sábado, 9 de abril de 2011

DIREITO DE SONHAR!

Pelos traços e caminhos da minha juventude, acontecidos dentro do apertado perímetro da Abrunheira que muitos sempre gostavam de lhe chamar – Brasil e encavalitado nos andantes de ferro abarrotados de outros e outras que, depois de concluído o sagrado complemento de descanso noturno, me despejavam na grande cidade louca de andarilhos logo pela manhã.

Nas minhas andanças, fosse pela borda do Tejo com ou sem “Tallon” sempre à vista daquela janela do terceiro andar, fosse na ida e volta dos andantes nos carris de ferro, na romântica beira da nossa serra com cheirinho a sintrenses queijadas e travesseiros ou na tranquilidade da nossa Terra, sempre me acompanhavam o “Faladura” e o “Caladinho”!

“Cuidados e caldo de galinha, nunca fizeram mal a ninguém!”

O Faladura era bem mais descuidado e muitas vezes inconveniente num tempo de domínio pidesco. Muitas vezes o alertávamos para as possíveis consequências, mas ele pouco ligava. O Zé Carmo Silva era o mais sabedor das técnicas de despiste da “bufaria”. Tinha a experiência do sítio universitário onde a pide atuava em permanência. Eu era aprendiz e, a pouco e pouco, ia aplicando, à laia de teste, algumas dessas técnicas. O Faladura abusava, principalmente, quando estávamos no café do “Manel” ou no “Cabaço”. Ainda por cima havia pessoal mais novo que, embora já nos acompanhasse, ainda não estava consciente do mundo salazarento em que vivíamos. O Faladura era aquilo a que costumamos chamar – “Espalha-brasas”. Houve ocasiões em que ficamos com dúvidas que a indiscrição do Faladura não tivesse trabalhado nos tímpanos de algum zeloso servidor da pide. Não foram poucas as vezes que nos sentimos perseguidos nas nossas andanças. Alguns cantos da Abrunheira conheceram bem as nossas tertúlias secretas em que, muito mais tranquilos estávamos, sem a participação do Faladura.

O Caladinho era o contrário. Quando o Zé Carmo Silva chegou ao seu convívio, já ele dominava tudo o que era “resistência” à pide e aos seus “bufos”. De tão cuidadoso, até metia impressão. Não dizia uma palavra que fosse, sem olhar em redor pelo menos duas vezes cruzando o movimento do pescoço para se certificar que não havia mais ninguém num raio de 100 metros. Fazia sempre isto, mesmo que o tema de conversa não tivesse nada susceptível de ser considerado subversivo pela ditadura. O Caladinho conhecia bem a situação e, da Abrunheira, conhecia bem as moradas que deram serventia a opositores do regime. Sabia até quem se tinha escondido em cada uma delas e o tempo que lá estiveram, com datas e horas das entradas e saídas. Na verdade, o Caladinho, como a própria alcunha diz, estava quase sempre calado. Era mais de: Olhar para ver, ouvir, ler e escrever. Andava sempre com um pequeno bloco de notas onde, quando menos se esperava, desatava a escrever. Havia dias em que trazia também um livro debaixo do braço. Era estranho porque o livro tinha sempre a mesma capa – totalmente branca! Claro que não era a capa do livro. O que o Caladinho fazia era forrar com uma folha branca qualquer livro que trouxesse para a rua. Assim, os “bufos” não conseguiam ver que livro era e, no caso do Caladinho, quase sempre se tratava de leitura proibida. Lembrando-me do Rui, do Caravaca, do Fernando Pedroso, do Mário, do Zé Fernando, do Carmo Silva, do Zé Alentejano e dos mais novos Zé e Fernando Marques, Paulo, etc., etc. a quem nem sempre encaixava bem este comportamento. Depois das explicações que o Caladinho – com muito cuidado e olhando bem em redor – lhes dava, toda a gente entendia e, ao mesmo tempo, ficavam com mais uma lição aprendida.

Nas sessões de matraquilos, por exemplo, enquanto o Faladura dava largas à sua capacidade vocal, estivesse a jogar ou na posição de espetador, o Caladinho que jogava bem e preferia a defesa onde, em muitas partidas, metia mais bolas na baliza adversária que o parceiro do ataque, não festejava as bolas a seu favor nem comentava os golos que sofria. Eu, embora na altura visse as diferenças entre um e o outro, só muito mais tarde percebi bem o significado de uma e de outra atitude.

Naqueles anos de crescimento demográfico da Abrunheira em que o pouco alcatrão da (hoje) MFA, só ia até 100 metros antes da delegação da Junta e que a do Forno ainda não era porque o forno do Cipriano ainda lá estava e fumegava, em que a Ferreira de Castro ainda era “curronquinho” e, vinda de cima, parava logo a seguir ao Cabaço, em que URCA era sonho e muito menos a Humberto Delgado que de carrascos e silvas se via farta e batizada de Caracol, em que o “clandestino” Carrascal que toda gente sabia e via, viria a vestir-se de símbolos de LIBERDADE com a rua 25 de Abril, 1º de Maio e da Liberdade. Naqueles anos em que se aproximava rapidamente a minha hora da tropa e, quem havia de saber, da Guerra Colonial, não fora o: E depois do adeus” e a “Grândola Vila morena” com um mar de cravos vermelhos nos canos das espingardas.

Naqueles anos, UM Faladura e UM Caladinho eram meus companheiros inseparáveis.

Tenho a certeza, no entanto, que muitos outros abrunhenses da minha geração tiveram também por companheiros outros tantos “Faladuras” e “Caladinhos”.

Na Abrunheira, em 2011, também há juventude com muitos problemas e, uma boa parte, identificar-se-á com os movimentos contestatários que ensaiam a grande ação de indignação que, mais tarde ou mais cedo, se mostrará.

Em momentos diferentes, com medidas de grandeza muito distantes, a minha juventude e a de 2011 tiveram e têm o direito de sonhar!

Silvestre Félix

9 de Abril de 2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

AGRADECIMENTO

Estamos em Abril – mesmo que este esteja um bocado nublado com a frente negra que se aproxima vinda do fundo europeu de estabilização financeira (FEEF) e doutras siglas menos recomendáveis – e é o tempo adequado para saudar os amigos.


Tenho a obrigação de transmitir o meu agradecimento pela forma como o “Largo do Chafariz” tem sido acompanhado, comentado e partilhado por parte considerável dos membros do grupo de seguidores no FB e também diretamente no blogue.


Aproveito para incentivar os membros do grupo de seguidores a sugerirem a adesão de pessoas interessadas e que não seja do meu conhecimento. Sempre que isso aconteça, enviem-me mensagem FB para eu poder adicionar.


Um Abraço

Silvestre Félix

quarta-feira, 6 de abril de 2011

“LINHAS” DE HISTÓRIA!

Do Coutinho que era Bernardino, algumas linhas de histórias já contei porque ouvi, e outras também porque inventei. Para personagem Abrunhense tão cheia de eventos narrados pelos nossos melhores contadores, não há linhas que cheguem, e o tempo já contado em muitos anos produz muitos cordéis de prosa. Dando de barato que o Mário, o Rui ou o Zé Fernando, conheceram e se lembrarão do Bernardino que todos chamavam Coutinho, o mesmo já não dou como certo que conheçam o enredo de cheiro pouco recomendável, que a seguir vou bater neste teclado “Samsung” marcado.

Já agora, convém lembrar que este Bernardino é o mesmo que passou a ser Coutinho quando, com o também já nosso conhecido Francisco Borrego se emparelhou e, juntos, quiseram repetir a façanha de Gago Coutinho e Sacadura Cabral de voarem até ao Brasil, empoleirados numa geringonça que de aeroplano só tinha a imaginação incontida destes dois marmanjos Abrunhenses por adoção. Do dito voo abortado antes de o ser, já aqui dei conta, explicando como de Saloios Abrunhenses, viramos dum dia para o outro, Brasileiros. Este, que viria a ser Coutinho nesse tempo contado em anos lá para a frente, ainda era rapaz com cheiro a cueiros e com o nome bem assente de Bernardino – que, sua Mãe, Ti Mariana Soleto, verbalizava “Benardine” de cada vez que o chamava, que não eram poucas – é a personagem principal das linhas tecladas adiante.

De preâmbulo muito longo para a prosa planeada, que é então protagonizada pelo Bernardino que ainda não era Coutinho, tem a ver com uma alfaia agrícola que deu o nome a um dos famosos restaurantes da nossa Terra – O Trilho!

Os trilhos existiam porque nas eiras funcionavam e, na Abrunheira, muitos houve. Muito perto daquele santuário onde refeições se devoram, havia uma eira que o Francisco Borrego lhe deu uso, sem traições de memória, vejo bem outra em frente à antiga “sociedade” da Abrunheira, outra logo a seguir do mesmo lado onde o meu Avô muita semente separou e, mais abaixo, outra do Espanhol que o “Calmeirão”, seu genro, nunca nada lá trilhou, pelo menos que me lembre.

A “eira” era construída com ciência da época. Normalmente redonda com lajes de pedra e, de preferência, em sítio ventoso. O “trilho” era normalmente puxado por bovino com redondos de madeira passando por cima dos cereais e “trilhando” os invólucros das sementes, fazendo com que estas saíssem. Depois, com uma espécie de forquilha de madeira, levantava-se a palha, começando pela mais grossa, até ficar a semente toda à vista na laje da eira. O vento levava a palha mais fininha. Chegava a hora de recolher as sementes em sacos, e recomeçava outra eira. Entretanto, e como se tratava de operação limpa, era preciso garantir que os animais não sujassem (bostassem) a eira com as pesadonas bostas de merda. Então, o próprio trilho, tinha um acento para uma pessoa se acomodar com uma pá disponível e atenção redobrada, para, quando o boi resolvesse deitar bosta, essa pessoa, de pá em riste, apanhasse ainda no ar e quentinha, a bosta de merda. Bem, é realmente uma conversa de merda, mas é aqui que entra o Bernardino que ainda não era Coutinho, nesta época ainda rapazola, e fazendo este trabalho para o Mané (Manuel) Guilherme, Pai do nosso conhecido, “Pechincha” (António Guilherme).

Ia cumpridor aquele Verão de “calorzito” como manda a regra e mando eu. Sim, porque a circunstância de juntar estas letrinhas todas, dá-me com certeza o privilégio de inventar qualquer coisa, nem que seja o estado meteorológico da Abrunheira naquela época. Sabendo que a tradição já não é o que era, e que em 2011 vamos encarando coisas verdadeiras como autênticas aves raras, acho que ainda consigo fazer crer que naquele Verão, a nortada ventava como ainda hoje, embora o conteúdo esteja mais consistente, lá vem dívida soberana, juros altíssimos, austeridade, enfim, ventos fortes que são prelúdio de tempestade.

No entanto, com mais ou menos calor e de preferência com vento, aquela transição do Julho para o Agosto era o período de ponta de utilização das eiras. E era exatamente por isso que lá estava o Mané Guilherme de volta do Ti Vitor a dar-lhe conta da necessidade do seu filho e rapazola Bernardino, que ainda não era Coutinho, se sentar levezinho na traseira do “trilho” com o aparador de “bosta” para que a semente fosse recolhida e ensacada livre de “merdança”.

