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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (2ª PARTE)

As vacas no seu remanso pastam ou remoem, sim… remoem, estes animais são “ruminantes” têm um sistema digestivo diferente da maioria dos outros mamíferos, e, o remoer, é mastigar depois do alimento ser engolido, ou seja, vai a um compartimento do sistema digestivo e volta para cima outra vez, e aí, é mastigado ou, como popularmente se diz, remoído.

Bom… mas o que eu queria mesmo dizer é que, outra maneira de passar o período do pastoreio, demorando muito tempo contado em horas e às vezes dias, era tentar apanhar grilos e cigarras. Localizada a toca, pela chinfrineira do cantante, apanhava-se um “fenacho” (caule de feno seco) e enfiava-se pela toca tentando tocar no grilo ou cigarra, e eles, se isso acontecesse, rapidamente saiam da toca mesmo sabendo que corriam os riscos todos. Mas alguns destes bichinhos, também os há mais espertos que outros, tinham as tocas curvas, e aí, a coisa complicava-se.., por falar em grilos e cigarras, há muito tempo que na Abrunheira não ouço esta sinfonia, as cigarras então, de dia ou de noite nunca se calavam.

E as rãs? No rio das Sesmarias ou nos charcos, também coaxavam sem parar. E os morcegos à noite? Os morcegos de volta dos postes da luz à noite caçando os insectos, e o Julinho… com a cana na direcção do céu muito estrelado assim como se fosse sempre Agosto. Ele ia ao sebo que o Pai (o Zé da Natália) tinha para o calçado, besuntava a cana do meio para cima e, depois, naquela “lengalenga” chata, mas que o Julinho não interrompia e não deixava que ninguém o perturbasse na missão de céu estrelado e olhar esbugalhado, como sendo a tarefa mais importante do mundo… “morcego, morcego, anda à cana que tem sebo”… e no serão de Agosto, repetia, repetia… e lá estava o Julinho sempre naquilo.

Aliás, o Julinho era amigo dos mistérios magnéticos e eléctricos naquele tempo de escola primária, de imaginação primária, de tudo primário. Fomos por algum tempo colegas de carteira, carteira daquelas peças únicas com tinteiros à frente cheios de tinta para sujarmos os dedos de tinta e pintarmos a bata daquela tinta que devia servir só para as canetas de tinta permanente que nos obrigavam a utilizar em tempo moderno já de esferográfica. Ali nos sentávamos todos os dias lado a lado. O Julinho, de quando em vez, quando eu estava mais distraído, juntava uma ponta da sua bata, aquelas batas aos quadradinhos azuis, juntava dizia eu, uma ponta da bata dele à minha, e, num sussurro altamente misterioso, dizia; “… está a fazer contato …, está a fazer contato”… no dia seguinte e no outro e no outro e ainda no outro, sempre o mesmo contato, até que eu deixei de me assustar com o contato. Voltando ao mamífero com asas, não tenho memória que alguma vez algum morcego tenha pousado na cana com sebo.

Quando ia com o gado para o monte, só tinha medo das cobras, e havia muitas, se calhar também acabaram. Quando sentia alguma cobra desviava-me o mais possível, embora reconheça que algumas eram bonitas, vi algumas muito bonitas, mas que fossem para bem longe. E os lagartos? Lagartões é que eram, daqueles verdes bem grandes. Quem não tinha, e com certeza ainda não tem medo nenhum das cobras e dos lagartos, é o meu primo Fernando. Lembro-me de ele levar um lagartão verde para a porta do baile na “Sociedade”. Estava muita gente como sempre acontecia quando havia baile, e ele trouxe o lagartão com um cordel como se fosse trela, e começaram a dar aguardente ao lagartão. Não me lembro do fim da história do lagarto bêbedo, mas não deve ter sido agradável.

Muitas vezes, a caminho do monte com as vacas, cruzava-me com o rebanho de ovelhas do meu Tio João. Naquela época lembro-me de cinco rebanhos grandes na Abrunheira, alguns com mais de cem animais. O do meu Tio João, do meu Tio António e do Chico, marido da Maria Augusta, o do Ti Veríssimo, o do “Espanhol” que viria a ser sogro do António “Calmeirão” e do Ti Rafael Miranda. Não gostava de me cruzar com as ovelhas porque as nossas vacas não se davam lá muito bem com elas e demoravam muito tempo até que passassem todas. Gostava e passava muito tempo a ver o meu Tio João a tratar delas no redil. Fosse a mungir, fosse a arranjar-lhes as unhas, a tratar dos borregos, etc., etc. Houve um ano em que a minha Mãe me deixou criar uma borreguinha que ficou órfã. É verdade, criamo-la em nossa casa a biberão, como se fosse um cão ou um gato. Andava atrás de mim para todo o lado e foi assim até ficar ovelha adulta, aí teve de regressar ao rebanho do meu Tio João. Chorei porque não queria, mas tinha de ser. A minha ovelha rapidamente se adaptou ao rebanho, e quando me via ou à minha Mãe, fazia um pequeno desvio abanando o pequeno rabo, ajeitava-se para lhe fazermos uma pequena festa, e voltava toda contente para o seu rebanho.

