 2011

URCA – O INSUCESSO DO CENTRO SOCIAL

No princípio, e estando as negociações com o proprietário da “quinta” a correr muito bem, todos pensávamos ser possível, com umas pequenas obras nas instalações já existentes ou fazendo de novo, pôr a funcionar um posto médico até final do ano de 1975. Seria um primeiro passo para a abertura duma extensão do Centro de Saúde de Sintra um pouco mais tarde.

Achávamos ser urgente o posto médico e até mais fácil de avançar do que um infantário e creche. Foram feitas várias diligências em conjunto com a Comissão de Moradores e Câmara Municipal de Sintra junto da direção do Centro de Saúde e Ministério da Saúde. Chegaram a vir cá elementos da Direção do Centro de Saúde e, a certa altura, tudo parecia bem encaminhado para a Abrunheira vir a ter uma extensão do Centro de Saúde, beneficiando do equipamento toda a zona sul da freguesia de São Pedro.

Pois bem, numa penada tudo andou para trás. A situação da propriedade ainda indefinida, o fato de não ser possível concretizar nenhuma aquisição por parte do Ministério da Saúde nem sequer formalizar um contrato de arrendamento das instalações a ocupar, veio a inviabilizar, pela raiz, qualquer hipótese de instalar tão importante melhoramento na Abrunheira. Os impedimentos alegados viriam a manter-se por muito tempo.

Foi uma grande machadada no projeto do Centro Social. A questão do posto médico aliada à dificuldade de andar para a frente com o infantário e creche enfraqueceu-nos as intenções. As malhas da burocracia cumpriam a sua missão, os mangas-de-alpaca recuperavam a sua influência e o seu poder e o nosso vigor revolucionário recuava para a estrita área de atuação da URCA, ou seja, recreio, desporto e cultura.

Para a época, era muito importante que o projeto do Centro Social tivesse vingado. Essa realidade teria, com certeza, contribuído para uma melhoria significativa da qualidade de vida dos abrunhenses ao longo destes trinta e cinco anos. Se assim tivesse acontecido, hoje, estaríamos no limiar de outro patamar de desenvolvimento.

E assim foi, e é, até hoje! O comboio passou, não o apanhamos e agora não sabemos quando voltará a passar.

Silvestre Félix

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (2ª PARTE)

As vacas no seu remanso pastam ou remoem, sim… remoem, estes animais são “ruminantes” têm um sistema digestivo diferente da maioria dos outros mamíferos, e, o remoer, é mastigar depois do alimento ser engolido, ou seja, vai a um compartimento do sistema digestivo e volta para cima outra vez, e aí, é mastigado ou, como popularmente se diz, remoído.

Bom… mas o que eu queria mesmo dizer é que, outra maneira de passar o período do pastoreio, demorando muito tempo contado em horas e às vezes dias, era tentar apanhar grilos e cigarras. Localizada a toca, pela chinfrineira do cantante, apanhava-se um “fenacho” (caule de feno seco) e enfiava-se pela toca tentando tocar no grilo ou cigarra, e eles, se isso acontecesse, rapidamente saiam da toca mesmo sabendo que corriam os riscos todos. Mas alguns destes bichinhos, também os há mais espertos que outros, tinham as tocas curvas, e aí, a coisa complicava-se.., por falar em grilos e cigarras, há muito tempo que na Abrunheira não ouço esta sinfonia, as cigarras então, de dia ou de noite nunca se calavam.

E as rãs? No rio das Sesmarias ou nos charcos, também coaxavam sem parar. E os morcegos à noite? Os morcegos de volta dos postes da luz à noite caçando os insectos, e o Julinho… com a cana na direcção do céu muito estrelado assim como se fosse sempre Agosto. Ele ia ao sebo que o Pai (o Zé da Natália) tinha para o calçado, besuntava a cana do meio para cima e, depois, naquela “lengalenga” chata, mas que o Julinho não interrompia e não deixava que ninguém o perturbasse na missão de céu estrelado e olhar esbugalhado, como sendo a tarefa mais importante do mundo… “morcego, morcego, anda à cana que tem sebo”… e no serão de Agosto, repetia, repetia… e lá estava o Julinho sempre naquilo.

Aliás, o Julinho era amigo dos mistérios magnéticos e eléctricos naquele tempo de escola primária, de imaginação primária, de tudo primário. Fomos por algum tempo colegas de carteira, carteira daquelas peças únicas com tinteiros à frente cheios de tinta para sujarmos os dedos de tinta e pintarmos a bata daquela tinta que devia servir só para as canetas de tinta permanente que nos obrigavam a utilizar em tempo moderno já de esferográfica. Ali nos sentávamos todos os dias lado a lado. O Julinho, de quando em vez, quando eu estava mais distraído, juntava uma ponta da sua bata, aquelas batas aos quadradinhos azuis, juntava dizia eu, uma ponta da bata dele à minha, e, num sussurro altamente misterioso, dizia; “… está a fazer contato …, está a fazer contato”… no dia seguinte e no outro e no outro e ainda no outro, sempre o mesmo contato, até que eu deixei de me assustar com o contato. Voltando ao mamífero com asas, não tenho memória que alguma vez algum morcego tenha pousado na cana com sebo.

Quando ia com o gado para o monte, só tinha medo das cobras, e havia muitas, se calhar também acabaram. Quando sentia alguma cobra desviava-me o mais possível, embora reconheça que algumas eram bonitas, vi algumas muito bonitas, mas que fossem para bem longe. E os lagartos? Lagartões é que eram, daqueles verdes bem grandes. Quem não tinha, e com certeza ainda não tem medo nenhum das cobras e dos lagartos, é o meu primo Fernando. Lembro-me de ele levar um lagartão verde para a porta do baile na “Sociedade”. Estava muita gente como sempre acontecia quando havia baile, e ele trouxe o lagartão com um cordel como se fosse trela, e começaram a dar aguardente ao lagartão. Não me lembro do fim da história do lagarto bêbedo, mas não deve ter sido agradável.

Muitas vezes, a caminho do monte com as vacas, cruzava-me com o rebanho de ovelhas do meu Tio João. Naquela época lembro-me de cinco rebanhos grandes na Abrunheira, alguns com mais de cem animais. O do meu Tio João, do meu Tio António e do Chico, marido da Maria Augusta, o do Ti Veríssimo, o do “Espanhol” que viria a ser sogro do António “Calmeirão” e do Ti Rafael Miranda. Não gostava de me cruzar com as ovelhas porque as nossas vacas não se davam lá muito bem com elas e demoravam muito tempo até que passassem todas. Gostava e passava muito tempo a ver o meu Tio João a tratar delas no redil. Fosse a mungir, fosse a arranjar-lhes as unhas, a tratar dos borregos, etc., etc. Houve um ano em que a minha Mãe me deixou criar uma borreguinha que ficou órfã. É verdade, criamo-la em nossa casa a biberão, como se fosse um cão ou um gato. Andava atrás de mim para todo o lado e foi assim até ficar ovelha adulta, aí teve de regressar ao rebanho do meu Tio João. Chorei porque não queria, mas tinha de ser. A minha ovelha rapidamente se adaptou ao rebanho, e quando me via ou à minha Mãe, fazia um pequeno desvio abanando o pequeno rabo, ajeitava-se para lhe fazermos uma pequena festa, e voltava toda contente para o seu rebanho.

Na casa do olival, a maior festa era na época dos figos. O quintal da casa transforma-se em albergue infantil. Nesta altura de verão, servindo as figueiras de poleiro, e a pança a abarrotar de figos de capa-rota e beiços gretados do leite derramado, recuperávamos as oficinas de carrinhos de arame. O Zé Fernando, grande especialista, o Fernando Pedroso, o Zé Augusto, o Filomeno Caravaca, o Rui, quando a Mãe lhe dava soltura, também levava jeito. Eu fornecia os arames. Todos os dias, depois de minha mãe desatar os fardos de palha e feno para dar às vacas, lá estava eu atento a poupar-lhe o trabalho e, com a justificação habitual, lá levava os arames para a nossa oficina. Os carrinhos mais simples faziam-se num arame inteiro com um eixo aí de 30 centímetros e duas rodas (feitas com o arame) nas extremidades. Depois, uma cana, aí entre um metro e trinta e metro e cinquenta, conforme a altura do condutor, que uma das pontas encaixava no eixo explicado antes. Na outra ponta da cana, era aplicado um guiador feito também com arame e, de lado, também tinha a manete de mudanças. A condução era feita com a cana inclinada de forma que as rodas cumprissem a sua função.