O Mané Guilherme, Pai do nosso já referido e conhecido “Pechincha”, que lembro sempre ligado à fruta de época com armazém logo a seguir à antiga “Sociedade” na esquina da azinhaga para o nosso rio das Sesmarias e em frente à horta do “Manel da Colónia”. Naquele armazém se escolhiam as laranjas, as maças, as peras e sei lá mais o quê. Só sei que quando era tempo deste trabalho os “putos” Abrunhenses não largavam a porta e, nunca perdiam o tempo porque o Pechincha era uma boa pessoa e distribuía fruta pelo pessoal. O seu homem permanente na Abrunheira era o Ti Mendes protegido da “Mariazinha” que era mulher do Pechincha. A figura do Ti Mendes era de velhinho com grandes barbas brancas e cachimbo de cana sempre feito pelo próprio. Eu assisti à “construção” do cachimbo mais duma vez, como também já aqui contei.

Bom, voltando ao Pai do Pechincha, o Mané (Manuel) Guilherme e ao nosso conhecido Bernardino que ainda não era Coutinho.

O Mané Guilherme, homem de arca cheia, terra muita e de produção variada, vivia com a família onde é hoje a casa do Eurico Pinto, ou ao lado, na que está ligada à antiga “Sociedade” onde depois conheci de lá morador, o Ti Simões, salvo erro, Avô do Zé Fernando. Seria numa ou noutra e a sua eira era em frente, onde, neste ano de crise “a dar com um pau” e com eleições à porta, existe uma moradia.

Ah rapaz!! Endireita-me esse aparador, olha que o animal vai cagar agora, oh rapaz! Olha-me p’ra frente, ah rapaz isto…, oh rapaz aquilo, e o Bernardino que ainda não era Coutinho que gostava era da arte de “Cabouqueiro” e queria aprender a “Ciência da Pedra” e que naquele tempo ainda não sonhava levantar outros voos, já não tinha paciência para aturar o Mané Guilherme, e, num minuto de desespero, desce do assento do trilho, atira com o aparador da merda e, perante a estupefacção do Mané Guilherme, o Bernardino que ainda não era Coutinho e que a Ti Mariana Soleta dizia Benardine, disparou na sua direcção:

Estou farto de o ouvir falar em merda!

(diz Mané G) Mas oh Bernardino, volta pró assento do trilho senão o “malhado” caga-me a palha toda!

(diz Bernardino) o quê? Vá você! E desata a correr desaparecendo na direcção do Chafariz.

O Mané Guilherme não podia levar à paciência e até espumava p’la boca, considerou uma grande ofensa porque o rapaz o mandou “prá merda”. Para ele, homem de arca cheia, que até nem era homem mau, ir para o assento do trilho era indigno. A função era menor e só cabia na medida dum rapazola e, de preferência, de família serviçal e de arca vazia. Sabemos nós, do Bernardino que ainda não era Coutinho a gente já sabe muita coisa, que não era isso que o rapazola queria dizer, simplesmente que fosse ele (o Mané Guilherme) para o assento, mas o homem estava numa onda diferente e entendeu pelo pior e foi logo desenrolar a fita à mulher:

Então não querem lá ver, o rapaz do Vitor mandou-me à merda!

O quê? (Pergunta a mulher)

Sim, mandou-me à merda, (nisto chega o Ti Vitor). Oh Vitor, sabes o que é que o teu filho fez?

O que foi? (pergunta o Ti Vitor) Mandou-me à merda. (responde o Mané G)

O quê? Não pode ser! (diz o Tio Vitor)

Ai pode, pode! (diz o Mané G)

Logo de seguida chega a Ti Mariana Soleta e diz o Ti Vitor; Então não queres saber?

O que é que foi “Bitro”? (pergunta a Ti Mariana)

O Bernardino mandou o Ti Guilherme à merda.

O quê? (pergunta a Ti Mariana)

Bom, meia - hora depois, toda a gente na Abrunheira já sabia do sucedido.

Moral da “estória” – Dos bons exemplos devemos ter em conta, dos maus também e, aqui, neste caso, uma palavra mal compreendida pode criar grande confusão. Com muito tempo passado e contado em muitos anos, devemos estar atentos e de olfacto bem apurado porque… nunca se sabe o que vem por aí.

Das famílias aqui prosadas só bem se deve reter. Uma, porque de modesta e humilde se tratava mas de honestidade e honradez nos píncaros, a outra de posses bem garantidas mas igualmente honrada e honesta na Abrunheira doutros tempos.

Silvestre Félix

quarta-feira, 30 de março de 2011

DÉCADA DE 70

Para que ninguém colha a ideia de que na década de 70 do século ido, na Abrunheira, a juventude seguia à risca todos os padrões da geração mais velha no que respeita a bom comportamento, tenho de vir aqui dizer a verdade, deixando muitas dicas para que cada um possa fazer o seu juízo.

Havia os que se portavam bem, os que se portavam mal e os assim-assim. Também havia, admito, quem não se enquadrasse em nenhuma destas situações e tudo fizesse para passar despercebido.

Eram tempos de preocupação de trabalho, de tropa e do que fazer com uma guerra no horizonte. Tempos também de namorar a sério e a brincar e de saber como elas iam convencer os Pais na saída dominical para, pelo menos, uma ida ao Cabaço.

Eram tempos de organizar bailaricos em alguma garagem ou na adega do Pai do Zé Carmo Silva e discar vinil quantas vezes necessário fosse para se sentir a proximidade do corpo do par e, com intervalos de semanas, voltar a tocar-lhe, pelo menos, nas mãos. Naquele início da década, a “química” já tinha sido descoberta, embora dando os primeiros passos na investigação. As paixões iam e vinham, passavam ao lado e de lado. Tempos também de petiscos e “pielas” de “caixão à cova”, quase sempre disfarçadas com onda bem humorada e risada incontida à sobremesa.

Eram tempos na Lagoa de Albufeira com longas noitadas de cantoria, petisco bem regado e depois com a aprendida guitarrada do Zé Barros. Nova estação em tempos de namoradas novas, água tépida, boa temperatura e muita areia agarrada ao pêlo.

Eram tempos de muitas horas levadas em torneios de matraquilhos e mesas infindáveis de king. De matraquilhos, na Abrunheira, havia a primeira e a segunda divisão. O terreno da primeira divisão era no café do Manel (café Brasil na Av. Dos Combatentes). Aí se defrontavam os melhores jogadores: Pézinhos, Fernando Martinho, Baptista, Chico Cruz, António e Zé Nascimento, José Duarte, Durães e muitos outros. A segunda divisão jogava no café do Cabaço. Os jogadores eram mais novos e, a grande ambição, era um dia poderem emparceirar ou defrontar os da primeira divisão. Eu fazia parte desse grupo com o Rui Simplício, Zé Marques, Fernando Marques, Zé Carmo Silva, Fernando Matos, Zé Alentejano, Pele e Osso, Mário Martinho, Zé Fernando, Vicente, Fernando Pedroso, Filomeno Caravaca e outros que, por causa deste meu litígio permanente com a lembradura de nomes, não me deixa acrescentar mais.

Também eram tempos de cartas. Mesmo no Cabaço jogávamos ao King. As noitadas eram muitas vezes passadas na adega do e nunca tínhamos limite de tempo para terminar.

Eram tempos de coisas sérias e nunca ajuntamentos suspeitos antes de 74. Eram também tempos de medo. Eles, os da pide, andavam sempre por aí. Aprendíamos cedo a mudar de conversa quando alguém com perfil de “bufo” se chegava perto. Depois dos da pide terem arreado as calças, os espíritos se abriram, começamos a ir mais ao cinema e até podemos finalmente ver “O último tango em Paris” com o Marlon Brando e a Scheneider, o “Garganta Funda” e todos os que apareciam da série “Emmanuel”. Na mesma onda, os bailaricos do começaram a ser mais frequentes, cada vez havia mais vinil e os pares já se tocavam mais. Os tempos eram de ventos fortes com um novo ar e, todos nós tomamos bebedeiras desse novo ar e de tudo o que nos punham à frente – às vezes até demais.

Eram tempos para pôr em prática as ideias boas. Antes o JURA no Algueirão e depois a URCA aqui na Abrunheira passaram a dominar as vidas da nossa juventude que continuava a namorar, a apaixonar-se, a ir para a Lagoa, a jogar aos matraquilhos, a jogar ao king, à lerpa, ao futebol e a portar-se bem, mal ou assim-assim!

Silvestre Félix

sexta-feira, 25 de março de 2011

PORQUE NOS CHAMAVAM BRASILEIROS

Em plena segunda década deste século vinte e um, em dias de terramotos e tsunamis devastadores e crises de dívidas soberanas que já nada têm que ver com soberania, quase não se ouve e, mesmo eu, de certeza não entenderei à primeira, se alguém me chamar “Brasileiro”. Até há tempos, contados em vinte e cinco ou trinta anos, ainda era comum: em Albarraque, no Linhó, em Mem Martins, em Rio de Mouro ou em Ranholas, referirem-se aos Abrunhenses de Brasileiros e à Abrunheira de “Brasil”.

Porquê? O que tinha a Abrunheira a ver com o Brasil? Na verdade existe uma justificação para isso e a história pode ser contada mais ou menos assim:

O feito dos nossos heróis, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, saindo de Lisboa no hidroavião "Lusitânia" em 30 de Março de 1922, fazendo a rota do Atlântico Sul e chegando ao Rio de Janeiro no Hidroavião Santa Cruz a 17 de Junho de 1922, teve um alarido muito grande em todo o País. Era uma época em que os valores e a auto-estima estavam de rastos por cá (em termos de níveis, não andarão muito longe dos de hoje) e, um feito destes, foi festejado como se tivéssemos voltado ao tempo dos descobrimentos. O que é verdade é que esta viagem dos dois Portugueses ficou na história da aviação civil mundial. A primeira travessia do Atlântico Sul aconteceu, fundamentalmente pela tenacidade e coragem dos dois aviadores e são essas qualidades que se destacam no imaginário dos portugueses anónimos, mesmo daqueles que nem sequer faziam ideia aproximada do que era um avião, ou, como à época se dizia, um aeroplano, ou ainda, neste caso, um hidroavião.

Na Abrunheira o acontecimento também foi vivido com o mesmo entusiasmo. Foi de tal forma que houve quem quisesse imitar os Heróis Nacionais. E logo eles que nunca tinham visto um “passarão” daqueles nem nunca tinham falado com alguém que o tivesse feito por eles. Bom, mas coragem não se mede e lá se atiraram à tarefa.

Um dos protagonistas, o Francisco Borrego, morava num casal saloio onde é hoje a Rua da Escola, em frente à Rua de S. José e era familiar do Mário e Paulo Martinho. Tenho ideia de ser só agricultor, não me ocorre que fosse encartado em qualquer outra arte. O outro era o Bernardino, marido da Judite Caracol e tinha a arte (como ao tempo se dizia) de cabouqueiro. Nas horas de retórica alcoolizada, dava-se a conhecer à plateia como sendo o único cabouqueiro possuidor da “Ciência da Pedra”. Passando à frente da retórica, continuemos a identificação dos atores principais; A quinta do Caracol Velho (que fumou cachimbo até morrer muito Velho) era quando se desce a Rua Humberto Delgado, a seguir à Quinta do Azevino do mesmo lado. Pois o Bernardino, genro do Caracol Velho, era homem de músculos, designação incluída no pacote da já dita “Ciência”. Contava-se que, na taberna do Faial, hoje da Viúva Maria do António José e Filha Isabel, este homem, que se chamava Bernardino, levantava com os dentes, barris de vinho de 50 litros e sacas de farinha do mesmo peso. Este Bernardino, ainda me lembro (aqui já era também Coutinho) de o ver de picareta nas unhas (mãos) a abrir valas para a colocação da água canalizada que vinha aí à pressa, pois já estava atrasada, mas, finalmente, a chegar à Abrunheira… Era um homem forte até que, a curvatura em peso do Tempo contado em anos de idade começou a ser grande. Também me lembro de ver este Coutinho que era Bernardino arrastar os pés pesados pelo Tempo que passou.

Quando ainda eram novos, lá por alturas de 1922/23, e como também queriam ser heróis, o Bernardino e o Francisco Borrego construíram como puderam, e com a ciência que a vivência lhes deu, um aeroplano que, para eles, representava o "Lusitânia". Levezinho, menos de um terço do tamanho real, para que fosse possível utilizar como rampa de lançamento um "zambujeiro" (parente pobre da oliveira) aqui por cima das "pateiras". (É preciso que se diga, para que não sirva de argumento palaciano, que o local pode muito bem não ter sido o indicado, mas, que fazer? Nenhum deles pela terra ainda anda de forma que me possam confirmar o sítio. Nesta conformidade fica dito e redito que, para os devidos efeitos, o sítio é mesmo este.) Claro que a rampa de lançamento não foi suficiente para que o Coutinho, ainda Bernardino, e o Francisco Borrego, conseguissem concretizar o seu sonho… voar como faziam os pombos, as rolas, os melros e pintassilgos, sim… porque o “Lusitânia”, ou qualquer outro aeroplano, eles nunca viram, daí acreditarem que bastava construírem uma coisa com asas para poderem levantar voo e irem até ao Brasil, que a vivência e muita imaginação lhes dizia que era já ali. Pois é, o trambolhão foi instantâneo, assim que fizeram peso no "hidroavião" em cima do zambujeiro, caíram com os quatro costados no chão e assim se acabou a viagem até ao Brasil. De plateia convidada e mirones metediços, não seriam muitos abrunhenses mas, ainda assim, mais que suficientes para acudirem às mazelas dos “aviadores” improvisados e propagarem a dececionante aterragem forçada pelos “ouvidores do reino”, dentro e fora de portas.

Mas se aqui acaba a história do voo até ao Brasil para o Bernardino que passa também a responder como Coutinho e para o Francisco Borrego que, a partir deste dia fica colado ao Sacadura, também aqui começa outra história. À conta deles, e porque o Salazar ainda não tinha descido à Capital, sem canga, sem pide nem censura, os vizinhos de Albarraque, Linhó, Mem Martins, Rio de Mouro, Ranholas e doutras terras ainda mais longe, em jeito de chacota, começaram a chamar-nos "Brasileiros" e à Abrunheira "Brasil".

Não é por acaso que o café na Av. Dos Combatentes, em frente ao Trilho, se chama "Brasil”. Exactamente…, por causa da história do Coutinho que era Bernardino e do Sacadura que era Borrego. Na época da inauguração do Café Brasil pelo "Manel do café", lá pelos meados da década de sessenta, ainda era normal nos arredores chamarem"Brasil" à Abrunheira e a nós, os de cá, "Brasileiros". Na ida de manhã ou no regresso à noite, nos andantes da alva como cal “Palhinha” ou da azul celestial “Boa Viagem”, era frequente dizer-se como destino de viagem, “Brasil” em vez de Abrunheira. Esta história de Abrunhenses e Brasileiros não ficava completa sem, a propósito do Café Brasil, dizer que o “Manel do Café” era genro do autêntico Saloio "Sabino", homem grande que fazia dois de mim, e que tinha tanto de grande como de bom. Usava barrete, aquele barrete preto à Saloio, e aquelas calças de cetim que apertavam até por cima da barriga com a devida saliência, e também aquelas camisas que hoje só costumamos ver nos trajes dos ranchos folclóricos.

Também não é por acaso que à rua que vai da esquina do Ti Alexandre pela direita, ficando as “pateiras” à esquerda, lhe foi dado o nome de Gago Coutinho. Tem a ver com a aventura do “Lusitânia” e, por isso, perto do local onde tudo aconteceu.

Em 1975, aquando da fundação da URCA, muito se conversou e muito barro à parede se atirou, sobre que emblema e símbolo devíamos adotar ou criar, para a nossa coletividade. Ainda a propósito da brasilidade da nossa Terra, o emblema criamos, e as cores que lhes juntamos foram, nem mais nem menos, as cores do Brasil – O amarelo e o verde!

A nossa Terra tem passado e os seus filhos tiveram, e têm que continuar a ter futuro. O Coutinho que era Bernardino e o Borrego que não era Sacadura estão na nossa memória e, ficarão, ligados à história da Abrunheira!

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, tendo sido alguns publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)
Silvestre Félix

sábado, 19 de março de 2011

O NOSSO CINEMA PARAÍSO…

Chegou sem avisar numa carrinha com duas portas atrás e, no meu olhar de criança, muito grande, grande demais. Entrou no lugar e logo fez duas ou três voltas de cima para baixo e de baixo para cima, e, de altifalante ligado…. “Atenção! Atenção! hoje… às nove e meia da noite… cinema nesta localidade…o espectacular filme – TARSAN! O HOMEM MACACO. Não percam, logo, pelas nove e meia da noite, na Sociedade da Abrunheira, Tarsannn!!! O Homem Macaco”… e repetia, repetia…., metendo, de vez em quando um separador musical, que, quase sempre, era um “pasodoble” ou coisa parecida.

A meio do percurso, o andamento da carrinha já arregimentou um cortejo de putalhada que não é brincadeira. Depois de duas voltas à Abrunheira, que naquele tempo eram muito rápidas, o “homem do cinema” dirigiu-se para a Sociedade, e, por artes mágicas, começou a tirar aquelas tralhas todas da carrinha. Como é que aquilo lá cabe tudo? Bom, com certeza é por ser do cinema, se calhar também tem magia. Tirou tudo nas calmas, eu e os outros putos, vimos e até ajudamos. Dentro da “Sociedade”, montou a torre de projecção do lado do palanque e virada para a parede do lado da porta e do bufete onde iria pendurar um grande lençol branco. Depois começou a rebobinar as fitas, e eu, na minha lógica de puto, perguntei cá para mim – então, mas porque é que o homem não fez isto em casa? E as bobinas eram mesmo muito grandes, e demoraram a rebobinar e o homem dava à manivela sempre… sempre… e já transpira e o suor pinga… pinga, e ele continua …continua, e a bobina grande vai ficando cada vez mais pequena e a pequena cada vez maior, e o homem dá à manivela e o suor pinga, e as bobinas roçam nas hastes laterais e fazem aquele barulho irritante de metal contra metal, e rodam… rodam… rodam, até que uma está muito grande e a ponta final da fita salta da outra bobina, que continua a rodar sozinha, e o “homem do cinema” deixou de dar à manivela devagar… devagar… e tudo parou. Estava concluída a primeira parte do trabalho do “homem do cinema”.

Lá pelas oito e meia, o pessoal começou a chegar, e eu, naquele dia, que não me lembro há quanto tempo contado em anos foi, era puto e consegui ir ao cinema. Provavelmente fiz de pau-de-cabeleira da minha Irmã que nessa altura namorava o Alfredo. Sei que estava lá muito cedo e vi tudo. As pessoas a chegar e o “homem do cinema” com um livro daqueles que parecem rifas, e como ainda não havia IVA e a ASAE ainda não tinha sido inventada, cobrava e cobrava e cobrava… não me lembro quanto, dava metade da senha e a pessoa tinha direito a sentar-se naqueles bancos de madeira corridos para ver o “TARSAN – O HOMEM MACACO”.

A Sociedade, onde se passava tudo o que de mais importante acontecia na Abrunheira, encheu depressa e, às nove e meia, o “homem do cinema” apagou a lâmpada muito grande que de gambiarra ia até ele. As figuras começaram a mexer-se no lençol branco estendido na parede. Primeiro, a propaganda do regime com aquele grande selo no princípio – Visado pela comissão nacional de censura. Este intróito incluía sempre discursos do Américo Tomás, paradas militares, visitas e inaugurações, passagens com grandes feitos “ultramarinos”, atividades da mocidade portuguesa, algumas “virtudes” do ditador, enfim, tudo boas notícias… e, só depois, vinha o “Homem Macaco”. E o outro homem, o do cinema, dava à manivela… dava… dava, e as imagens iam andando à velocidade da manivela e o homem ia narrando as cenas, «…. E agora, muita atenção…. O TARSAN vai beijar a JEAN….,» e, quando a cena se aproxima do auge, breves instantes de “suspence” para aumentar o gosto, e, num gesto bem sabido por tantas vezes já ter sido executado, o “homem do cinema” pára a manivela. Neste preciso momento, a plateia desata num barulho infernal em misto de alegria e admiração, sendo que, no meio, também os há com pudor, falso ou verdadeiro, não interessa. O “Homem do cinema”, quando viu que chegava de alegria, recomeça a dar à manivela e as cenas sucedem-se e, como de narrador precisava a cena – “Agora reparem bem, o Tarsan vai lançar-se duma árvore para a outra e a macaca vai atrás dele, e agora ele cai no lago….e… e….” e por aí fora, só se calando quando apareceu o lençol todo branco.

O “Homem do cinema” acendeu outra vez aquela grande, mas mesmo muito grande lâmpada que de gambiarra vinha até ele. Quando foi este tempo, fez-se silêncio de morte na Sociedade, era como se tivesse acabado o mundo, por fora estava tudo muito iluminado com aquela grande lâmpada mas, por dentro, as pessoas ficaram nas trevas. Durante noventa minutos de tempo contado, todos tinham subido às nuvens, tinham conseguido fantasiar em doce, todo o amargo que a vida lhes dá e, por isso, queriam mais, mais qualquer coisa, só não queriam regressar à vida de verdade, as pessoas queriam viver de faz de conta porque a vida vivida e toda a que iam viver no tempo que faltava, era verdade, e a verdade, quase sempre era dura, muito dura.

Depois daqueles momentos de negação da realidade, os cinéfilos abrunhenses, lá começam a sair da Sociedade em direção a suas casas. Eu ainda fiquei para trás com o assentimento da minha irmã que aproveitou para namorar mais um bocado. Entretanto, o “Homem do cinema” desmontou rapidamente a torre de projecção, tirou as bobinas e levou-as para a carrinha muito grande. E eu, que pronto já estava para me perguntar outra vez porque razão o “homem do cinema” não rebobinava as fitas, quando, num momento de lógica assumida conclui que, tal como aconteceu quando depois de almoço aqui chegou, ia deixar o trabalho de rebobinar para a Terra onde amanhã fosse mostrar o “Tarsan Homem Macaco” dando à manivela e parando na altura do beijo, qual cinema paraíso.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

P.S. «O Rui lembrou-me que na “Sociedade”, para além de televisão, (uma das duas existentes na Abrunheira durante bastante tempo, a outra era do Raposo que morava na Avenida dos Combatentes, nome atual, ao lado do café “O Combatente”) também se via cinema mudo. Aí está, embora um pouco ficcionada, uma das sessões a que eu assisti. Muitas outras aconteceram, primeiro mudas com ou sem narração, e depois, em versão moderna com som e a cores.»

Silvestre Félix

quarta-feira, 16 de março de 2011

BOMBEIROS DE SÃO PEDRO

O Jornal da Região, edição de Sintra, que hoje saiu para a rua, trás chamada à primeira página, a entrevista com o Comandante Pedro Ernesto dos Bombeiros de São Pedro, a propósito da inauguração do novo quartel, que pode ser lida nas páginas interiores.


(CLICAR NA PÁGINA PARA LER)

Silvestre Félix

(Linkado do próprio site do JR)

terça-feira, 15 de março de 2011

NO LUSCO-FUSCO ABRUNHENSE

E a mim não me escapavam as notícias que saíam daquele rádio de plástico de cor bege que descansava na mesa da cozinha com a antena bem esticadinha para o teto. As sílabas mais difíceis eram soletradas devagar mas já conseguia ler bem o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro

(Pergunta o inteligente) Na taberna? Mas os putos….

Sim, eu sei… mas o Ti Álvaro deixava-me ler “O século” durante o dia.

Elas, as notícias, estavam lá, podiam não estar todas porque os homens do lápis azul cortavam muitas, principalmente as que falavam do “Estado Português da Índia” que já não era, porque o Nehru, uns dias antes do Natal, tinha expulsado os militares portugueses de Nagar-Aveli, Goa, Damão e Diu. Também riscavam e cortavam todos os telegramas e telexes sobre a Guerra que tinha começado em Angola e nunca deixavam escrever sobre os nossos tropas que iam em navios para lá. Mas eu lia as notícias da Guerra do Vietname que era com os Americanos e os homens do lápis azul não se importavam.

Oh Mãe… quando o Vitor for p’a tropa já não há guerra, pois não?

Ai Filho, Deus queira que não, ai… valha-me Deus, o que te havias de lembrar.

Oh Mãe, quando eu for p’a tropa já não há guerra em Angola pois não?

Oh Filho… falta muito tempo contado em anos para ires para a tropa.

Mãe, eu não gosto da tropa.

Filho, não digas isso, fala baixinho… «diz a minha Mãe olhando à volta muito aflita, porque naquela época salazarenta até as paredes tinham ouvidos.»

À hora da última ordenha…

(que digo assim só para que neste tempo se entenda, porque em todas as vacarias da Abrunheira se dizia “mungir” e “mungidela”)

…e da última refeição de manjedoura bem cheia de palha, feno e ração demolhada com “talinhos” de alfarroba, o meu destino ficava em caminho e no banco corrido da “sociedade” conseguia ver as imagens na caixinha da televisão que o Jorge Farpela ligava à mesma hora que o Ti Américo, a mulher Ausenda, ou o Zé da Natália, abriam o “posto do leite” no sítio onde, no tempo de agora, tem um café que se chama “O Combatente”. Todos se encaminhavam, durante uma hora de tempo contado, para o “posto do leite”, levando o precioso líquido para o “grémio”. No dia seguinte, muito cedo, os úberes das vacas lá voltavam a fazer pressão nas tetas apressando a mungidela da manhã.

(E dizia o inteligente) – Vaca, úbere, tetas… mas que raio de linguagem… daqui a cinquenta de tempo contado em anos, tudo isto tem outro significado. A Abrunheira é terra pacífica e os abrunhenses estão todos de bem com a nação (por enquanto. Digo eu que sou inteligente e não pio o que sei a ninguém) mas é bom não arriscar, deixando que a “mostarda” lhes chegue ao nariz.

Na “sociedade” via, e lia, os desenhos animados. As legendas passavam depressa e eu corria atrás sem me distrair: O “Perna-longa” o “Gato Félix” e o “Gato Silvestre”, o “Bip-Bip”, o “Speed-Gonzalez”, etc., eram alguns dos heróis.

No lusco-fusco abrunhense e os postes da luz já acesos. De baixo para cima em direção ao Chafariz, a luz do interior da taberna do Ti Álvaro era amarela. Sem som, como se de mimos falássemos, mexiam os braços com copos na mão. De dois ou de três, os copos eram sempre cheios de vinho e depressa se despejavam naquelas gargantas sedentas.

Oh Filho! Espreita só, não entres!

E eu espreitava e via e não ouvia!

Na Abrunheira, os copos de dois ou de três, envenenavam a alma. As passadas trôpegas avançavam num trilho irregular e, pela noite dentro, não traziam a boa-nova, o carinho, o bom trato.

Durante o dia, eu lia o jornal “O Século” na taberna do Ti Álvaro e não havia notícia que me escapasse. Mesmo as que não estavam escritas ou haviam sido riscadas a lápis azul, eu, as conseguia adivinhar …, sem que o “inteligente” desse por isso…

Silvestre Félix

quarta-feira, 9 de março de 2011

POR ESSES CAMINHOS ACIMA…

Naquela época, “Por esses caminhos acima” chegávamos ao Linhó, aos Celões, a Ranholas e, mais perto e a direito, à Colónia. Hoje, só conseguimos chegar à Colónia ou, como se diz no papel, Estabelecimento Prisional de Sintra. E lá, muito tempo passado com anos contados em quatro paredes muito apertadas pela sociedade madrasta. Os homens feitos neste tempo enviesado e ausente de valores criados pela sua mão. Incapazes de fazer a curva do sucesso socialmente aceite.

Oh filho! Vê lá, tem cuidado, porque eles andam sempre por aí.

É verdade Mãe, eles andam sempre aí, mas não é só “por esses caminhos acima”, eles estão por todo o lado, nos sítios onde menos esperamos, aí estão eles.

Na maior parte das vezes estão ao pé de nós e não os vemos, tem ocasiões que até dizem que são nossos amigos e depois de contarmos dias, meses, anos se for preciso, olhamos duas vezes seguidas, «com olhos de ver…» sim, porque muitas vezes olhamos e não estamos a ver, e assim, «com olhos de ver», conseguimos descortinar que não são eles mas sim os outros, aqueles que a minha Mãe sempre me avisava:

Cuidado filho, não acredites sempre à primeira, tens de esperar o teu tempo, não vás de repente “por esses caminhos acima”.

O tempo vai sendo contado e muita água vai correndo pelo Rio das Sesmarias…. sempre a correr…. até quando não chove, ela, a água, corre…. corre, pelo Rio das Sesmarias, e, já no verão da vida, consigo também ver, «com olhos de ver», o contrário. É como se fosse um espelho ou como se conseguíssemos olhar para dentro de nós. Eu agora quero sempre olhar «com olhos de ver». A verdade dos sentimentos é tão firme e forte, como o leito do Rio das Sesmarias depois de assoreado para se lhe tirar a sujidade e as areias que mantinham a estrada principal da Abrunheira transitável. Ainda que só por lá passassem as carroças, os carros de bois e, uma vez por ano, a máquina debulhadora dos cereais produzidos pelas searas do meu Avô Silvestre (Velho).

O Sapateiro de Manique também tirava areia para marcar a eira que o seu rebanho de ovelhas, à custa de muita pisadela, ia fazer no Serrado da Fonte. E o bacalhau cozido com batatas que a minha Avó Gertrudes se encarregava de dispor para os comensais… e o Sapateiro de Manique, naquele ano e todos os anos antes e todos os anos depois… Oh patroa, o que é que pôs no bacalhau? Está cá um pitéu! Deite lá mais uma postinha… E, no Rio das Sesmarias, na linha de partida “por esses caminhos acima”, os princípios e os sentimentos só valem se forem como o seu leito: Profundo e limpo!

Assim conseguimos ser mais felizes e acreditar que podemos ir “Por esses caminhos acima”, mesmo que tenhamos de contornar os obstáculos da vida.

Silvestre Félix

domingo, 6 de março de 2011

UM CORRIDINHO?

E o Ti Faneca toca, toca… e o pé bate, bate… e o cigarro no canto da boca, arde, arde… e os pares dançam, dançam, dançam…. até que, o Rafael Coxo, faz sinal ao Ti Faneca, a concertina pára.… o Rafael Coxo sobe ao palanque, e diz, aplicando toda a sua sapiência: "Alto e para o baile! Os Cavalheiros fazem favor de levarem as Damas ao bufete!". E o Ti Faneca volta a por a concertina a jeito e lá começa a tocar, a tocar… e o pé a bater, a bater… e tudo volta ao mesmo, só os Cavalheiros é que não acharam graça à “lembradura” do Rafael Coxo. A maior parte nem consegue disfarçar. Alguns, se pudessem, largavam já a Dama e punham-se a mexer. Ele é Mestre nestas surpresas e, por isso, quem se quer agarrar à “febra” tem de saber, ou calcular, qual é a moda em que o Rafael Coxo manda as Damas ao bufete.

Para a maioria dos Cavalheiros, cinco tostões é dinheiro, e uma gasosa ou uma laranjada é o bastante para lhe levarem o que sobrou para o fim-de-semana, e nem sempre a Dama o merece. Mas regra é regra e não se pode ficar mal à frente do pessoal. O cigarro do Ti Faneca está a chegar ao fim, quase lhe queima os lábios que habituados já estão destas queimadelas, e é o tempo para a moda chegar ao fim. O cigarro é como se fosse uma ampulheta, mede o tempo da tocadela assim como o bater do pé mede o compasso da moda.


Os pares desfazem-se, os Cavalheiros regressam ao seu sítio do lado da porta e em frente ao balcão do bufete, por detrás dos dois bancos corridos que estão ali exactamente para marcar o terreno. As Damas vão para o assento ao lado da sua Mãe, ou de quem está encarregada de controlar com quem a Dama dança… sim, porque essa coisa de ir ao baile tem muito que se lhe diga. Os assentos das Damas e suas acompanhantes são os conhecidos bancos corridos de madeira, dispostos em volta do recinto de dança.

Os Cavalheiros que têm tostões de sobra bebem o seu copo, olham as Damas, ensaiam sinais conhecidos ou piscadelas de olho, e um mais afoito e a atirar para o marialva barato, grita: "Oh Ti Faneca toque uma devagarinho!", e o Ti Faneca, que destes pedidos está ele farto de ouvir, e também porque tinha tanto de malandreco como de cabelo em falta na cabeça, põe a mão em jeito de funil na orelha, e responde bem alto para o Cavalheiro atrevido: "O quê ?? um corridinho ?? É p’ra já!" E antes que o interlocutor consiga reagir, já se ouvem os primeiros acordes dum corridinho do Algarve, daqueles mesmo muito rápidos.

E o Ti Faneca com a sua concertina às costas, pedalando a sua bicicleta, corre, corre… estrada acima, corre, corre…estrada a baixo, Linhó, Albarraque, Manique de Cima e Manique de Baixo, Mem Martins, Casais de Mem Martins, Ranholas, Lourel, Várzea de Sintra, Ribeira de Sintra e… até onde o chamam para tocar uma moda devagarinho ou um corridinho do Algarve….

São ambos figuras relevantes da nossa Abrunheira. O Ti Faneca era um Artista e Bom Homem conhecido em todo o Concelho de Sintra, Mafra e Cascais e deve ter morrido nos finais da década de 60 princípio de 70.

O Ti Rafael meu tio, era o "animador de serviço". Grande entusiasta da vida associativa da nossa Terra. Era da sua responsabilidade a realização dos bailes, enterro do bacalhau no Carnaval, e tudo o que era diversão. Quando havia uma festa, um baile, lá estava o "Rafael Coxo". Morreu no princípio da década de 80. O «Coxo» do "Ti Rafael" era alcunha e usada com todo o carinho do mundo, porque felizmente o "Ti Rafael" não era deficiente motor.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 1 de março de 2011

URCA – O INSUCESSO DO CENTRO SOCIAL

No princípio, e estando as negociações com o proprietário da “quinta” a correr muito bem, todos pensávamos ser possível, com umas pequenas obras nas instalações já existentes ou fazendo de novo, pôr a funcionar um posto médico até final do ano de 1975. Seria um primeiro passo para a abertura duma extensão do Centro de Saúde de Sintra um pouco mais tarde.

Achávamos ser urgente o posto médico e até mais fácil de avançar do que um infantário e creche. Foram feitas várias diligências em conjunto com a Comissão de Moradores e Câmara Municipal de Sintra junto da direção do Centro de Saúde e Ministério da Saúde. Chegaram a vir cá elementos da Direção do Centro de Saúde e, a certa altura, tudo parecia bem encaminhado para a Abrunheira vir a ter uma extensão do Centro de Saúde, beneficiando do equipamento toda a zona sul da freguesia de São Pedro.

Pois bem, numa penada tudo andou para trás. A situação da propriedade ainda indefinida, o fato de não ser possível concretizar nenhuma aquisição por parte do Ministério da Saúde nem sequer formalizar um contrato de arrendamento das instalações a ocupar, veio a inviabilizar, pela raiz, qualquer hipótese de instalar tão importante melhoramento na Abrunheira. Os impedimentos alegados viriam a manter-se por muito tempo.

Foi uma grande machadada no projeto do Centro Social. A questão do posto médico aliada à dificuldade de andar para a frente com o infantário e creche enfraqueceu-nos as intenções. As malhas da burocracia cumpriam a sua missão, os mangas-de-alpaca recuperavam a sua influência e o seu poder e o nosso vigor revolucionário recuava para a estrita área de atuação da URCA, ou seja, recreio, desporto e cultura.

Para a época, era muito importante que o projeto do Centro Social tivesse vingado. Essa realidade teria, com certeza, contribuído para uma melhoria significativa da qualidade de vida dos abrunhenses ao longo destes trinta e cinco anos. Se assim tivesse acontecido, hoje, estaríamos no limiar de outro patamar de desenvolvimento.

E assim foi, e é, até hoje! O comboio passou, não o apanhamos e agora não sabemos quando voltará a passar.

Silvestre Félix

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (2ª PARTE)

As vacas no seu remanso pastam ou remoem, sim… remoem, estes animais são “ruminantes” têm um sistema digestivo diferente da maioria dos outros mamíferos, e, o remoer, é mastigar depois do alimento ser engolido, ou seja, vai a um compartimento do sistema digestivo e volta para cima outra vez, e aí, é mastigado ou, como popularmente se diz, remoído.

Bom… mas o que eu queria mesmo dizer é que, outra maneira de passar o período do pastoreio, demorando muito tempo contado em horas e às vezes dias, era tentar apanhar grilos e cigarras. Localizada a toca, pela chinfrineira do cantante, apanhava-se um “fenacho” (caule de feno seco) e enfiava-se pela toca tentando tocar no grilo ou cigarra, e eles, se isso acontecesse, rapidamente saiam da toca mesmo sabendo que corriam os riscos todos. Mas alguns destes bichinhos, também os há mais espertos que outros, tinham as tocas curvas, e aí, a coisa complicava-se.., por falar em grilos e cigarras, há muito tempo que na Abrunheira não ouço esta sinfonia, as cigarras então, de dia ou de noite nunca se calavam.

E as rãs? No rio das Sesmarias ou nos charcos, também coaxavam sem parar. E os morcegos à noite? Os morcegos de volta dos postes da luz à noite caçando os insectos, e o Julinho… com a cana na direcção do céu muito estrelado assim como se fosse sempre Agosto. Ele ia ao sebo que o Pai (o Zé da Natália) tinha para o calçado, besuntava a cana do meio para cima e, depois, naquela “lengalenga” chata, mas que o Julinho não interrompia e não deixava que ninguém o perturbasse na missão de céu estrelado e olhar esbugalhado, como sendo a tarefa mais importante do mundo… “morcego, morcego, anda à cana que tem sebo”… e no serão de Agosto, repetia, repetia… e lá estava o Julinho sempre naquilo.

Aliás, o Julinho era amigo dos mistérios magnéticos e eléctricos naquele tempo de escola primária, de imaginação primária, de tudo primário. Fomos por algum tempo colegas de carteira, carteira daquelas peças únicas com tinteiros à frente cheios de tinta para sujarmos os dedos de tinta e pintarmos a bata daquela tinta que devia servir só para as canetas de tinta permanente que nos obrigavam a utilizar em tempo moderno já de esferográfica. Ali nos sentávamos todos os dias lado a lado. O Julinho, de quando em vez, quando eu estava mais distraído, juntava uma ponta da sua bata, aquelas batas aos quadradinhos azuis, juntava dizia eu, uma ponta da bata dele à minha, e, num sussurro altamente misterioso, dizia; “… está a fazer contato …, está a fazer contato”… no dia seguinte e no outro e no outro e ainda no outro, sempre o mesmo contato, até que eu deixei de me assustar com o contato. Voltando ao mamífero com asas, não tenho memória que alguma vez algum morcego tenha pousado na cana com sebo.

Quando ia com o gado para o monte, só tinha medo das cobras, e havia muitas, se calhar também acabaram. Quando sentia alguma cobra desviava-me o mais possível, embora reconheça que algumas eram bonitas, vi algumas muito bonitas, mas que fossem para bem longe. E os lagartos? Lagartões é que eram, daqueles verdes bem grandes. Quem não tinha, e com certeza ainda não tem medo nenhum das cobras e dos lagartos, é o meu primo Fernando. Lembro-me de ele levar um lagartão verde para a porta do baile na “Sociedade”. Estava muita gente como sempre acontecia quando havia baile, e ele trouxe o lagartão com um cordel como se fosse trela, e começaram a dar aguardente ao lagartão. Não me lembro do fim da história do lagarto bêbedo, mas não deve ter sido agradável.

Muitas vezes, a caminho do monte com as vacas, cruzava-me com o rebanho de ovelhas do meu Tio João. Naquela época lembro-me de cinco rebanhos grandes na Abrunheira, alguns com mais de cem animais. O do meu Tio João, do meu Tio António e do Chico, marido da Maria Augusta, o do Ti Veríssimo, o do “Espanhol” que viria a ser sogro do António “Calmeirão” e do Ti Rafael Miranda. Não gostava de me cruzar com as ovelhas porque as nossas vacas não se davam lá muito bem com elas e demoravam muito tempo até que passassem todas. Gostava e passava muito tempo a ver o meu Tio João a tratar delas no redil. Fosse a mungir, fosse a arranjar-lhes as unhas, a tratar dos borregos, etc., etc. Houve um ano em que a minha Mãe me deixou criar uma borreguinha que ficou órfã. É verdade, criamo-la em nossa casa a biberão, como se fosse um cão ou um gato. Andava atrás de mim para todo o lado e foi assim até ficar ovelha adulta, aí teve de regressar ao rebanho do meu Tio João. Chorei porque não queria, mas tinha de ser. A minha ovelha rapidamente se adaptou ao rebanho, e quando me via ou à minha Mãe, fazia um pequeno desvio abanando o pequeno rabo, ajeitava-se para lhe fazermos uma pequena festa, e voltava toda contente para o seu rebanho.

Na casa do olival, a maior festa era na época dos figos. O quintal da casa transforma-se em albergue infantil. Nesta altura de verão, servindo as figueiras de poleiro, e a pança a abarrotar de figos de capa-rota e beiços gretados do leite derramado, recuperávamos as oficinas de carrinhos de arame. O Zé Fernando, grande especialista, o Fernando Pedroso, o Zé Augusto, o Filomeno Caravaca, o Rui, quando a Mãe lhe dava soltura, também levava jeito. Eu fornecia os arames. Todos os dias, depois de minha mãe desatar os fardos de palha e feno para dar às vacas, lá estava eu atento a poupar-lhe o trabalho e, com a justificação habitual, lá levava os arames para a nossa oficina. Os carrinhos mais simples faziam-se num arame inteiro com um eixo aí de 30 centímetros e duas rodas (feitas com o arame) nas extremidades. Depois, uma cana, aí entre um metro e trinta e metro e cinquenta, conforme a altura do condutor, que uma das pontas encaixava no eixo explicado antes. Na outra ponta da cana, era aplicado um guiador feito também com arame e, de lado, também tinha a manete de mudanças. A condução era feita com a cana inclinada de forma que as rodas cumprissem a sua função.

E assim se percorriam os caminhos da Abrunheira, ora para baixo, ora para cima, e o tempo contado em horas… em dias… meses… em anos… e os Pais e as Mães e os “Putos da minha Terra”.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

URCA – E A SUA MATRIZ CULTURAL

Depois daquele período inicial da URCA, inigualável na forma e no contudo, com entusiasmo desmedido e vontade de querer fazer sempre mais, entendendo ser a forma de se recuperar o tempo perdido, houve duas fases muito marcantes na vida da coletividade e da Abrunheira: A apresentação da obra de Miguel Barbosa “O Palheiro” pelo GITU, com direção, encenação, cenografia e tudo o mais necessário de Gil Matias, estreado em 1979, e o encontro de Grupos Corais Alentejanos, salvo erro, em 1983, organizado pelo Grupo Coral Alentejano da URCA.

Para entender alguns acontecimentos é necessário contextualizá-los. Nos finais da década de 70 e princípios da de 80, cerca de 60% da população da Abrunheira era de origem alentejana. As razões sociológicas desta movimentação de famílias inteiras do interior para o litoral são do conhecimento geral, a que não é alheia a procura de melhores condições de vida com a industrialização da nossa região. Para laborar nas fábricas que iam aqui nascendo como cogumelos, era necessária mão-de-obra e, com a vinda dos primeiros no início da década de sessenta, logo outros foram chamados até que a Abrunheira mudou, até na maneira de falar. Dizia-se, na altura, que a Vila alentejana do Alvito se tinha transferido para a Abrunheira. Naturalmente que, dizendo isso se pecava pelo exagero, hoje, no início da segunda década do século XXI, há alturas do ano em que a Abrunheira se transfere para Alvito. Ou seja, estas duas Terras enriqueceram-se mutuamente.

Voltando ao Encontro de Grupos Corais Alentejanos de 1983, eu na altura não estava em Portugal e por isso não assisti a este, só aos posteriores, mas pelos relatos que li e ouvi e pelas fotos, foi, pela quantidade e qualidade de Grupos presentes, um acontecimento impar na história cultural da nossa Terra.

O êxito da apresentação de “O Palheiro” foi, acima de tudo, uma aposta arrojada do Gil Matias. A experiência dos componentes do GITU era “autodidata” e, mesmo assim, havia necessidade de recrutar muitos mais elementos. Cada reunião, cada ensaio, eram autênticas lições sobre a arte de representar. Gil Matias foi encenador, diretor, professor, Pai, irmão e sei lá mais o quê. Mais de metade do ano de 1978 foi necessário para dar corpo ao espectáculo. A peça é grande e a criação das personagens muito trabalhosa. Não foram poucas as vezes que tudo esteve quase a parar mas, com a nossa vontade e com a coragem e sabedoria do Gil Matias, lá conseguimos chegar ao dia do ensaio geral. Os nervos eram muitos na estreia. Sentados na plateia, estavam “olheiros” importantes e a população da Abrunheira em peso.

Fomos selecionados e concorremos ao Festival de Teatro Amador do Concelho de Sintra em 1979 e ficamos nos primeiros lugares. Lembro-me de termos representado a peça, para além das duas vezes na URCA, em várias locais dos Concelhos de Sintra, Cascais, Oeiras e Mafra. Esteve em cena todo o ano de 1979 e parte de 1980 e foi o grande sucesso do GITU. Era a consagração da motivação cultural da nossa coletividade e da nossa Terra. O Gil Matias continuou a colaborar com a URCA durante mais algum tempo, dando lugar depois a outras pessoas.

Miguel Barbosa, que recentemente doou ao Museu de História Natural de Sintra o seu espólio arqueológico recolhido ao longo de mais de quarenta anos de que fazem parte peças e fósseis únicos no mundo, é autor de uma vasta obra literária nas várias especialidades, a saber: Mais de trinta títulos de poesia editados em português, Italiano, Francês e Inglês; cinco novelas em Portugal e nos Estados Unidos; oito contos em português; mais de uma dezena de romances policiais com o pseudómino de Rusty Brown e três romances com o pseudómino de J. Penha Brava e participação em mais de cinquenta revistas literárias em Portugal, Brasil, Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra, etc., etc.. A sua biografia preenche muitas páginas com referências a todos os cantos do mundo e, bem lá no meio, referindo-se à peça “O Palheiro” e aos grupos que a representaram: «“O Palheiro” foi representado pelos… (vários grupos) e pelo GRUPO DE INTERVENÇÃO TEATRAL DA URCA (ABRUNHEIRA), SINTRA».

Também esta circunstância é motivo do nosso orgulho!

Silvestre Félix

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

OS PUTOS DA MINHA TERRA (1ª PARTE)

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto. Naquela época, quase todos os rapazes como eu, contados em tempo de idade nos 7,8,9 ou 10 anos, tinham algumas obrigações domésticas que passavam, invariavelmente, pelos cuidados ou acompanhamento dos animais da casa. Não proso de cães e gatos que de estimação ou companhia já o eram há 50 contados em anos de tempo, mas, das vacas, ovelhas ou cabras, que de estimação também seriam mas de serventia essencial no sustento da barriga e no mealheiro acolchoado. Na mesma onda e garantia de subsistência, era carinhosamente passado pela engorda o porco engraçado e inteligente que, ao engano, lá caminhava para o cadafalso traiçoeiro e tornado no centro das atenções pelos seus carrascos, antes, alimentadores. As coelheiras e capoeiras sempre abarrotadas completavam a galeria zoológica de grande parte das casas da nossa Terra.

Eu dava-lhe jeito porque tinha gosto e carinho pelos animais que a minha Mãe criava. Esta Abrunheira, Terra de abrunhos e Abrunhenses, abraçada pelo rio das Sesmarias, era, até há 50 anos, zona agrícola como toda esta nossa região de Sintra e Saloia.
Por esta altura começaram a aparecer as primeiras fábricas. Aqui mesmo na Abrunheira, a SINCAL. Os edifícios ainda lá estão como eram, em frente à rotunda da bomba de gasolina, embora de uso e marca diferente. Muito perto, junto à antiga estrada Lisboa/Sintra do lado de Mem Martins, a Resiquímica e logo depois a Adreta Plásticos. Ambas ainda de pé e empregando muitos moradores da Abrunheira ao longo de todos estes anos até hoje. Logo rápido se seguiu outra… outra e mais outra e, nunca mais parou até meados da primeira década do XXI. Agora, nestes tempos de aperto e de crescimento do número de furos no cinto, resta-nos os templos do consumo – Retail Park e futuro Forum Sintra.

Voltando ao antes da nossa revolução industrial, a Abrunheira era 100% agrícola. Percorríamos a única rua, que é hoje a MFA, e tínhamos um autêntico tapete de saudável bosta de vaca e caganitas de ovelha, que, aumentava de altura, junto ao bebedouro do chafariz e do Stº António. À volta da Abrunheira víamos todas as terras cultivadas. Da janela da minha casa, na altura, ou da varanda da casa do meu Avô, via, em direcção à Colónia (EPS), à direita a quinta do Anjinho os “Barros” e Ranholas, à esquerda o Linhó e ainda mais à esquerda, até ao Chico da Beloura. As searas dançavam ao sabor do vento, e com tonalidades diferentes, porque se no "Serrado da Fonte" se semeou cevada, na "Mulata" se semeou aveia e nas "Ferreiras" trigo, ao longe os tons são ligeiramente diferentes. Os "Celões", de tão grande que era, (parte considerável do que hoje é a Qtª da Beloura) havia anos que se dividia em, uma parte de trigo, outra de cevada e outra de aveia. E a debulha ?? Quinze dias no "Cerrado da Fonte" aquela máquina enorme, com rodas enormes, com uma correia enorme, que não se cansava de debulhar grão e enfardar a palha. Quinze dias para o meu Avô de quem herdei o nome, e a máquina sempre, sempre a trabalhar, sempre a fazer barulho muito barulho e os homens sempre a trabalhar e as mulheres sempre a trabalhar, sempre, sempre.... sacos de trigo, cevada, aveia, fardos de palha, muitos, muitos, depois, de repente, fica só o silêncio... e os homens trabalham e as mulheres trabalham, sempre, sempre....
Todas estas parcelas eram percorridas depois das colheitas e debulhas pelo gado que acabava com a esteva e o restolho até virem as primeiras chuvas de Setembro. Muitas vezes eu fiz parte dessa caminhada com a "Briosa", a "Malhada" a "Bonita", a "Carocha", a “Estrela”, a ...., nomes que a minha Mãe dava às suas vacas mães e depois às filhas e depois netas... sempre, sempre pelos anos fora, e eu, que lhe dava jeito porque tinha gosto, repetia os nomes e os carinhos e festas como a minha Mãe fazia. Levar as vacas ao monte…, levar o gado ao monte, era assim que se dizia e eu levava e gostava e ficava o tempo que fosse preciso, até a sombra do pauzinho espetado na terra atingir o risco que eu de manhã tinha feito na direcção da Quinta do Anjinho, ou, se fosse à tarde, na direcção de casa. Era o primitivo relógio de sol que eu sabia regular e marcar conforme o sítio onde estivesse. Algumas vezes as minhas vacas também sabiam contar o tempo, e, quando isso acontecia, mais ou menos no tempo do pauzinho espetado no chão, encaminhavam-se para o sítio de saída, na direção de casa.
Como eu, havia outros rapazes que levavam o gado ao monte. O Marinho, uma vez, adormeceu com as suas ovelhas e já era de noite e toda a gente, de lanterna na mão, à procura do Marinho. A Abrunheira mobilizou-se inteira buscando o Marinho e lá estava ele são e salvo. Mas só adormeceu, não aconteceu mais nada.
Enquanto o gado pastava, e andava, e descansava e voltava a pastar outra vez, eu tinha as minhas brincadeiras e não dormia. Brincava (construía) aos fornos de cal, esta brincadeira podia demorar vários dias, porque era preciso sustentar a abóbada com pedras bem a jeito para a função. Daí ser empreitada iniciada quando sabia que ia alguns dias para aquele sítio. Por vezes era necessário levar pedras pelo caminho, e chegado lá, continuar a paciência. Sim! Era uma brincadeira de paciência. Quem sabia melhor fazer (brincar) fornos de cal era o Zé Fernando. Ele às vezes ia com o Pai, o Ti Abílio, ao forno onde estava a trabalhar e o Pai dizia-lhe tudo, explicava em pormenor os segredos de construção do forno de cal. Lembro-me que o Ti Abílio tinha muito jeito para a rapaziada nova. Às vezes eu ia brincar com o Zé Fernando e gostava muito de ouvir as histórias do Ti Abílio. Há muitos anos que não falo... falar, conversar mesmo, com o Zé Fernando, e quando damos por nós, já passou muita idade, sim, idade que é aquele tempo contado em anos de vida vivida. Naqueles fornos de cal, para o Ti Abílio, o tempo eram meses e meses contados em molhos de lenha para a fornalha que do lume infernal se queria que derretesse a pedra que havia de ser cal para construir e caiar de branco as paredes das casas dos muros dos prédios e para as valas dos defuntos sem campa sua. “Não vás filho, o forno está muito quente e é perigoso, não te chegues perto!” O cuidado de minha Mãe. Ela tinha medo dos fornos de cal. Falava sempre de um desastre há muito tempo contado em anos e em sítio indefinido. Caiu e as chamas queimaram tudo à volta. Está bem Mãe, eu não vou para lá. Na ponta de cima dos “Celões”, os limites do horizonte pareciam não ter fim. Tudo admirava e tudo via lá de cima. A sombra do “pauzinho” não pára – anda devagar… devagar… no silêncio…

(Continua)

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

URCA – DEPOIS DE 18 DE ABRIL DE 1976 – 2ª PARTE

Em resultado de um ano de muito trabalho, em Abril de 1976 a URCA tinha o pavilhão em pé e a funcionar diariamente para ensaios, encontros e até para sessões de esclarecimento que os vários partidos políticos realizavam com muita frequência. O nosso pavilhão era (e ainda é), a única sala existente na Abrunheira para efetuar qualquer festa, reunião alargada, reunião política, espetáculo, etc. Dum ano para o outro, o “centro” da nossa Terra passou a ser na URCA.

A partir daqui, e com muita gente empenhada, a atividade recreativa renasceu com os bailes quase todos os sábados. Precisávamos de fazer receitas para pagar ao António da Estância e para amparar todas as outras atividades: Alfabetização para adultos, teatro, biblioteca, rancho folclórico infantil, atletismo, luta greco-romana e futebol. A direção da URCA decidiu também recomeçar as festas da Abrunheira que há muito tinham desaparecido. No âmbito social e no que respeita à criação do Centro Social, é que as coisas não estavam a ser conseguidas. Tudo era mais difícil e a URCA dependia completamente de outras instituições para levar o projeto por diante.

As secções (recreativa, desportiva e cultural) iam desenvolvendo o seu trabalho e, algumas datas começaram a ser comemoradas com o envolvimento de todas as vertentes: 3 de Janeiro (fundação da URCA), carnaval, Páscoa, 18 de Abril (ocupação da quinta), 25 de Abril, 1 de Maio, santos populares, Natal e ano novo. As várias comemorações passavam pela realização de provas de atletismo, ciclismo, bailes, apresentação do rancho folclórico e de pequenas peças de teatro. No dia 25 de Abril, para além de todas as outras realizações, começou, desde 1976, a ter um outro elemento – a realização de almoço comemorativo. Foi tradição que se manteve durante muitos anos mas, tanto quanto me venho apercebendo, caiu há algum tempo. É pena! Em Dezembro, organizava-se uma festa de Natal para as crianças da Abrunheira. Para além do lanche e dum programa a propósito, feito com a prata da casa, onde não faltava Pai Natal e Palhaços, era entregue a cada criança, previamente inscrita numa lista, um brinquedo adequado à idade. O lanche era oferecido pela URCA, população e comerciantes locais. Os brinquedos eram comprados com donativos de algumas fábricas e também pelos comerciantes da Abrunheira.

O tempo foi passando, as instalações mantinham-se sempre abertas com um pequeno bar de apoio com a presença, desde a primeira hora, do saudoso Ti Faustino. Ele era tudo – porteiro, guardador, cuidador, tomava conta das crianças que vinham ao parque e garantia o funcionamento do bar. A função cuidadora do Ti Faustino foi fundamental nestes primeiros anos.

Em termos de crescimento e consolidação, a secção cultural com a sua atividade teatral organizada no GITU – Grupo de Intervenção Teatral da URCA, existente desde a fundação da coletividade, viria a ser a grande força mobilizadora da URCA nos anos 70 e 80. O GITU criou e desenvolveu, com o apoio de alguns amigos, um dos melhores grupos de teatro amador do Concelho e até da região.

Lá pelos anos 77/78, a direção da URCA foi contactada por um grupo de teatro profissional residente em Sintra, para apresentação no nosso pavilhão, do seu trabalho em cena. O porta-voz do grupo era o, também ator, Gil Matias. Fizeram o seu trabalho, os abrunhenses gostaram e o Gil Matias passou a fazer parte da nossa agenda de amigos. Em pouco tempo, com a nossa vontade e a sua disponibilidade, avançamos para a reorganização do GITU com a direção do nosso amigo.

"O Palheiro" de Miguel Barbosa, encenado e dirigido em 1979 por Gil Matias, foi um grande sucesso do GITU. Esteve em cena, fazendo bastantes apresentações nas colectividades do Concelho e fora, depois de ter representado a URCA no Festival de Teatro Amador de Sintra que, na época, a Câmara Municipal de Sintra organizava. Ganhou alguns prémios e classificou-se sempre em lugares honrosos. O principal responsável pelo êxito deste trabalho foi Gil Matias. Depois de “O Palheiro”, manteve-se na direção do GITU por mais dois ou três anos. O Gil muito tem dado à cultura do Concelho de Sintra e, particularmente, ao teatro amador em inúmeras Coletividades e Associações da região. Avesso a homenagens e a gratidões públicas, constata-se que permanece vazio o lugar que lhe cabe pelos serviços prestados à comunidade. Nesta minha conclusão, incluo naturalmente a URCA. Pela minha parte, e em nome de todos os que pensam como eu, agradeço ao Gil Matias toda a sua dedicação e generosidade em prol da cultura.

Nos últimos anos da década de 70 e primeiros dos 80, começaram a mexer também, embora com completa autonomia em relação à direção da URCA, o que viria a ser o Grupo Coral Alentejano da URCA com a incansável liderança de Francisco Feio e a Associação de Reformados com a luta e perseverança do saudoso António Vieira. Alguns memoráveis encontros de Grupos Corais Alentejanos aqui foram realizados com autênticas multidões de participantes e espectadores. Criaram também o seu núcleo de convívio e organizaram um pequeno museu regional que, melhorado e revitalizado há algum tempo, tem as suas portas abertas para quem o quiser visitar. O legado de António Vieira não foi abandonado e, pelo contrário, a Associação de Reformados consolidou os seus alicerces, está ativa e tem projetos para o futuro.

Esta fase de lançamento e consolidação da URCA, com a mesma orientação a nível de dirigentes, foi até final de 1982. A partir daí, uma nova fase começou. O frenesim revolucionário, que necessariamente influenciou os fundadores e a própria URCA, tinha chegado ao fim.

Silvestre Félix

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

URCA - DEPOIS DE 18 DE ABRIL DE 1975 – 1ª PARTE

Nesta fase, com a questão das instalações no bom caminho e com muito trabalho pela frente, era importante definirmos as prioridades e manter a unidade na ação.

Eu, lá continuava a aprender a ser “tropa” na Figueira da Foz. Detestava aquilo, mas gostei de estar na cidade da foz do Mondego. Depois das primeiras sete ou oito semanas de “cativeiro”, todos os fins-de-semana vinha à Abrunheira e participava com gosto nos trabalhos da URCA. A comida no quartel era boa e o ambiente também. Em Maio fui para o RIP no Porto, onde me mantive até pouco antes do final de Junho. Depois, entre uma mobilização para Angola e uma reorganização do Exército, um bocado a reboque das “negas” em embarcar para a Guerra a preceito do PREC, fui, com outros, desmobilizado e mandado para casa até meados de Agosto. Os últimos dias de Junho, o mês de Julho e o meio de Agosto, foram um regresso à minha vida normal. Na terceira semana de Agosto, regressei à tropa e consegui vir para Oeiras onde fiquei até 27 de Novembro do mesmo ano de 1975. Era como se estivesse em casa. Retomei o meu trabalho da URCA, agora, sem interrupções, independentemente das obrigações militares.

As instalações existentes na quinta resumiam-se: À casa de habitação que corresponde hoje ao edifício que dá para a rua Humberto Delgado, excluindo o bar que foi construído à posteriori, e um telheiro de capoeiras e coelheiras ao longo do muro que dá para a rua da Liberdade onde, depois de algumas obras, viriam a instalar-se a Associação de Reformados e o Grupo Coral Alentejano da URCA. A quinta prolongava-se muito para baixo (sentido sul) ocupando toda ou parte do terreno onde estão hoje moradias com as traseiras para a rua do Centro Social e frentes para a rua Natália Correia. Algures no meio, havia um poço com um grande moinho de vento e um tanque de rega.

À perpendicular do edifício principal, do lado direito quando estamos virados para o alpendre, já existia aquela espécie de arco?? (em linha reta) que ligava a uma parede de tijolo a direito que é, nem mais nem menos, a parede norte do pavilhão. Bom, o fato de haver esta parede feita e em bom estado entusiasmou-nos a aproveitar a dita e, a partir dali, construirmos o pavilhão tal e qual é hoje. Naturalmente que ao longo do tempo beneficiou de muitos melhoramentos mas, no essencial, é o que lá está, 35 anos depois. Antes do início das obras do pavilhão, os serralheiros e pedreiros e toda a gente da Abrunheira, meteram mãos à obra e, em menos de nada, nasceu o primeiro parque infantil no mesmo local onde ainda está. Aquela parede que atrás mencionei, e que seria uma das alas do pavilhão, do lado virado para o parque, encheu-se de pinturas que alguns artistas abrunhenses generosamente ofereceram às nossas crianças. Tenho sempre receio de mencionar nomes, porque, como é natural, não me lembro de todos e não quero ser injusto. Não resisto no entanto, e até porque ainda num destes dias reparei estarem a aparecer por debaixo da velha cal, nessa mesma parede, alguns dos heróis dos desenhos animados da época que, o nosso João Balagueiras, tão bem lá os desenhou e pintou. Mereciam ser reabilitados, digo eu.

Já depois de haver parque infantil e grande parte das figuras pintadas na parede, tivemos honras de reportagem televisiva. É verdade, a RTP, única televisão do tempo, veio fazer reportagem e transmitiu no telejornal. Os moradores da Abrunheira, mesmo os que inicialmente não concordaram com a ocupação, foram, a pouco e pouco, aderindo às nossas intenções e, uma parte considerável da população, quando chegou a hora, pôs as mãos na massa. As ajudas vinham de todo o lado. Em trabalho, em materiais, homens, mulheres, mais velhos, mais novos, nos almoços, nos lanches, tudo e todos eram importantes para erguer o nosso pavilhão.

No entanto, havia muita coisa que era necessário comprar e dinheiro não havia. Também aí tivemos uma colaboração fundamental para conseguirmos pôr as paredes em pé. Foi o Senhor António Coimbra das Neves, conhecido por “António da estância” de Albarraque. Fomos falar com ele e conseguimos que confiasse nos dirigentes da URCA. Forneceu todo o material de construção necessário para pagar como e quando fosse possível. Confiou, e fez bem, porque tudo lhe foi pago até ao último centavo, depois de muitos bailes e festas de angariação de fundos, no pavilhão, já com telhado. A cobertura foi colocada a tempo de se fazer a pré-inauguração (pré porque ainda não tinha portas nem janelas), no primeiro aniversário da ocupação, a 18 de Abril de 1976.

Com um programa da casa, envolvendo dezenas de Abrunhenses, incluindo a estreia de um rancho folclórico infantil com muitas crianças da Abrunheira, criado e encenado de propósito para a ocasião por animadores e animadoras da secção Cultural da URCA. Também foi neste dia apresentada uma criação colectiva do GITU (Grupo de Intervenção Teatral da URCA) com o título "Até à Libertação", bem como outros pequenos quadros de comédia "séria", porque tinha sempre a ver com o momento político. Foi uma grande festa. Parecia que não havia uma única pessoa da Abrunheira que, duma ou doutra maneira, não estivesse a participar. Estou convencido, passados todos estes anos, ter sido uma das ocasiões em que se viu mais gente junta, num só local, na Abrunheira.

É certo lembrar que, na época, foi reconhecido por muita gente a nível do Concelho de Sintra, ser a URCA, com pouco mais de um ano de existência, um dos bons exemplos de associativismo a seguir.

Foi um ano de intensa atividade. O recinto e as instalações, principalmente aos fins-de-semana, estavam sempre apinhados de gente que invariavelmente encontravam tarefas úteis para fazer. Concluída, no essencial, a construção do pavilhão, outros trabalhos e outras preocupações se seguiram. Disso darei conta no próximo escrito.

Silvestre Félix
8 de Fevereiro de 2011
Tag: URCA

PS:
Como já disse, não tenho a pretensão de ter nenhuma memória de elefante, nem de possuir a única interpretação de muitos acontecimentos, pelo que agradeço todas as contribuições no sentido de melhorar o registo da nossa memória coletiva. A forma de o fazer pode ser através de simples comentário diretamente no blogue, para o meu mail
silvestrefelix@netcabo.pt, ou através de MSG na página do facebook.com/silvestre.felix

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

EM CAMIONETAS VINHAM E EM CAMIONETAS IAM!

Todos os sítios ditos hoje, nossos sítios foram ontem. Alguns até as paredes ainda conservam, outros estão guardados na memória do rígido e em ficheiro no externo. Em tempo contado em algumas dezenas de anos, sempre abaixo dos que eu tenho nesta vida, todos estes lugares já passaram à história industrial da Abrunheira.

Os mesmos tijolos e reboco que resguardam empresa nova, que o seu nome já deu à rotunda facilitadora do escoamento de trânsito, que naquele tempo demorava que passasse qualquer viatura, nem que fosse carroça, poderá ter corrido tempo, em número de anos contados, cerca de 50. Com muita pompa e direito a notícia de jornal, pouco importante pela escassez de trocos para o comprar e pela fartura de iletrados morados à época na nossa Terra, contando como muito mais importante na propaganda do evento, o “passa-a-palavra” na companhia de “ciganas”, de “charretes” ou simples de “três” tintol, pelos balcões do Ramos, do Álvaro ou da Menina Emília, em que se lubrificavam as goelas secas de tanto palrar. Na porta ao lado, as mulheres-mães, irmãs, tias, filhas, avós, cumpriam a mesma missão antes de acrescentar à “conta”. O objeto do grande acontecimento, de “batismo” tinha garantido o nome de “Sincal” e fabricava lixas, abrasivos e colas.

De primeira na Abrunheira se gabava, pois durou algum tempo contado até se construir a segunda no mesmo sítio e paredes onde hoje tem entreposto de Japoneses carros. Esta segunda, tal como a Sincal, muito labor deu aos Abrunhenses, que de semeadura e ceifa se foi esquecendo em troco da féria certa e contada, chovesse ou sol fizesse, com dia do senhor liberto e sexto encurtado com novidade de semana-inglesa. Fábrica da Borracha, abreviatura da “Fábrica de Borracha Leackok Rosa Lda”, viajante como se “Jangada de Pedra” ao contrário fosse, pois rumou a nordeste. Foi a pérola que a pariu e a criou, oferendo-a já adulta à Abrunheira que muito bem dela tomou conta e adotou como sua. A “Jangada” ao contrário carregou de boleia os seus operários sabedores e as suas famílias. Curto contado em tempo, os amores e desamores dos filhos e filhas dos da “Pérola-Madeira” e dos Abrunhenses, e os filhos dos filhos, netos e bisnetos deram ao pulsar da nossa Terra.


Depois vem a de plásticos no mesmo sítio e paredes construídas pelo patrão Gomes dita “Fábrica de Plásticos Atil, Lda”, onde hoje se produzem ou armazenam produtos químicos ali a seguir à Puratos no sentido da do “atleta”. Também esta trouxe operários doutras bandas, mas sempre os Abrunhenses ganharam em presença e labuta. Porque também aquelas mesmas paredes que estão de pé me protegeram dos primeiros passos no mundo do trabalho, e lembro um a um dos meus antigos parceiros nos 14 contados em anos de idade. Alguns subiram um patamar e estão numa dimensão diferente, deixando cá, na Terra, a saudade da vivência.

A Abrunheira tem sítios e lugares que são já da sua história industrial e dos Operários que por lá passaram. Em camionetas vinham e em camionetas iam. Primeiro, andantes em brancas d’alva de marca “palhinha”, que de caminho faziam do Estoril até Mem Martins e volta, três vezes no dia entravam e saiam da Abrunheira. Depois, de “Boa Viagem” se marcavam, na Abrunheira se cruzavam muitas vezes por empreitada, riscadas de marinho azul e entre Oeiras e Sintra se escalavam. Na ponta de antes das oito, desovavam e em pirilau, passando pelo Ramos e depois António José e Café do Manuel “Brasil”, lá certinhos, passo-a-passo, tomavam seu rumo da labuta: Sincal, Borracha ou Atil. Na outra ponta das seis, o inverso: Camioneta chegava, camioneta partia e roncava e fumava e ia e voltava.

Dos da Terra, iam e vinham pela – Um, dois e três, lá vai alho, o bilas das três covas, o olho-de-boi, o pião que roda sem parar, lá vai eixo, às escondidas, à apanhada… de régua ao alto até à palma da mão em mordedura escaldante, dentes cerrados e lágrimas contidas na raiva fervida de injustiça…e lá estava, por detrás da secretária, ao lado do quadro de ardósia, o retrato do botas e do Craveiro ainda desactualizado – que chamavam escola que ainda nome não tinha, a rua, mas lá me cruzei com muitos Abrunhenses nessa passagem da vida. Bem gravado e guardado, de todos me lembro em corpo e alma feitos, de nomes nem tanto, que hei-de eu fazer?

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ESTALAGEM DE MOBILIÁRIO BRANCO

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, a vida corre com sofrimento mas também com devoção e esperança.

O toque cadenciado dos monitores, um atrás do outro, embalam o sono engajado na dor e nas idas aos patamares alucinados. As imagens constantes, bem arrumadinhas em quadradinhos bem nítidos, com falas sugestionando o bem ou o mal. Quando bem, acende a ansiedade para entender duma forma racional, que mensagens os quadradinhos me transmitem. Quando mal, provocam um misto de raiva e medo e é manifesta a impotência para os retirar da zona abrangente do meu alucinogénico sono.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, os anjos não dormem. São eles ou elas, não importa, porque anjos não têm sexo, só têm bata branca. Não descansam e estão sempre cuidadores junto à cama. O gemido, o grito, o pedido, a negação. Os anjos não precisam de manual, sabem de cor os significados e nunca dormem. Religiosidade à parte, abençoados os anjos de bata branca que sempre lá estiveram.

No “modo” de observador, em fase mais consciente e pela experiência das várias estadias “na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda” a capacidade de interpretação do que vai acontecendo à minha volta, aumenta desmedidamente, e enfraquece a sensação de debilidade. Estou forte! E, na outra cama, o sofrimento é agudo. “Calma, é assim mesmo. Tem de acreditar e ter coragem” – Consigo passar a ideia mas duvido do efeito. A perturbação, o medo, o terror, não tem limite. Diz ele: “Não, não quero! Vão pôr no soro e eu fico a dormir e depois cortam-me… Não, não deixo, não quero!” A expressão facial e corporal não disfarça o pânico. As de bata branca, com aconchego carinhoso e palavras macias de psicologia simples de anjo sem sexo, controlam o desarranjo mental.

“Na estalagem de mobiliário branco, cortado, aqui e ali, pelo tom prata da moda”, perto da minha casa, moram anjos de bata branca sem sexo.

Silvestre Félix

SINTRA CULTURAL

Guia da atividade cultural do nosso Concelho, a Agenda cultural para Fevereiro de 2011, editada pela Câmara Municipal de Sintra, já está disponível nos locais habituais ou, online linkando PDF
Silvestre Félix
(Fonte: Site da CMS)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FUNDAÇÃO DA URCA – CAPÍTULO II – 2ª PARTE - DEPOIS DE 3 DE JANEIRO DE 1975

Sendo despachado para a Figueira da Foz, fico longe do que se iria passar na Abrunheira e na URCA, nos próximos tempos. Ainda por cima, Portugal entraria nestes dias num período muito conturbado que resultou só numa ida a casa, entre 3 de Março e 25 de Abril.

Oito dias depois estamos no célebre 11 de Março de 1975. A mim, maçarico com uma semana de farda, deram-me uma G3 e fui para um cruzamento algures na Figueira da Foz, revistar carros (a G3 estava descarregada). Comigo estavam outros nas mesmas circunstâncias. A minha unidade era afecta ao MFA, de maneira que o lema era "tudo pelo PREC". Os dias foram correndo na Figueira da Foz, até que nos vamos aproximando do primeiro aniversário do 25 de Abril e dia das primeiras eleições democráticas, eleição da Assembleia Constituinte. É claro que naquela época não havia telemóveis e mesmo os outros telefones não existiam em todo o lado, mas mais ou menos eu ia sabendo que as coisas na Abrunheira iam andando.

Salvo erro no dia 19 de Abril, quando no quartel já se faziam as escalas, para ver quem votava para as "Constituintes" no quartel e quem tinha que ir a casa votar, recebo correio da Abrunheira, do Zé Carmo Silva, com uma conversa completamente enigmática. Era um jogo para eu descobrir o que tinha acontecido ou ia acontecer em 18 de Abril (dia anterior). A solução do problema era exactamente a "Quinta do João da Batata". O pessoal tinha "ocupado" a quinta. Consegui telefonar e falar com a minha Mãe, que me disse, mais ou menos o que eu já sabia. Imaginem como eu fiquei. Sem poder participar, sem dar o meu contributo, e tanto que havia para fazer e eu com uma G3 na mão a aturar gente que nos obrigava a brincar aos cowboys.

Sorte a minha, a credencial necessária para votar na Figueira da Foz não tinha chegado e, por isso, tinha que ir a casa para votar no dia 25 de Abril. Ia poder estar com o meu pessoal. Vim ver e finalmente participar no acontecimento da semana; "A ocupação da Quinta". Participei no entusiasmo da quase totalidade da população da Abrunheira. Este dia 18 de Abril passou a ser comemorado como véspera do grande dia 25 de Abril.A partir daqui a história da URCA é outra, será a própria Abrunheira, pois tudo se vai passar aqui. Queríamos muito mais do que veio de fato a acontecer. O nosso grande objetivo era a criação dum Centro Social que incluísse, para além da URCA, pelo menos, infantário, apoio aos idosos, apoio escolar e uma extensão do Centro de Saúde. A este propósito, na altura da atribuição das ruas da Abrunheira, a uma das artérias que contorna a URCA, foi-lhe dado o nome de “Rua do Centro Social”.

Naquele fim-de-semana prolongado (25,26 e 27 de Abril), tive oportunidade de participar em todas essas discussões que perspetivavam um futuro de sucesso e de melhoria na qualidade de vida para a população da Abrunheira.

Ainda durante os dias que estive na Abrunheira, se iniciaram conversações com o proprietário, com a colaboração de algumas pessoas ligadas à comissão de moradores da altura e com o conhecimento da Câmara Municipal de Sintra. Pela parte que me toca, estou eternamente grato a essas pessoas mas, por razões óbvias, nunca usarei aqui os seus nomes.

Em resultado de todas as boas vontades, as coisas viriam a correr muito bem, tendo sido, mais tarde, assinado um protocolo entre o proprietário e a Câmara Municipal de Sintra em que, estabelecia uma fronteira entre a parte de terreno a utilizar pela URCA, e a parte que continuava na posse do anterior dono. A nossa parte passou para a posse da Câmara com o fim de ser utilizado pelo Centro Social da Abrunheira.

(Extraído dos textos “Abrunheira, Terra com História” de Silvestre Brandão Félix, publicados no extinto blogue “Aldeia Viva” durante 2007 e 2008.)
(Correção e atualização do autor em 2011)

Silvestre Félix
1 de Fevereiro de 2011