Na casa do olival, a maior festa era na época dos figos. O quintal da casa transforma-se em albergue infantil. Nesta altura de verão, servindo as figueiras de poleiro, e a pança a abarrotar de figos de capa-rota e beiços gretados do leite derramado, recuperávamos as oficinas de carrinhos de arame. O Zé Fernando, grande especialista, o Fernando Pedroso, o Zé Augusto, o Filomeno Caravaca, o Rui, quando a Mãe lhe dava soltura, também levava jeito. Eu fornecia os arames. Todos os dias, depois de minha mãe desatar os fardos de palha e feno para dar às vacas, lá estava eu atento a poupar-lhe o trabalho e, com a justificação habitual, lá levava os arames para a nossa oficina. Os carrinhos mais simples faziam-se num arame inteiro com um eixo aí de 30 centímetros e duas rodas (feitas com o arame) nas extremidades. Depois, uma cana, aí entre um metro e trinta e metro e cinquenta, conforme a altura do condutor, que uma das pontas encaixava no eixo explicado antes. Na outra ponta da cana, era aplicado um guiador feito também com arame e, de lado, também tinha a manete de mudanças. A condução era feita com a cana inclinada de forma que as rodas cumprissem a sua função.

E assim se percorriam os caminhos da Abrunheira, ora para baixo, ora para cima, e o tempo contado em horas… em dias… meses… em anos… e os Pais e as Mães e os “Putos da minha Terra”.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (1ª PARTE)

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto. Naquela época, quase todos os rapazes como eu, contados em tempo de idade nos 7,8,9 ou 10 anos, tinham algumas obrigações domésticas que passavam, invariavelmente, pelos cuidados ou acompanhamento dos animais da casa. Não proso de cães e gatos que de estimação ou companhia já o eram há 50 contados em anos de tempo, mas, das vacas, ovelhas ou cabras, que de estimação também seriam mas de serventia essencial no sustento da barriga e no mealheiro acolchoado. Na mesma onda e garantia de subsistência, era carinhosamente passado pela engorda o porco engraçado e inteligente que, ao engano, lá caminhava para o cadafalso traiçoeiro e tornado no centro das atenções pelos seus carrascos, antes, alimentadores. As coelheiras e capoeiras sempre abarrotadas completavam a galeria zoológica de grande parte das casas da nossa Terra.

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto e carinho pelos animais que a minha Mãe criava. Esta Abrunheira, Terra de abrunhos e Abrunhenses, abraçada pelo rio das Sesmarias, era, até há 50 anos, zona agrícola como toda esta nossa região de Sintra e Saloia.
Por esta altura começaram a aparecer as primeiras fábricas. Aqui mesmo na Abrunheira, a SINCAL. Os edifícios ainda lá estão como eram, em frente à rotunda da bomba de gasolina, embora de uso e marca diferente. Muito perto, junto à antiga estrada Lisboa/Sintra do lado de Mem Martins, a Resiquímica e logo depois a Adreta Plásticos. Ambas ainda de pé e empregando muitos moradores da Abrunheira ao longo de todos estes anos até hoje. Logo rápido se seguiu outra… outra e mais outra e, nunca mais parou até meados da primeira década do XXI. Agora, nestes tempos de aperto e de crescimento do número de furos no cinto, resta-nos os templos do consumo – Retail Park e futuro Forum Sintra.

