Pelos traços e caminhos da minha juventude, acontecidos dentro do apertado perímetro da Abrunheira que muitos sempre gostavam de lhe chamar – Brasil e encavalitado nos andantes de ferro abarrotados de outros e outras que, depois de concluído o sagrado complemento de descanso noturno, me despejavam na grande cidade louca de andarilhos logo pela manhã.
Nas minhas andanças, fosse pela borda do Tejo com ou sem “Tallon” sempre à vista daquela janela do terceiro andar, fosse na ida e volta dos andantes nos carris de ferro, na romântica beira da nossa serra com cheirinho a sintrenses queijadas e travesseiros ou na tranquilidade da nossa Terra, sempre me acompanhavam o “Faladura” e o “Caladinho”!
“Cuidados e caldo de galinha, nunca fizeram mal a ninguém!”
O Faladura era bem mais descuidado e muitas vezes inconveniente num tempo de domínio pidesco. Muitas vezes o alertávamos para as possíveis consequências, mas ele pouco ligava. O Zé Carmo Silva era o mais sabedor das técnicas de despiste da “bufaria”. Tinha a experiência do sítio universitário onde a pide atuava em permanência. Eu era aprendiz e, a pouco e pouco, ia aplicando, à laia de teste, algumas dessas técnicas. O Faladura abusava, principalmente, quando estávamos no café do “Manel” ou no “Cabaço”. Ainda por cima havia pessoal mais novo que, embora já nos acompanhasse, ainda não estava consciente do mundo salazarento em que vivíamos. O Faladura era aquilo a que costumamos chamar – “Espalha-brasas”. Houve ocasiões em que ficamos com dúvidas que a indiscrição do Faladura não tivesse trabalhado nos tímpanos de algum zeloso servidor da pide. Não foram poucas as vezes que nos sentimos perseguidos nas nossas andanças. Alguns cantos da Abrunheira conheceram bem as nossas tertúlias secretas em que, muito mais tranquilos estávamos, sem a participação do Faladura.
O Caladinho era o contrário. Quando o Zé Carmo Silva chegou ao seu convívio, já ele dominava tudo o que era “resistência” à pide e aos seus “bufos”. De tão cuidadoso, até metia impressão. Não dizia uma palavra que fosse, sem olhar em redor pelo menos duas vezes cruzando o movimento do pescoço para se certificar que não havia mais ninguém num raio de 100 metros. Fazia sempre isto, mesmo que o tema de conversa não tivesse nada susceptível de ser considerado subversivo pela ditadura. O Caladinho conhecia bem a situação e, da Abrunheira, conhecia bem as moradas que deram serventia a opositores do regime. Sabia até quem se tinha escondido em cada uma delas e o tempo que lá estiveram, com datas e horas das entradas e saídas. Na verdade, o Caladinho, como a própria alcunha diz, estava quase sempre calado. Era mais de: Olhar para ver, ouvir, ler e escrever. Andava sempre com um pequeno bloco de notas onde, quando menos se esperava, desatava a escrever. Havia dias em que trazia também um livro debaixo do braço. Era estranho porque o livro tinha sempre a mesma capa – totalmente branca! Claro que não era a capa do livro. O que o Caladinho fazia era forrar com uma folha branca qualquer livro que trouxesse para a rua. Assim, os “bufos” não conseguiam ver que livro era e, no caso do Caladinho, quase sempre se tratava de leitura proibida. Lembrando-me do Rui, do Caravaca, do Fernando Pedroso, do Mário, do Zé Fernando, do Carmo Silva, do Zé Alentejano e dos mais novos Zé e Fernando Marques, Paulo, etc., etc. a quem nem sempre encaixava bem este comportamento. Depois das explicações que o Caladinho – com muito cuidado e olhando bem em redor – lhes dava, toda a gente entendia e, ao mesmo tempo, ficavam com mais uma lição aprendida.
Nas sessões de matraquilos, por exemplo, enquanto o Faladura dava largas à sua capacidade vocal, estivesse a jogar ou na posição de espetador, o Caladinho que jogava bem e preferia a defesa onde, em muitas partidas, metia mais bolas na baliza adversária que o parceiro do ataque, não festejava as bolas a seu favor nem comentava os golos que sofria. Eu, embora na altura visse as diferenças entre um e o outro, só muito mais tarde percebi bem o significado de uma e de outra atitude.
Naqueles anos de crescimento demográfico da Abrunheira em que o pouco alcatrão da (hoje) MFA, só ia até 100 metros antes da delegação da Junta e que a do Forno ainda não era porque o forno do Cipriano ainda lá estava e fumegava, em que a Ferreira de Castro ainda era “curronquinho” e, vinda de cima, parava logo a seguir ao Cabaço, em que URCA era sonho e muito menos a Humberto Delgado que de carrascos e silvas se via farta e batizada de Caracol, em que o “clandestino” Carrascal que toda gente sabia e via, viria a vestir-se de símbolos de LIBERDADE com a rua 25 de Abril, 1º de Maio e da Liberdade. Naqueles anos em que se aproximava rapidamente a minha hora da tropa e, quem havia de saber, da Guerra Colonial, não fora o: “E depois do adeus” e a “Grândola Vila morena” com um mar de cravos vermelhos nos canos das espingardas.
Naqueles anos, UM Faladura e UM Caladinho eram meus companheiros inseparáveis.
Tenho a certeza, no entanto, que muitos outros abrunhenses da minha geração tiveram também por companheiros outros tantos “Faladuras” e “Caladinhos”.
Na Abrunheira, em 2011, também há juventude com muitos problemas e, uma boa parte, identificar-se-á com os movimentos contestatários que ensaiam a grande ação de indignação que, mais tarde ou mais cedo, se mostrará.
Em momentos diferentes, com medidas de grandeza muito distantes, a minha juventude e a de 2011 tiveram e têm o direito de sonhar!
Silvestre Félix
9 de Abril de 2011
Quantas gerações antes da tua e da minha,sentiram esse mau estar e revolta
ResponderEliminarÉ pena não haver mais "FALADURAS" e menos "CALADINHOS" neste preciso momento.
Todos temos direito a sonhar e não só.
Como sempre genial.Bj.Jesus