E assim se percorriam os caminhos da Abrunheira, ora para baixo, ora para cima, e o tempo contado em horas… em dias… meses… em anos… e os Pais e as Mães e os “Putos da minha Terra”.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

URCA – E A SUA MATRIZ CULTURAL

Depois daquele período inicial da URCA, inigualável na forma e no contudo, com entusiasmo desmedido e vontade de querer fazer sempre mais, entendendo ser a forma de se recuperar o tempo perdido, houve duas fases muito marcantes na vida da coletividade e da Abrunheira: A apresentação da obra de Miguel Barbosa “O Palheiro” pelo GITU, com direção, encenação, cenografia e tudo o mais necessário de Gil Matias, estreado em 1979, e o encontro de Grupos Corais Alentejanos, salvo erro, em 1983, organizado pelo Grupo Coral Alentejano da URCA.

Para entender alguns acontecimentos é necessário contextualizá-los. Nos finais da década de 70 e princípios da de 80, cerca de 60% da população da Abrunheira era de origem alentejana. As razões sociológicas desta movimentação de famílias inteiras do interior para o litoral são do conhecimento geral, a que não é alheia a procura de melhores condições de vida com a industrialização da nossa região. Para laborar nas fábricas que iam aqui nascendo como cogumelos, era necessária mão-de-obra e, com a vinda dos primeiros no início da década de sessenta, logo outros foram chamados até que a Abrunheira mudou, até na maneira de falar. Dizia-se, na altura, que a Vila alentejana do Alvito se tinha transferido para a Abrunheira. Naturalmente que, dizendo isso se pecava pelo exagero, hoje, no início da segunda década do século XXI, há alturas do ano em que a Abrunheira se transfere para Alvito. Ou seja, estas duas Terras enriqueceram-se mutuamente.

Voltando ao Encontro de Grupos Corais Alentejanos de 1983, eu na altura não estava em Portugal e por isso não assisti a este, só aos posteriores, mas pelos relatos que li e ouvi e pelas fotos, foi, pela quantidade e qualidade de Grupos presentes, um acontecimento impar na história cultural da nossa Terra.

O êxito da apresentação de “O Palheiro” foi, acima de tudo, uma aposta arrojada do Gil Matias. A experiência dos componentes do GITU era “autodidata” e, mesmo assim, havia necessidade de recrutar muitos mais elementos. Cada reunião, cada ensaio, eram autênticas lições sobre a arte de representar. Gil Matias foi encenador, diretor, professor, Pai, irmão e sei lá mais o quê. Mais de metade do ano de 1978 foi necessário para dar corpo ao espectáculo. A peça é grande e a criação das personagens muito trabalhosa. Não foram poucas as vezes que tudo esteve quase a parar mas, com a nossa vontade e com a coragem e sabedoria do Gil Matias, lá conseguimos chegar ao dia do ensaio geral. Os nervos eram muitos na estreia. Sentados na plateia, estavam “olheiros” importantes e a população da Abrunheira em peso.

Fomos selecionados e concorremos ao Festival de Teatro Amador do Concelho de Sintra em 1979 e ficamos nos primeiros lugares. Lembro-me de termos representado a peça, para além das duas vezes na URCA, em várias locais dos Concelhos de Sintra, Cascais, Oeiras e Mafra. Esteve em cena todo o ano de 1979 e parte de 1980 e foi o grande sucesso do GITU. Era a consagração da motivação cultural da nossa coletividade e da nossa Terra. O Gil Matias continuou a colaborar com a URCA durante mais algum tempo, dando lugar depois a outras pessoas.

Miguel Barbosa, que recentemente doou ao Museu de História Natural de Sintra o seu espólio arqueológico recolhido ao longo de mais de quarenta anos de que fazem parte peças e fósseis únicos no mundo, é autor de uma vasta obra literária nas várias especialidades, a saber: Mais de trinta títulos de poesia editados em português, Italiano, Francês e Inglês; cinco novelas em Portugal e nos Estados Unidos; oito contos em português; mais de uma dezena de romances policiais com o pseudómino de Rusty Brown e três romances com o pseudómino de J. Penha Brava e participação em mais de cinquenta revistas literárias em Portugal, Brasil, Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra, etc., etc.. A sua biografia preenche muitas páginas com referências a todos os cantos do mundo e, bem lá no meio, referindo-se à peça “O Palheiro” e aos grupos que a representaram: «“O Palheiro” foi representado pelos… (vários grupos) e pelo GRUPO DE INTERVENÇÃO TEATRAL DA URCA (ABRUNHEIRA), SINTRA».

Também esta circunstância é motivo do nosso orgulho!

Silvestre Félix

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (1ª PARTE)

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto. Naquela época, quase todos os rapazes como eu, contados em tempo de idade nos 7,8,9 ou 10 anos, tinham algumas obrigações domésticas que passavam, invariavelmente, pelos cuidados ou acompanhamento dos animais da casa. Não proso de cães e gatos que de estimação ou companhia já o eram há 50 contados em anos de tempo, mas, das vacas, ovelhas ou cabras, que de estimação também seriam mas de serventia essencial no sustento da barriga e no mealheiro acolchoado. Na mesma onda e garantia de subsistência, era carinhosamente passado pela engorda o porco engraçado e inteligente que, ao engano, lá caminhava para o cadafalso traiçoeiro e tornado no centro das atenções pelos seus carrascos, antes, alimentadores. As coelheiras e capoeiras sempre abarrotadas completavam a galeria zoológica de grande parte das casas da nossa Terra.

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto e carinho pelos animais que a minha Mãe criava. Esta Abrunheira, Terra de abrunhos e Abrunhenses, abraçada pelo rio das Sesmarias, era, até há 50 anos, zona agrícola como toda esta nossa região de Sintra e Saloia.
Por esta altura começaram a aparecer as primeiras fábricas. Aqui mesmo na Abrunheira, a SINCAL. Os edifícios ainda lá estão como eram, em frente à rotunda da bomba de gasolina, embora de uso e marca diferente. Muito perto, junto à antiga estrada Lisboa/Sintra do lado de Mem Martins, a Resiquímica e logo depois a Adreta Plásticos. Ambas ainda de pé e empregando muitos moradores da Abrunheira ao longo de todos estes anos até hoje. Logo rápido se seguiu outra… outra e mais outra e, nunca mais parou até meados da primeira década do XXI. Agora, nestes tempos de aperto e de crescimento do número de furos no cinto, resta-nos os templos do consumo – Retail Park e futuro Forum Sintra.

Voltando ao antes da nossa revolução industrial, a Abrunheira era 100% agrícola. Percorríamos a única rua, que é hoje a MFA, e tínhamos um autêntico tapete de saudável bosta de vaca e caganitas de ovelha, que, aumentava de altura, junto ao bebedouro do chafariz e do Stº António. À volta da Abrunheira víamos todas as terras cultivadas. Da janela da minha casa, na altura, ou da varanda da casa do meu Avô, via, em direcção à Colónia (EPS), à direita a quinta do Anjinho os “Barros” e Ranholas, à esquerda o Linhó e ainda mais à esquerda, até ao Chico da Beloura. As searas dançavam ao sabor do vento, e com tonalidades diferentes, porque se no "Serrado da Fonte" se semeou cevada, na "Mulata" se semeou aveia e nas "Ferreiras" trigo, ao longe os tons são ligeiramente diferentes. Os "Celões", de tão grande que era, (parte considerável do que hoje é a Qtª da Beloura) havia anos que se dividia em, uma parte de trigo, outra de cevada e outra de aveia. E a debulha ?? Quinze dias no "Cerrado da Fonte" aquela máquina enorme, com rodas enormes, com uma correia enorme, que não se cansava de debulhar grão e enfardar a palha. Quinze dias para o meu Avô de quem herdei o nome, e a máquina sempre, sempre a trabalhar, sempre a fazer barulho muito barulho e os homens sempre a trabalhar e as mulheres sempre a trabalhar, sempre, sempre.... sacos de trigo, cevada, aveia, fardos de palha, muitos, muitos, depois, de repente, fica só o silêncio... e os homens trabalham e as mulheres trabalham, sempre, sempre....
Todas estas parcelas eram percorridas depois das colheitas e debulhas pelo gado que acabava com a esteva e o restolho até virem as primeiras chuvas de Setembro. Muitas vezes eu fiz parte dessa caminhada com a "Briosa", a "Malhada" a "Bonita", a "Carocha", a “Estrela”, a ...., nomes que a minha Mãe dava às suas vacas mães e depois às filhas e depois netas... sempre, sempre pelos anos fora, e eu, que lhe dava jeito porque tinha gosto, repetia os nomes e os carinhos e festas como a minha Mãe fazia. Levar as vacas ao monte…, levar o gado ao monte, era assim que se dizia e eu levava e gostava e ficava o tempo que fosse preciso, até a sombra do pauzinho espetado na terra atingir o risco que eu de manhã tinha feito na direcção da Quinta do Anjinho, ou, se fosse à tarde, na direcção de casa. Era o primitivo relógio de sol que eu sabia regular e marcar conforme o sítio onde estivesse. Algumas vezes as minhas vacas também sabiam contar o tempo, e, quando isso acontecia, mais ou menos no tempo do pauzinho espetado no chão, encaminhavam-se para o sítio de saída, na direção de casa.
Como eu, havia outros rapazes que levavam o gado ao monte. O Marinho, uma vez, adormeceu com as suas ovelhas e já era de noite e toda a gente, de lanterna na mão, à procura do Marinho. A Abrunheira mobilizou-se inteira buscando o Marinho e lá estava ele são e salvo. Mas só adormeceu, não aconteceu mais nada.
Enquanto o gado pastava, e andava, e descansava e voltava a pastar outra vez, eu tinha as minhas brincadeiras e não dormia. Brincava (construía) aos fornos de cal, esta brincadeira podia demorar vários dias, porque era preciso sustentar a abóbada com pedras bem a jeito para a função. Daí ser empreitada iniciada quando sabia que ia alguns dias para aquele sítio. Por vezes era necessário levar pedras pelo caminho, e chegado lá, continuar a paciência. Sim! Era uma brincadeira de paciência. Quem sabia melhor fazer (brincar) fornos de cal era o Zé Fernando. Ele às vezes ia com o Pai, o Ti Abílio, ao forno onde estava a trabalhar e o Pai dizia-lhe tudo, explicava em pormenor os segredos de construção do forno de cal. Lembro-me que o Ti Abílio tinha muito jeito para a rapaziada nova. Às vezes eu ia brincar com o Zé Fernando e gostava muito de ouvir as histórias do Ti Abílio. Há muitos anos que não falo... falar, conversar mesmo, com o Zé Fernando, e quando damos por nós, já passou muita idade, sim, idade que é aquele tempo contado em anos de vida vivida. Naqueles fornos de cal, para o Ti Abílio, o tempo eram meses e meses contados em molhos de lenha para a fornalha que do lume infernal se queria que derretesse a pedra que havia de ser cal para construir e caiar de branco as paredes das casas dos muros dos prédios e para as valas dos defuntos sem campa sua. “Não vás filho, o forno está muito quente e é perigoso, não te chegues perto!” O cuidado de minha Mãe. Ela tinha medo dos fornos de cal. Falava sempre de um desastre há muito tempo contado em anos e em sítio indefinido. Caiu e as chamas queimaram tudo à volta. Está bem Mãe, eu não vou para lá. Na ponta de cima dos “Celões”, os limites do horizonte pareciam não ter fim. Tudo admirava e tudo via lá de cima. A sombra do “pauzinho” não pára – anda devagar… devagar… no silêncio…

(Continua)

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

URCA – DEPOIS DE 18 DE ABRIL DE 1976 – 2ª PARTE

Em resultado de um ano de muito trabalho, em Abril de 1976 a URCA tinha o pavilhão em pé e a funcionar diariamente para ensaios, encontros e até para sessões de esclarecimento que os vários partidos políticos realizavam com muita frequência. O nosso pavilhão era (e ainda é), a única sala existente na Abrunheira para efetuar qualquer festa, reunião alargada, reunião política, espetáculo, etc. Dum ano para o outro, o “centro” da nossa Terra passou a ser na URCA.

A partir daqui, e com muita gente empenhada, a atividade recreativa renasceu com os bailes quase todos os sábados. Precisávamos de fazer receitas para pagar ao António da Estância e para amparar todas as outras atividades: Alfabetização para adultos, teatro, biblioteca, rancho folclórico infantil, atletismo, luta greco-romana e futebol. A direção da URCA decidiu também recomeçar as festas da Abrunheira que há muito tinham desaparecido. No âmbito social e no que respeita à criação do Centro Social, é que as coisas não estavam a ser conseguidas. Tudo era mais difícil e a URCA dependia completamente de outras instituições para levar o projeto por diante.

As secções (recreativa, desportiva e cultural) iam desenvolvendo o seu trabalho e, algumas datas começaram a ser comemoradas com o envolvimento de todas as vertentes: 3 de Janeiro (fundação da URCA), carnaval, Páscoa, 18 de Abril (ocupação da quinta), 25 de Abril, 1 de Maio, santos populares, Natal e ano novo. As várias comemorações passavam pela realização de provas de atletismo, ciclismo, bailes, apresentação do rancho folclórico e de pequenas peças de teatro. No dia 25 de Abril, para além de todas as outras realizações, começou, desde 1976, a ter um outro elemento – a realização de almoço comemorativo. Foi tradição que se manteve durante muitos anos mas, tanto quanto me venho apercebendo, caiu há algum tempo. É pena! Em Dezembro, organizava-se uma festa de Natal para as crianças da Abrunheira. Para além do lanche e dum programa a propósito, feito com a prata da casa, onde não faltava Pai Natal e Palhaços, era entregue a cada criança, previamente inscrita numa lista, um brinquedo adequado à idade. O lanche era oferecido pela URCA, população e comerciantes locais. Os brinquedos eram comprados com donativos de algumas fábricas e também pelos comerciantes da Abrunheira.

O tempo foi passando, as instalações mantinham-se sempre abertas com um pequeno bar de apoio com a presença, desde a primeira hora, do saudoso Ti Faustino. Ele era tudo – porteiro, guardador, cuidador, tomava conta das crianças que vinham ao parque e garantia o funcionamento do bar. A função cuidadora do Ti Faustino foi fundamental nestes primeiros anos.

Em termos de crescimento e consolidação, a secção cultural com a sua atividade teatral organizada no GITU – Grupo de Intervenção Teatral da URCA, existente desde a fundação da coletividade, viria a ser a grande força mobilizadora da URCA nos anos 70 e 80. O GITU criou e desenvolveu, com o apoio de alguns amigos, um dos melhores grupos de teatro amador do Concelho e até da região.

Lá pelos anos 77/78, a direção da URCA foi contactada por um grupo de teatro profissional residente em Sintra, para apresentação no nosso pavilhão, do seu trabalho em cena. O porta-voz do grupo era o, também ator, Gil Matias. Fizeram o seu trabalho, os abrunhenses gostaram e o Gil Matias passou a fazer parte da nossa agenda de amigos. Em pouco tempo, com a nossa vontade e a sua disponibilidade, avançamos para a reorganização do GITU com a direção do nosso amigo.

"O Palheiro" de Miguel Barbosa, encenado e dirigido em 1979 por Gil Matias, foi um grande sucesso do GITU. Esteve em cena, fazendo bastantes apresentações nas colectividades do Concelho e fora, depois de ter representado a URCA no Festival de Teatro Amador de Sintra que, na época, a Câmara Municipal de Sintra organizava. Ganhou alguns prémios e classificou-se sempre em lugares honrosos. O principal responsável pelo êxito deste trabalho foi Gil Matias. Depois de “O Palheiro”, manteve-se na direção do GITU por mais dois ou três anos. O Gil muito tem dado à cultura do Concelho de Sintra e, particularmente, ao teatro amador em inúmeras Coletividades e Associações da região. Avesso a homenagens e a gratidões públicas, constata-se que permanece vazio o lugar que lhe cabe pelos serviços prestados à comunidade. Nesta minha conclusão, incluo naturalmente a URCA. Pela minha parte, e em nome de todos os que pensam como eu, agradeço ao Gil Matias toda a sua dedicação e generosidade em prol da cultura.

Nos últimos anos da década de 70 e primeiros dos 80, começaram a mexer também, embora com completa autonomia em relação à direção da URCA, o que viria a ser o Grupo Coral Alentejano da URCA com a incansável liderança de Francisco Feio e a Associação de Reformados com a luta e perseverança do saudoso António Vieira. Alguns memoráveis encontros de Grupos Corais Alentejanos aqui foram realizados com autênticas multidões de participantes e espectadores. Criaram também o seu núcleo de convívio e organizaram um pequeno museu regional que, melhorado e revitalizado há algum tempo, tem as suas portas abertas para quem o quiser visitar. O legado de António Vieira não foi abandonado e, pelo contrário, a Associação de Reformados consolidou os seus alicerces, está ativa e tem projetos para o futuro.

Esta fase de lançamento e consolidação da URCA, com a mesma orientação a nível de dirigentes, foi até final de 1982. A partir daí, uma nova fase começou. O frenesim revolucionário, que necessariamente influenciou os fundadores e a própria URCA, tinha chegado ao fim.

Silvestre Félix

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

URCA - DEPOIS DE 18 DE ABRIL DE 1975 – 1ª PARTE

Nesta fase, com a questão das instalações no bom caminho e com muito trabalho pela frente, era importante definirmos as prioridades e manter a unidade na ação.

Eu, lá continuava a aprender a ser “tropa” na Figueira da Foz. Detestava aquilo, mas gostei de estar na cidade da foz do Mondego. Depois das primeiras sete ou oito semanas de “cativeiro”, todos os fins-de-semana vinha à Abrunheira e participava com gosto nos trabalhos da URCA. A comida no quartel era boa e o ambiente também. Em Maio fui para o RIP no Porto, onde me mantive até pouco antes do final de Junho. Depois, entre uma mobilização para Angola e uma reorganização do Exército, um bocado a reboque das “negas” em embarcar para a Guerra a preceito do PREC, fui, com outros, desmobilizado e mandado para casa até meados de Agosto. Os últimos dias de Junho, o mês de Julho e o meio de Agosto, foram um regresso à minha vida normal. Na terceira semana de Agosto, regressei à tropa e consegui vir para Oeiras onde fiquei até 27 de Novembro do mesmo ano de 1975. Era como se estivesse em casa. Retomei o meu trabalho da URCA, agora, sem interrupções, independentemente das obrigações militares.

As instalações existentes na quinta resumiam-se: À casa de habitação que corresponde hoje ao edifício que dá para a rua Humberto Delgado, excluindo o bar que foi construído à posteriori, e um telheiro de capoeiras e coelheiras ao longo do muro que dá para a rua da Liberdade onde, depois de algumas obras, viriam a instalar-se a Associação de Reformados e o Grupo Coral Alentejano da URCA. A quinta prolongava-se muito para baixo (sentido sul) ocupando toda ou parte do terreno onde estão hoje moradias com as traseiras para a rua do Centro Social e frentes para a rua Natália Correia. Algures no meio, havia um poço com um grande moinho de vento e um tanque de rega.

À perpendicular do edifício principal, do lado direito quando estamos virados para o alpendre, já existia aquela espécie de arco?? (em linha reta) que ligava a uma parede de tijolo a direito que é, nem mais nem menos, a parede norte do pavilhão. Bom, o fato de haver esta parede feita e em bom estado entusiasmou-nos a aproveitar a dita e, a partir dali, construirmos o pavilhão tal e qual é hoje. Naturalmente que ao longo do tempo beneficiou de muitos melhoramentos mas, no essencial, é o que lá está, 35 anos depois. Antes do início das obras do pavilhão, os serralheiros e pedreiros e toda a gente da Abrunheira, meteram mãos à obra e, em menos de nada, nasceu o primeiro parque infantil no mesmo local onde ainda está. Aquela parede que atrás mencionei, e que seria uma das alas do pavilhão, do lado virado para o parque, encheu-se de pinturas que alguns artistas abrunhenses generosamente ofereceram às nossas crianças. Tenho sempre receio de mencionar nomes, porque, como é natural, não me lembro de todos e não quero ser injusto. Não resisto no entanto, e até porque ainda num destes dias reparei estarem a aparecer por debaixo da velha cal, nessa mesma parede, alguns dos heróis dos desenhos animados da época que, o nosso João Balagueiras, tão bem lá os desenhou e pintou. Mereciam ser reabilitados, digo eu.

Já depois de haver parque infantil e grande parte das figuras pintadas na parede, tivemos honras de reportagem televisiva. É verdade, a RTP, única televisão do tempo, veio fazer reportagem e transmitiu no telejornal. Os moradores da Abrunheira, mesmo os que inicialmente não concordaram com a ocupação, foram, a pouco e pouco, aderindo às nossas intenções e, uma parte considerável da população, quando chegou a hora, pôs as mãos na massa. As ajudas vinham de todo o lado. Em trabalho, em materiais, homens, mulheres, mais velhos, mais novos, nos almoços, nos lanches, tudo e todos eram importantes para erguer o nosso pavilhão.

No entanto, havia muita coisa que era necessário comprar e dinheiro não havia. Também aí tivemos uma colaboração fundamental para conseguirmos pôr as paredes em pé. Foi o Senhor António Coimbra das Neves, conhecido por “António da estância” de Albarraque. Fomos falar com ele e conseguimos que confiasse nos dirigentes da URCA. Forneceu todo o material de construção necessário para pagar como e quando fosse possível. Confiou, e fez bem, porque tudo lhe foi pago até ao último centavo, depois de muitos bailes e festas de angariação de fundos, no pavilhão, já com telhado. A cobertura foi colocada a tempo de se fazer a pré-inauguração (pré porque ainda não tinha portas nem janelas), no primeiro aniversário da ocupação, a 18 de Abril de 1976.

Com um programa da casa, envolvendo dezenas de Abrunhenses, incluindo a estreia de um rancho folclórico infantil com muitas crianças da Abrunheira, criado e encenado de propósito para a ocasião por animadores e animadoras da secção Cultural da URCA. Também foi neste dia apresentada uma criação colectiva do GITU (Grupo de Intervenção Teatral da URCA) com o título "Até à Libertação", bem como outros pequenos quadros de comédia "séria", porque tinha sempre a ver com o momento político. Foi uma grande festa. Parecia que não havia uma única pessoa da Abrunheira que, duma ou doutra maneira, não estivesse a participar. Estou convencido, passados todos estes anos, ter sido uma das ocasiões em que se viu mais gente junta, num só local, na Abrunheira.

É certo lembrar que, na época, foi reconhecido por muita gente a nível do Concelho de Sintra, ser a URCA, com pouco mais de um ano de existência, um dos bons exemplos de associativismo a seguir.

Foi um ano de intensa atividade. O recinto e as instalações, principalmente aos fins-de-semana, estavam sempre apinhados de gente que invariavelmente encontravam tarefas úteis para fazer. Concluída, no essencial, a construção do pavilhão, outros trabalhos e outras preocupações se seguiram. Disso darei conta no próximo escrito.

Silvestre Félix
8 de Fevereiro de 2011
Tag: URCA

PS:
Como já disse, não tenho a pretensão de ter nenhuma memória de elefante, nem de possuir a única interpretação de muitos acontecimentos, pelo que agradeço todas as contribuições no sentido de melhorar o registo da nossa memória coletiva. A forma de o fazer pode ser através de simples comentário diretamente no blogue, para o meu mail
silvestrefelix@netcabo.pt, ou através de MSG na página do facebook.com/silvestre.felix

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

EM CAMIONETAS VINHAM E EM CAMIONETAS IAM!

Todos os sítios ditos hoje, nossos sítios foram ontem. Alguns até as paredes ainda conservam, outros estão guardados na memória do rígido e em ficheiro no externo. Em tempo contado em algumas dezenas de anos, sempre abaixo dos que eu tenho nesta vida, todos estes lugares já passaram à história industrial da Abrunheira.

Os mesmos tijolos e reboco que resguardam empresa nova, que o seu nome já deu à rotunda facilitadora do escoamento de trânsito, que naquele tempo demorava que passasse qualquer viatura, nem que fosse carroça, poderá ter corrido tempo, em número de anos contados, cerca de 50. Com muita pompa e direito a notícia de jornal, pouco importante pela escassez de trocos para o comprar e pela fartura de iletrados morados à época na nossa Terra, contando como muito mais importante na propaganda do evento, o “passa-a-palavra” na companhia de “ciganas”, de “charretes” ou simples de “três” tintol, pelos balcões do Ramos, do Álvaro ou da Menina Emília, em que se lubrificavam as goelas secas de tanto palrar. Na porta ao lado, as mulheres-mães, irmãs, tias, filhas, avós, cumpriam a mesma missão antes de acrescentar à “conta”. O objeto do grande acontecimento, de “batismo” tinha garantido o nome de “Sincal” e fabricava lixas, abrasivos e colas.

De primeira na Abrunheira se gabava, pois durou algum tempo contado até se construir a segunda no mesmo sítio e paredes onde hoje tem entreposto de Japoneses carros. Esta segunda, tal como a Sincal, muito labor deu aos Abrunhenses, que de semeadura e ceifa se foi esquecendo em troco da féria certa e contada, chovesse ou sol fizesse, com dia do senhor liberto e sexto encurtado com novidade de semana-inglesa. Fábrica da Borracha, abreviatura da “Fábrica de Borracha Leackok Rosa Lda”, viajante como se “Jangada de Pedra” ao contrário fosse, pois rumou a nordeste. Foi a pérola que a pariu e a criou, oferendo-a já adulta à Abrunheira que muito bem dela tomou conta e adotou como sua. A “Jangada” ao contrário carregou de boleia os seus operários sabedores e as suas famílias. Curto contado em tempo, os amores e desamores dos filhos e filhas dos da “Pérola-Madeira” e dos Abrunhenses, e os filhos dos filhos, netos e bisnetos deram ao pulsar da nossa Terra.


Depois vem a de plásticos no mesmo sítio e paredes construídas pelo patrão Gomes dita “Fábrica de Plásticos Atil, Lda”, onde hoje se produzem ou armazenam produtos químicos ali a seguir à Puratos no sentido da do “atleta”. Também esta trouxe operários doutras bandas, mas sempre os Abrunhenses ganharam em presença e labuta. Porque também aquelas mesmas paredes que estão de pé me protegeram dos primeiros passos no mundo do trabalho, e lembro um a um dos meus antigos parceiros nos 14 contados em anos de idade. Alguns subiram um patamar e estão numa dimensão diferente, deixando cá, na Terra, a saudade da vivência.

A Abrunheira tem sítios e lugares que são já da sua história industrial e dos Operários que por lá passaram. Em camionetas vinham e em camionetas iam. Primeiro, andantes em brancas d’alva de marca “palhinha”, que de caminho faziam do Estoril até Mem Martins e volta, três vezes no dia entravam e saiam da Abrunheira. Depois, de “Boa Viagem” se marcavam, na Abrunheira se cruzavam muitas vezes por empreitada, riscadas de marinho azul e entre Oeiras e Sintra se escalavam. Na ponta de antes das oito, desovavam e em pirilau, passando pelo Ramos e depois António José e Café do Manuel “Brasil”, lá certinhos, passo-a-passo, tomavam seu rumo da labuta: Sincal, Borracha ou Atil. Na outra ponta das seis, o inverso: Camioneta chegava, camioneta partia e roncava e fumava e ia e voltava.

Dos da Terra, iam e vinham pela – Um, dois e três, lá vai alho, o bilas das três covas, o olho-de-boi, o pião que roda sem parar, lá vai eixo, às escondidas, à apanhada… de régua ao alto até à palma da mão em mordedura escaldante, dentes cerrados e lágrimas contidas na raiva fervida de injustiça…e lá estava, por detrás da secretária, ao lado do quadro de ardósia, o retrato do botas e do Craveiro ainda desactualizado – que chamavam escola que ainda nome não tinha, a rua, mas lá me cruzei com muitos Abrunhenses nessa passagem da vida. Bem gravado e guardado, de todos me lembro em corpo e alma feitos, de nomes nem tanto, que hei-de eu fazer?

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ESTALAGEM DE MOBILIÁRIO BRANCO

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, a vida corre com sofrimento mas também com devoção e esperança.

O toque cadenciado dos monitores, um atrás do outro, embalam o sono engajado na dor e nas idas aos patamares alucinados. As imagens constantes, bem arrumadinhas em quadradinhos bem nítidos, com falas sugestionando o bem ou o mal. Quando bem, acende a ansiedade para entender duma forma racional, que mensagens os quadradinhos me transmitem. Quando mal, provocam um misto de raiva e medo e é manifesta a impotência para os retirar da zona abrangente do meu alucinogénico sono.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, os anjos não dormem. São eles ou elas, não importa, porque anjos não têm sexo, só têm bata branca. Não descansam e estão sempre cuidadores junto à cama. O gemido, o grito, o pedido, a negação. Os anjos não precisam de manual, sabem de cor os significados e nunca dormem. Religiosidade à parte, abençoados os anjos de bata branca que sempre lá estiveram.

No “modo” de observador, em fase mais consciente e pela experiência das várias estadias “na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda” a capacidade de interpretação do que vai acontecendo à minha volta, aumenta desmedidamente, e enfraquece a sensação de debilidade. Estou forte! E, na outra cama, o sofrimento é agudo. “Calma, é assim mesmo. Tem de acreditar e ter coragem” – Consigo passar a ideia mas duvido do efeito. A perturbação, o medo, o terror, não tem limite. Diz ele: “Não, não quero! Vão pôr no soro e eu fico a dormir e depois cortam-me… Não, não deixo, não quero!” A expressão facial e corporal não disfarça o pânico. As de bata branca, com aconchego carinhoso e palavras macias de psicologia simples de anjo sem sexo, controlam o desarranjo mental.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, perto da minha casa, moram anjos de bata branca sem sexo.

Silvestre Félix

SINTRA CULTURAL

Guia da atividade cultural do nosso Concelho, a Agenda cultural para Fevereiro de 2011, editada pela Câmara Municipal de Sintra, já está disponível nos locais habituais ou, online linkando PDF
Silvestre Félix
(Fonte: Site da CMS)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA – CAPÍTULO II – 2ª PARTE - DEPOIS DE 3 DE JANEIRO DE 1975

Sendo despachado para a Figueira da Foz, fico longe do que se iria passar na Abrunheira e na URCA, nos próximos tempos. Ainda por cima, Portugal entraria nestes dias num período muito conturbado que resultou só numa ida a casa, entre 3 de Março e 25 de Abril.

Oito dias depois estamos no célebre 11 de Março de 1975. A mim, maçarico com uma semana de farda, deram-me uma G3 e fui para um cruzamento algures na Figueira da Foz, revistar carros (a G3 estava descarregada). Comigo estavam outros nas mesmas circunstâncias. A minha unidade era afecta ao MFA, de maneira que o lema era "tudo pelo PREC". Os dias foram correndo na Figueira da Foz, até que nos vamos aproximando do primeiro aniversário do 25 de Abril e dia das primeiras eleições democráticas, eleição da Assembleia Constituinte. É claro que naquela época não havia telemóveis e mesmo os outros telefones não existiam em todo o lado, mas mais ou menos eu ia sabendo que as coisas na Abrunheira iam andando.

Salvo erro no dia 19 de Abril, quando no quartel já se faziam as escalas, para ver quem votava para as "Constituintes" no quartel e quem tinha que ir a casa votar, recebo correio da Abrunheira, do Zé Carmo Silva, com uma conversa completamente enigmática. Era um jogo para eu descobrir o que tinha acontecido ou ia acontecer em 18 de Abril (dia anterior). A solução do problema era exactamente a "Quinta do João da Batata". O pessoal tinha "ocupado" a quinta. Consegui telefonar e falar com a minha Mãe, que me disse, mais ou menos o que eu já sabia. Imaginem como eu fiquei. Sem poder participar, sem dar o meu contributo, e tanto que havia para fazer e eu com uma G3 na mão a aturar gente que nos obrigava a brincar aos cowboys.

Sorte a minha, a credencial necessária para votar na Figueira da Foz não tinha chegado e, por isso, tinha que ir a casa para votar no dia 25 de Abril. Ia poder estar com o meu pessoal. Vim ver e finalmente participar no acontecimento da semana; "A ocupação da Quinta". Participei no entusiasmo da quase totalidade da população da Abrunheira. Este dia 18 de Abril passou a ser comemorado como véspera do grande dia 25 de Abril.A partir daqui a história da URCA é outra, será a própria Abrunheira, pois tudo se vai passar aqui. Queríamos muito mais do que veio de fato a acontecer. O nosso grande objetivo era a criação dum Centro Social que incluísse, para além da URCA, pelo menos, infantário, apoio aos idosos, apoio escolar e uma extensão do Centro de Saúde. A este propósito, na altura da atribuição das ruas da Abrunheira, a uma das artérias que contorna a URCA, foi-lhe dado o nome de “Rua do Centro Social”.

Naquele fim-de-semana prolongado (25,26 e 27 de Abril), tive oportunidade de participar em todas essas discussões que perspetivavam um futuro de sucesso e de melhoria na qualidade de vida para a população da Abrunheira.

Ainda durante os dias que estive na Abrunheira, se iniciaram conversações com o proprietário, com a colaboração de algumas pessoas ligadas à comissão de moradores da altura e com o conhecimento da Câmara Municipal de Sintra. Pela parte que me toca, estou eternamente grato a essas pessoas mas, por razões óbvias, nunca usarei aqui os seus nomes.

Em resultado de todas as boas vontades, as coisas viriam a correr muito bem, tendo sido, mais tarde, assinado um protocolo entre o proprietário e a Câmara Municipal de Sintra em que, estabelecia uma fronteira entre a parte de terreno a utilizar pela URCA, e a parte que continuava na posse do anterior dono. A nossa parte passou para a posse da Câmara com o fim de ser utilizado pelo Centro Social da Abrunheira.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
1 de Fevereiro de 2011

sábado, 29 de janeiro de 2011

O CONTADOR DE CENAS

Ficam contadas em duas, as vezes que, depois de publicada esta no “Largo do Chafariz”, eu aqui falo da personagem mais inspiradora que nalgum tempo eu conheci na Abrunheira, que é uma Terra com História e cheia de Histórias.

Pois então aqui deito uma das prosas inspiradas no sapateiro e contador de cenas, cegadas, bailes, arraiais e outros que tais, de nome Joaquim mas dito e conhecido por: J’quim Cagachuva agarrado pelas leis do matrimónio à Margarida Cagachuva que de tudo o que se passava na Abrunheira e arredores sabia, como de profissão exercesse equiparada a uma boa repórter ou enviada especial nestes anos, em tempo contado vão onze do século vinte e um. Que de vocação pouca tenho, aqui lhe traço rimado o perfil: De namoricos e cornaduras/Era o jeito e especialidade/Mas de intrigas e benzeduras/E alguma dose de maldade/Se fazia de ternuras/Velha gaiteira daquela idade. À alcunha, não lhe conheço confirmação absoluta, mas com tão óbvia oralidade, e se bem usado o Português-Língua-Mãe-de-Camões, com ou sem acordo ortográfico que aqui não colhe, bem fácil fica adivinhar porque tal apelido lhe acrescentaram.

Sapateiro é Arte de quem faz ou arranja sapatos, de onde lhe pariu o nome, mas também botas, polainas, sandálias, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés. Agora, neste tempo de shopping’s e outros parecidos, já não sei se há Sapateiros e não há Arte ou se não há Sapateiros nem há Arte para fazer sapatos, botas, polainas, chinelos e todas as outras coisas onde metemos os pés, porque Sapateiros que fazem chaves, carimbos e cartões de visita e dizem que concertam calçado, tudo ao mesmo tempo, não podem ser Artistas de Sapateiro.

O “J’quim Cagachuva” era universalmente conhecido. O “universalmente” está bem metido porque, quando era mais novo, este Artista ainda desgarrado e liberto da faladeira “Margarida Cagachuva”, andava de terra em terra porque naquele tempo não era o sapato ou bota que ia ter com o Artista Sapateiro, mas sim o Artista Sapateiro que ia ao encontro das botas, polainas, sapatos, chinelos, sandálias e outras coisas onde se metem os pés. É verdade, O Ti J’quim, mesmo coxeando da perna nascida desigual da outra, metia-se ao caminho desde o Linhó, que acho era onde tinha morada fixa em solteiro, e direitinho às Casas Grandes dos lavradores para aplicar a sua Arte no calçado dos patrões e dos trabalhadores. E então, lá ia o Ti J’quim pela Ribeira da Penha Longa, Alcabideche, Alcoitão, Bicesse , Amoreira, Manique de Baixo e de Cima, Trajouce, Abóboda, Cabra Figa, Albarraque, Abrunheira, etc, etc. Por todas estas andanças, muitas histórias foram acontecendo a este Contador de Cenas.

E das histórias gostava eu, que quando lá ia ter com ele, não me levava a preocupação de engraxar os sapatos. “Bom dia Ti J’quim, então como é que vai isso?? Vai bem…,” dizia ele e nunca se esquecia de… “Há por ai um cigarrito??” E então começava o ritual. Punha o cigarro nos lábios grossos e babados, pedia lume e, depois do cigarro aceso e daquela conversa em jeito de introdução, … vai chover… não vai chover…. Tá um calor dos diabos… tá bom pás batatas… tá bom pós nabos…., lá vinha, a propósito de um destes temas, lá vinha dizia eu, a invariável expressão; “’m’ocasião…” e pronto, estava dado o mote para mais uma história aí com 40 anos ou mais, e passada numa das Terras por onde o “Ti J’quim” andava; Alcoitão, Bicesse, Manique, etc, o local de ação era sempre a sociedade lá do sítio e a cena era de diversão, nunca de trabalho. A ocasião era o bailarico, e acabava em sessão de porrada e “jogo do pau” com história de mulher pelo meio.

As histórias eram intermináveis, porque este Artista Sapateiro e Contador de Cenas, fazia jus a esta última vertente, e, se fosse preciso, ligava uma à outra e nunca mais acabava, e o cigarro ardia, ardia… e o “Ti J’quim” contava, contava, até que o cigarro se apagava e ficava como se dali fizesse parte.

Ele, O Contador de Cenas e Histórias, porque tinha necessidade de falar recordando o tempo passado contado em anos que nem Ele muitas das vezes já sabia, e eu, porque as imaginava à minha maneira como se fossem de quadradinhos, e por ali ficava tempo passado em horas, porque quando ia lá visitar o “Ti J’quim” não me levava a preocupação de engraxar ou arranjar os sapatos.

A Abrunheira é uma Terra com história e estes são os seus personagens.
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(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
29 de Janeiro de 2011

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

DE VOLTA A CASA

Bom da cabeça não pode estar quem – com todas as atrativas alternativas deste mundo e de falta de publicidade ninguém se queixa, antes pelo contrário – não aceita a oferta nacional, muito perto de casa, de alojamento para seis noites em regime de pensão completa, a preço de saldo em última rebaixa mas de muito boa qualidade, incluindo programa variado com calendário previamente estabelecido de aventuras e desventuras: passeios por corredores infindáveis de luz branca mas daquela mesmo muito branca, workshops sobre o comportamento humano em generosidade e na capacidade de sofrimento, experiências inimitáveis de sonos acompanhados com os sons dos mais originais que há – só possíveis em unidades deste tipo – com sequências de triliões de imagens devidamente compactadas e catalogadas incomparavelmente mais eficazes do que qualquer PS, provas de compostos e complementos alimentares na forma líquida e sólida de eficácia amplamente comprovada, utilização de SPA em regime privativo nos banhos e noutras aplicações com o acompanhamento permanente dos mais qualificados profissionais.

Com a oferta descrita, não perdi tempo e lá fui o mais depressa que pude, faz precisamente hoje, oito dias. Estou de regresso aos meus, à minha casa e, principalmente, à minha cama.

Aconteceu sempre, e penso que o mesmo sucede com a maioria das pessoas, que ao longo da vida nas ausências em trabalho, às vezes prolongadas, estabelecia uma espetativa da receção quando a casa voltava. É claro que também tinha que contribuir para isso, por exemplo: A prendinha ou recordação que se trazia deste ou daquele sítio, deste ou daquele aeroporto, e a duração da viagem.

Desta vez, também quis fazer da mesma maneira.

Na passada Sexta-Feira, lá pelo final do dia, depois de uma viagem de corredor com ida e volta, em que as florescentes do teto tomam maior velocidade que nós e em que fica sempre de fora, entre a partida e a chegada, determinado tempo contado em horas, belisquei-me nalguns sítios, abri bem os olhos, tentei salivar e senti uma das ferramentas da aventura bem enfiada pela goela abaixo. Conforme o manual de instruções, é nessa altura que se confirma o sucesso da primeira aventura.

Então, superada esta primeira, outras se seguirão e, na volta a casa, quando a porta se abrir, quem vai estar lá para me receber? A Isabel e a Sofia estiveram comigo todos os dias, Bruno alguns, mas já não mora lá. Já não pode ser igual. Os putos cresceram e não vou chegar sozinho e mesmo que o quisesse não era possível. Os programas, essencialmente físicos, condicionam uma boa percentagem da mobilidade. O único personagem da história que permaneceu sempre em casa e, pelo que me contaram, demonstrou desagrado todos os dias pela minha ausência, foi o Sunny Cat. Esse mesmo! É a ele que vou exigir o cumprimento do protocolo de receção. É inflexível nos seus quereres e agora chegou a sua vez. Assim foi, entrei em casa e, mal deu pela minha presença e sem lhe dizer nada, manifestou logo a sua satisfação com uma miadela adequada à circunstância, e roçadelas infindáveis pelas pernas, entremeadas de mios e lambidelas mas mãos a que correspondi com a mesma emoção. Só não pude aceitar aos pedidos constantes de brincadeira que, prometo, serão devidamente compensados a seu tempo.

Aqui estou, enriquecido, não na conta bancária, mas em experiência e saber, com o coração a transbordar de gratidão pela forma como todos os profissionais me acompanharam nesta estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda.
Muito Obrigado

Silvestre Félix
27 de Janeiro de 2011
Tags: Hospital Fernando da Fonseca

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A PROPÓSITO DA FUNDAÇÃO DA URCA

A propósito da Fundação da URCA, o José Carmo Silva, destacado elemento dos que, ativamente, criaram condições para o nascimento da URCA e que viria a ser o seu primeiro Presidente de Direção, fez-me chegar um texto que enquadra, acima de tudo, o sentimento de solidariedade comunitária dos jovens da época. É verdade que víamos para além das competências da URCA. A ideia do Centro Social, que era um objetivo concretizável na altura, é a maior prova disso.

“Um aspecto curioso que suportou a formação da URCA, mostra-nos como um conjunto diverso de pequenos "nadas" podem levar à criação de algo que tem perdurado ao longo de todos estes anos.A história da URCA assenta na junção de grupos de jovens, que acabavam por conviver em separado, com visões distintas mas que, talvez de modo inconsciente, partilhavam a necessidade de construir algo que pudesse servir, não só o grupo onde conviviam, mas uma comunidade mais alargada.
Existia por um lado a experiência do Grupo Desportivo, por outro o associativismo já pós 25 de Abril dos mais jovens, ainda grupos mais "maduros" que de vez em quando organizavam os tradicionais bailaricos, e pelo meio as experiências mais ou menos culturais que remontam ao grupo do Algueirão, JURA, (Juventude Unida e Recreativa do Algueirão - cujo padre da paróquia comparou com H2SO4) com antecedentes a 1973 (ou mesmo antes).Jovens em separado, ideais diferentes, mas a necessidade de fazer algo mais grandioso.
Talvez um bom exemplo de "O todo é maior que a soma das partes" e também menor, acrescento eu, por obrigar a alguma perda de individualidade a favor de um objectivo mais abrangente.É esta humildade e grandeza que permitiu cultivar a persistência, permitindo ultrapassar os desafios que necessariamente teriam de surgir.
[José Carmo Silva]”

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA – CAPÍTULO II – 1ª PARTE - DEPOIS DE 3 DE JANEIRO DE 1975

A Assembleia de Fundação em 3 de Janeiro de 1975 foi bastante concorrida. Presentes, vários membros do antigo Grupo Desportivo todos mais velhos do que nós. Eram, digamos, os irmãos mais velhos. Lembro-me, por exemplo, do António Nascimento e do Francisco Cruz. Estavam mais, mas não consigo recordar-me dos nomes.

Este foi um dia importante para a história contemporânea da Abrunheira, e, por isso, devia ser assinalado com alguma dignidade. Durante muitos anos a data foi comemorada como merecia, mas depois, a negligência e o descuido (pelo menos) foram tomando conta de algumas agendas e, com alívio de alguns, perdeu-se o hábito. Para quem não conhece a época e as circunstâncias, é importante que se saiba que o Sócio da URCA, ou melhor, a Sócia registada naquele dia com o número um, foi a Cristina Peniche. Tinha 14 anos, e a seguir era uma escadinha até aos 20, que era eu que os tinha.

Neste início de 1975, o País vivia um trajeto revolucionário, com mudanças todos os dias e que depressa chegaria ao "verão quente" de 75, ponto alto do PREC (Processo Revolucionário Em Curso).Com o aparecimento de muitos partidos políticos, a sua influência crescente na sociedade emergente e, naturalmente, em cada um de nós, começou a não ser fácil aguentar a unidade, “marca d'água” do nosso caminho até aquela altura. Continuo a pensar, que aquele núcleo duro inicial, conseguiu manter a mesma dinâmica, porque se adaptou bem à nova situação e garantiu uma prática democrática muito abrangente do ponto de vista partidário. Conseguimos permanecer unidos, resistindo a todas as tentativas hegemónicas, muito embora as conhecidas e confirmadas ligações partidárias de alguns de nós.

Entretanto aproximava-se o Carnaval, altura de brincadeiras e passeios de mascarados e realização de bailarico na “sociedade”. Naquele ano de 1975, o pessoal da URCA pensou, projetou e apresentou, um programa mais elaborado que, para além de baile num dos dias, incluía, noutro dia, a apresentação em palco, de vários “quadros” de comédia ensaiados e representados pela “prata da casa”. O nosso problema era sempre o mesmo – local para fazermos isto. Já antes, tínhamos tido a colaboração do Sr Saraiva que nos disponibilizou um anexo da serração para fazermos um baile. Para o Carnaval fomos novamente falar com ele e o Senhor, com toda a boa vontade do mundo, ofereceu-nos um armazém ao lado da sua casa. Era o ideal, ficamos todos contentes mas estava cheio de madeira para ser retirada e, depois da festa, para voltar a pôr no mesmo sítio.

O Carnaval de 1975, primeira realização a sério da URCA, foi um grande sucesso. A população da Abrunheira participou em massa e isso deu-nos muita força para continuarmos. No entanto, era cada vez mais sentida a falta de instalações, não só para sede, mas principalmente, para se desenvolver uma actividade cultural e recreativa continuada e devidamente programada.
O País estava a mudar e nós não queríamos ficar para trás. Um pouco por todo o lado, tomava forma uma onda que viria a tornar-se imparável – tantas vezes levada ao exagero - que era, a ocupação de todo o imóvel que se encontrasse comprovadamente ao abandono. Como é natural, o fato de abordarmos a temática e de falarmos de alguns locais que poderiam servir para desenvolvermos os nossos projetos, levou a que a nossa indestrutível unidade até aí, sofresse algum abalo. Claro que era um assunto polémico e muitos de nós achavam que não deveríamos ir por aí. Como se veio a verificar, a unidade resistiu e, nos meses seguintes, iria tornar-se ainda mais forte.

Entretanto, chegamos a 3 de Março daquele ano do PREC. Era Segunda-Feira, apanhei o comboio da linha do Oeste de manhã cedo no Cacém, e lá fui até à Figueira da Foz “assentar-praça” no exército deste País. Tinha o estômago às voltas, não só pela obrigação de ir para a tropa, mas também porque na véspera, a festa da minha despedida na adega do Pai do Zé Carmo Silva, tinha sido de arromba e com muito álcool.

(Continua)
(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA - CAPÍTULO I - 2ª PARTE - ANTES DE 3 DE JANEIRO DE 1975

…………..
Não estávamos a inventar a “pólvora” e o facto de na Abrunheira não haver nenhuma forma de coletividade ativa, levou alguns de nós a participar em iniciativas culturais ligadas à Igreja Católica na paróquia do Algueirão. Nesta fase da vida do nosso País, as organizações juvenis católicas, eram muito dinâmicas e, duma forma geral, com uma prática anti-ditadura e progressista.
Durante dois ou três anos, seis, sete ou oito, rapazes e raparigas da Abrunheira, integraram esse grupo de Algueirão que promovia uma grande festa anual de homenagem aos Avós, com mobilização, acima de tudo ao fim de semana, de pelo menos uns seis meses. Para a época era uma coisa com peso a nível de Concelho.
A participação neste grupo deu-nos experiência de organização, de contornar a censura, iludir a pide e os seus informadores e muita vontade de fazermos coisas na Abrunheira.

Entretanto o primeiro trimestre de 1974 corria turbulento e, depois do 16 de Março, pairava a sensação que alguma coisa ia mudar. Chegamos ao glorioso dia 25 de Abril. Pelas sete da manhã, a minha Mãe chamou-me como de costume e diz-me: “que….enfim, era melhor não ir para Lisboa, porque estavam a dizer no rádio que havia por lá uma revolução.” Tal como se desprende uma mola, sentei-me na cama, liguei o rádio que tinha à cabeceira sintonizado no Rádio Clube Português (o antigo. Não tem nada a ver com o atual), mas só ouvia marchas militares. Perguntei à minha Mãe o que tinha ouvido, mas ela coitada estava mais baralhada que eu. A minha grande dúvida naqueles minutos, era se se tratava de um golpe de esquerda ou de direita, ou melhor, se contra ou a favor da guerra. As marchas militares não me agradavam, passavam-me uma ideia muito militarista, contrária, como se sabe, à minha filosofia de vida já naquela altura.
De repente, pararam as marchas e ouvi a voz inconfundível de Luís Filipe Costa lendo o célebre comunicado do MFA: "Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas…..etc, etc", que, dizia o que eu queria ouvir, os principais objectivos do movimento eram: Derrubar a ditadura, instaurar a democracia e acabar com a guerra colonial (na altura, habitualmente designada guerra do ultramar).


Levantei-me muito mais depressa que o costume, e, passando pela preocupação da minha Mãe a que se juntava também o meu Pai, lá fui apanhar a camioneta para Sintra. Bebi a bica no Cintya como o fazia diariamente e, antes de entrar no comboio que acabava de chegar à estação de Sintra, reparei que desembarcavam muitas pessoas que vinham com certeza de Lisboa como se fossem 7 horas da tarde. Então, fui atrás dum funcionário da CP, perguntei-lhe se ia haver comboios para o Rossio e ele disse-me que sim, só não sabia se depois havia de Lisboa para Sintra.
A curiosidade era muita e, além do mais, tinha o trabalho à minha espera pelo que, só tinha razões para fazer o mesmo dos outros dias e ir até à Capital.

Como todos sabemos, de normal o dia não teve nada, mas isso é outra história. Lá pelas sete da tarde de 25 de Abril de 1974 já estava na Abrunheira com os meus companheiros a trocarmos as histórias do Dia, e eu, com a edição actualizada do jornal "República" (Que guardo comigo até hoje), e a delinearmos a estratégia para o nosso grupo, agora em total e completa liberdade.
Passamos a noite de 25 para 26 a conversar, jogar king e a ouvir as notícias pela rádio na adega do Pai do Zé Carmo Silva. Tenho receio de ser injusto e não referir alguém, mas não errarei muito se disser que nessa noite, estivemos juntos, pelo menos, eu, o Zé Carmo Silva, Zé Marques, Fernando Marques, Mário Martinho e Rui Simplício. Tenho quase a certeza que havia mais gente mas, sinceramente, não consigo lembrar-me quem.

O ano de 1974 foi correndo com todos os acontecimentos que nós conhecemos, e, as nossas actividades foram evoluindo, agora, em democracia e com horizontes mais largos. O conceito de Associação foi crescendo, até que, depois do Verão de 1974, o que viria a ser a URCA estava feito. Fomos falando com o pessoal do futebol e, antes do Natal, estava tudo acordado. Faríamos a união do grupo de futebol existente com a componente cultural e o nome ficou logo acordado.

Fomos fazendo o trabalho de casa, passou o Natal, o Ano Novo e, no dia 2 de Janeiro de 1975, reunimos na casa dos Pais da Odete Santos. Estiveram presentes, creio, Silvestre Félix, Carmo Silva, Zé Marques, Fernando Marques, Mário Martinho, Zé Barros, Cristina Peniche, Fernanda Barros, Joaquim António (Quitó) e Odete Santos. É provável que estivesse mais alguém. Peço desculpa por qualquer omissão mas já passou muito tempo. Assistiram, porque estavam em sua casa, o Joaquim e a Julieta Santos. Nessa reunião combinamos todos os pormenores e ficamos prontos para o grande momento.

No dia 3 de Janeiro de 1975, reunimos uma grande Assembleia no local onde funcionava a sede do Grupo Desportivo e que se chamava "A Sociedade".

Foi declarada a criação da URCA-UNIÃO RECREATIVA E CULTURAL DA ABRUNHEIRA, e foram logo eleitos os Órgãos Dirigentes da nova Associação. Direção, Mesa da Assembleia Geral e Conselho Fiscal. Assinaram o livro de presenças, e, por consequência, passaram a ser Sócios fundadores, mais de 30 pessoas.

(Continua)
(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
11.01.2011

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE SÃO PEDRO

Hoje, pelas vinte e uma horas, no Salão Nobre do Quartel dos Bombeiros de São Pedro em São Pedro de Penaferrim, realiza-se a cerimónia de tomada de posse dos Órgãos Sociais da ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE S. PEDRO DE SINTRA para o triénio 2011/2013, eleitos no passado dia 20 de Dezembro de 2010.
ASSEMBLEIA GERAL

Presidente: Silvano Manuel Santos Inácio Sócio nº 4693
Vice-Presidente: Iduino Manuel Nobre Vicente Sócio nº 1246
1º Secretário: Silvestre Brandão Félix Sócio nº 4275
Suplente: Miguel Nuno Pereira Forjaz Sócio nº 2403
DIRECÇÃO

Presidente: Joaquim Manuel Silva Duarte Sócio nº 3208
Vice-Presidente: João António Conceição Pereira Sócio nº 627
Vice-Presidente: António José Antunes Silva Valentim Sócio nº 4272
Vice-Presidente: Comandante do Corpo de Bombeiros
Tesoureiro: Ricardo David Palmeiro Abreu e Castro Sócio nº 5310
1ª Secretária: Ana Cristina Amada Correia Sócia nº 5276
2º Secretário: Jorge António Almeida Torres Sócio nº 3211
1º Suplente: Manuel Maria Nunes Sócio nº 4639
2º Suplente: Rafael Cabrita Martins Sócio nº 703

CONSELHO FISCAL

Presidente: João Alberto Rodrigues Peniche Sócio nº 3250
Vice-Presidente: Valentina Maria Azinheira Matoso Sócio nº 5081
Secretário Relator: António Augusto Batista dos Santos Bento Sócio nº 685
Suplente: Pedro Manuel da Costa Ventura Sócio nº 5268

Como se sabe, o novo Quartel está praticamente pronto e, muito em breve, assistiremos à sua inauguração podendo os Bombeiros de São Pedro ocupar a nova casa a que, há muito, tinham direito.

Silvestre Félix

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA - CAPÍTULO I - 1º PARTE - ANTES DE 3 DE JANEIRO DE 1975

A propósito do 36º aniversário da fundação da URCA, inicio hoje a publicação de um texto, em dois capítulos (antes e depois de 3 de Janeiro de 1975) e, por sua vez, dividido em duas ou três partes cada.
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O café do Cabaço, hoje fechado e com uma placa com o nome de “Almada”, era o nosso ponto de encontro. Era lá que se conversava, via televisão, lia as notícias, conspirava, namorava e também se comia, bebia, jogava matraquilhos e king, enfim, era a nossa segunda casa e, para alguns, quase a primeira.

Quando o Cabaço fechava, ainda subíamos o "curronquinho" (não sei a origem do nome nem se a palavra está bem escrita, mas era assim que chamávamos à rua que, mais tarde, seria batizada de “Ferreira de Castro”) e ficávamos à conversa, muitas vezes “subversiva”, na esquina da Ferreira de Castro com a MFA madrugada dentro, e sempre atentos a qualquer movimentação suspeita, a PIDE andava aí e não brincava em serviço.

O emprego frequente do pronome na primeira pessoa do plural (nós) é consciente. A intenção é passar uma ideia verdadeira de grupo que, de fato, existia. Éramos todos muito novos mas bastante responsáveis. Eu, era dos mais velhos e em 1974 tinha 20 anos. Não vou referir uma lista de nomes, porque posso ser injusto com alguém mas, não fugirei à verdade, se disser que os participantes nestas tertúlias, com mais ou menos assiduidade, constam nos fundadores da URCA.

No entanto, não posso deixar de destacar algumas pessoas da geração dos nossos pais que nos ajudavam a concretizar as nossas festas e realizações recreativas e culturais. O Saraiva da serração, que várias vezes nos emprestou as suas instalações para aí fazermos bailes ou programas de "variedades". O Cabaço e a sua esposa Silvina, que nos aturavam todos os dias, e, visto à distância, tinham muita paciência, o Joaquim Santos e a esposa Julieta que acompanhavam a filha Odete em reuniões do núcleo duro que, algumas vezes, foram feitas em casa deles.

O final de 1973 e o início do ano de 1974, já muito perto do 25 de Abril, foi um período bastante turbulento. Ainda em 1973 tiveram lugar as últimas pseudo-eleições promovidas pelo regime da ditadura, em que, muito embora tenham sido apresentadas listas de oposição, acabaram por desistir porque não conseguiam fazer campanha. Qualquer comício ou simples reunião promovida pela oposição, era invadida pela polícia com orientação da PIDE (nessa altura DGS). Um desses acontecimentos que conseguiu chegar ao conhecimento da generalidade dos Portugueses, foi a Convenção Democrática em Aveiro, em que os participantes eram em tal número, que a polícia+pide não conseguiu esconder, como sempre fazia.

O regresso de Spínola da Guiné e a publicação do seu livro “Portugal e o Futuro” em Fevereiro de 1974, o 16 de Março (levantamento militar do quartel das Caldas da Rainha) a ida da "Brigada do reumático" a S. Bento, discursos e contra-discursos, fazia com que andássemos um bocado agitados. Para temperar ainda mais o ambiente, chegava-nos todos os dias às mãos, propaganda contra a guerra colonial, contra o regime e a Pide, enfim, tudo o que o Governo da ditadura proibia e considerava propaganda comunista, anti-patriótica e subversiva.

Naquele final de 73 e princípio de 74, assisti várias vezes em Lisboa a investidas da polícia de choque. Ninguém queria ir para uma guerra, ainda por cima, para a Guerra Colonial que considerávamos injusta, não só para nós, como para os povos das antigas colónias. A Guerra Colonial era o motor mais visível da contestação ao regime, na população duma forma geral e dentro do regime, mas era uma realidade e eu, “assentaria praça” a partir de Janeiro de 1975, pelo que, não havia um dia, uma hora, que não me lembrasse disso.

No entanto, no meio de todas estas preocupações, a ideia de criarmos uma Associação de cariz cultural e recreativo na nossa Terra não esmorecia, pelo contrário, à medida que o tempo passava, mais se cimentava essa certeza.

(Continua)
(Texto corrigido e atualizado. Extraído da postagem de Silvestre Félix publicada no extinto blogue “Aldeia Viva” em 11 de Novembro de 2007)

Silvestre Félix
3 de Janeiro de 2011
Tags: URCA