Voltando ao antes da nossa revolução industrial, a Abrunheira era 100% agrícola. Percorríamos a única rua, que é hoje a MFA, e tínhamos um autêntico tapete de saudável bosta de vaca e caganitas de ovelha, que, aumentava de altura, junto ao bebedouro do chafariz e do Stº António. À volta da Abrunheira víamos todas as terras cultivadas. Da janela da minha casa, na altura, ou da varanda da casa do meu Avô, via, em direcção à Colónia (EPS), à direita a quinta do Anjinho os “Barros” e Ranholas, à esquerda o Linhó e ainda mais à esquerda, até ao Chico da Beloura. As searas dançavam ao sabor do vento, e com tonalidades diferentes, porque se no "Serrado da Fonte" se semeou cevada, na "Mulata" se semeou aveia e nas "Ferreiras" trigo, ao longe os tons são ligeiramente diferentes. Os "Celões", de tão grande que era, (parte considerável do que hoje é a Qtª da Beloura) havia anos que se dividia em, uma parte de trigo, outra de cevada e outra de aveia. E a debulha ?? Quinze dias no "Cerrado da Fonte" aquela máquina enorme, com rodas enormes, com uma correia enorme, que não se cansava de debulhar grão e enfardar a palha. Quinze dias para o meu Avô de quem herdei o nome, e a máquina sempre, sempre a trabalhar, sempre a fazer barulho muito barulho e os homens sempre a trabalhar e as mulheres sempre a trabalhar, sempre, sempre.... sacos de trigo, cevada, aveia, fardos de palha, muitos, muitos, depois, de repente, fica só o silêncio... e os homens trabalham e as mulheres trabalham, sempre, sempre....
Todas estas parcelas eram percorridas depois das colheitas e debulhas pelo gado que acabava com a esteva e o restolho até virem as primeiras chuvas de Setembro. Muitas vezes eu fiz parte dessa caminhada com a "Briosa", a "Malhada" a "Bonita", a "Carocha", a “Estrela”, a ...., nomes que a minha Mãe dava às suas vacas mães e depois às filhas e depois netas... sempre, sempre pelos anos fora, e eu, que lhe dava jeito porque tinha gosto, repetia os nomes e os carinhos e festas como a minha Mãe fazia. Levar as vacas ao monte…, levar o gado ao monte, era assim que se dizia e eu levava e gostava e ficava o tempo que fosse preciso, até a sombra do pauzinho espetado na terra atingir o risco que eu de manhã tinha feito na direcção da Quinta do Anjinho, ou, se fosse à tarde, na direcção de casa. Era o primitivo relógio de sol que eu sabia regular e marcar conforme o sítio onde estivesse. Algumas vezes as minhas vacas também sabiam contar o tempo, e, quando isso acontecia, mais ou menos no tempo do pauzinho espetado no chão, encaminhavam-se para o sítio de saída, na direção de casa.
Como eu, havia outros rapazes que levavam o gado ao monte. O Marinho, uma vez, adormeceu com as suas ovelhas e já era de noite e toda a gente, de lanterna na mão, à procura do Marinho. A Abrunheira mobilizou-se inteira buscando o Marinho e lá estava ele são e salvo. Mas só adormeceu, não aconteceu mais nada.
Enquanto o gado pastava, e andava, e descansava e voltava a pastar outra vez, eu tinha as minhas brincadeiras e não dormia. Brincava (construía) aos fornos de cal, esta brincadeira podia demorar vários dias, porque era preciso sustentar a abóbada com pedras bem a jeito para a função. Daí ser empreitada iniciada quando sabia que ia alguns dias para aquele sítio. Por vezes era necessário levar pedras pelo caminho, e chegado lá, continuar a paciência. Sim! Era uma brincadeira de paciência. Quem sabia melhor fazer (brincar) fornos de cal era o Zé Fernando. Ele às vezes ia com o Pai, o Ti Abílio, ao forno onde estava a trabalhar e o Pai dizia-lhe tudo, explicava em pormenor os segredos de construção do forno de cal. Lembro-me que o Ti Abílio tinha muito jeito para a rapaziada nova. Às vezes eu ia brincar com o Zé Fernando e gostava muito de ouvir as histórias do Ti Abílio. Há muitos anos que não falo... falar, conversar mesmo, com o Zé Fernando, e quando damos por nós, já passou muita idade, sim, idade que é aquele tempo contado em anos de vida vivida. Naqueles fornos de cal, para o Ti Abílio, o tempo eram meses e meses contados em molhos de lenha para a fornalha que do lume infernal se queria que derretesse a pedra que havia de ser cal para construir e caiar de branco as paredes das casas dos muros dos prédios e para as valas dos defuntos sem campa sua. “Não vás filho, o forno está muito quente e é perigoso, não te chegues perto!” O cuidado de minha Mãe. Ela tinha medo dos fornos de cal. Falava sempre de um desastre há muito tempo contado em anos e em sítio indefinido. Caiu e as chamas queimaram tudo à volta. Está bem Mãe, eu não vou para lá. Na ponta de cima dos “Celões”, os limites do horizonte pareciam não ter fim. Tudo admirava e tudo via lá de cima. A sombra do “pauzinho” não pára – anda devagar… devagar… no silêncio…

(Continua)

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix