quarta-feira, 13 de abril de 2011

O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA - Capítulo Um

Aquela manhã preparava um dia de calor a sério, nem vento a norte, nem véu na Serra com direito a ver a ponta do Palácio da Pena. O Coutinho que era Bernardino já tinha no bandulho as sopas de cavalo cansado que a Judi Caracoleta lhe havia preparado. O descanso da noite tinha passado depressa e, na cabeça ainda zonza, martelava aquela conversa de ontem à noite na taberna. Dizia aquele fulano “bem-posto”, que parece trabalha na fábrica nova de Mem Martins e lhe chamam “o caladinho”, porque nunca diz nada e de vez em quando sai-se com umas que a gente não percebe, que tinha começado uma guerra nas “Áfricas” e que os nossos tropas iam começar a ir para lá combater. O pessoal ficou todo de orelhas em pé e de roda dele, todos quisemos saber mais, mas ele, como era costume, ficou muito assustado a olhar para todos os lados e para a porta, pagou a rodada de “ciganas”, e pôs-se a andar.

Bem, o Coutinho que era Bernardino, com aquelas “marteladas” na cabeça, lá saiu de casa e a passar o Santo António, cruza o caminho com o Chico da Beloura que lhe fez a conversa do tempo… que vai estar muito calor, que as ovelhas estão cada vez mais gulosas, que assim, que assado... - nesta altura a Beloura ainda era só Casal da Beloura e quem lá punha e dispunha era o Chico e família e o seu rebanho de ovelhas. Lá muito mais para a frente o Casal virará Quinta - e, entretanto, o Coutinho que era Bernardino, lá ia arrojando o esqueleto até à pedreira do Ti Miguel, com o peso da picareta e ao dependuro no cinto de couro, aquele que o Joaquim Cagachuva lhe arranjou vai para cinco anos, ainda antes de se ajeitar com a Judi Caracoleta, (tomando o fio) o martelo de corte, o escopro de pedra e a marretinha, tudo que lhe fazia falta naquele dia, para aplicar, com toda a sabedoria, a sua arte. Não havia um único santo dia que o Coutinho que era Bernardino, com mais ou menos charretes e ciganas na pança, não dissesse a alguém que;

«Eu sou cabouqueiro… eu tenho a ciência da pedra!»

(A solidão era rainha e, por isso, muitas vezes tinha que o dizer para a própria pedra ou para as ferramentas)

«Olha lá oh Marretinha …(soluço) eu já te disse que tenho a ciência da pedra? (soluço

«E a Marretinha: Sim, já me disseste!»

«E o Coutinho que era Bernardino continuava; Oh Martelo de Corte… (soluço) Eu já te disse que sou o melhor cabouqueiro da Abrunheira e arredores?»

«E o Martelo de Corte lhe dizia; Já, e muitas vezes. (continuava o Martelo de Corte) Oh Coutinho que és Bernardino, com o calor que está e porque as pedras não fogem, porque é que não vais à Menina Emília meter mais uma ou duas charretes no bucho? Assim refrescavas e davas descanso à gente.»

«E logo, o Coutinho que era Bernardino; Olha, se calhar até é boa ideia.»

A última palavra ainda não estava dita, (só precisava dum pretexto) e já o Coutinho que era Bernardino, ligava os andantes para atravessar o Rio das Sesmarias e meter pelo caminho do Cipriano acima.

«Oh Amigo Rio das Sesmarias, deixas-me passar outra vez?»

«(Diz o Rio das Sesmarias) Podes oh Coutinho que és Bernardino. Eu quase que cá não estou, só está o sítio. Nesta altura, a menos de um mês do Silvestre Velho começar a debulha, como é que queres que eu cá esteja? Agora só lá para meados de Setembro com as primeiras águas. Mas… ainda falta muito tempo contado em horas, para o sol de esconder por detrás da Penha Longa, onde é que vais?»

«Meu velho Amigo Rio das Sesmarias, vou molhar a goela à Menina Emília. Tem de ser, se não, a ciência da pedra não sai.»

«Olha lá, Coutinho que és Bernardino, vê no que te metes! Não te descuides, porque senão lá vem a Judi Caracoleta à tua procura.»

E o Coutinho que era Bernardino deixando o Rio das Sesmarias para trás, lá vai subindo o caminho e, quando ia mais ou menos a meio, do lado esquerdo o Cipriano e do lado direito o Pena. Quase os dois ao mesmo tempo, mas cada um a seu jeito;

«(O Cipriano) Então Coutinho que és Bernardino, com o sol ainda tão alto, onde é que vais?»

«Vou até à Menina Emília molhar a goela que a secura está a dar cabo de mim.»

«(Diz o Pena) Vai direitinho e não te demores, se não, a Judi Caracoleta vem fazer-te companhia…»

«(O Cipriano) Oh Coutinho que és Bernardino, olha que o Ti Miguel precisa que acabes aquelas cantarias para as janelas da obra.»

«Eu sei, daqui a meia hora já passo para baixo.»

Passou a esquina do Abílio mas… para a Menina Emília, tinha de passar para as bandas da casa do Ti Miguel. Para não haver chatices, nem dum lado nem do outro, decidido logo ali. Em vez da Menina Emília, ia beber uma charrete ao Faial que agora é o Ramos. Metia em frente pela quinta do Santo António, á esquerda pela do Olival e pronto, já lá estava na curva.

Quando estava a chegar à esquina, e de ouvido o Coutinho que era Bernardino continuava melhor que todos, começou a ouvir uma fala assim… como um discurso bem falado. Quem havia de ser, o “Caladinho”. Lá estava ele… mas…

«O fulano está a falar sozinho. Pois claro, se estivesse alguém, como de costume estava calado. Deixa lá ouvir o que este marmanjo diz…»

É verdade, e os soldados lá iam, todos certinhos, em bicha pirilau, a subir a escada do navio, e no cais, uma multidão a dizer adeus…, eram as mães, os pais, as mulheres, os filhos e toda a família. Era um mar de lenços brancos e uma choradeira sem fim. Os soldados, à medida que iam chegando lá acima, voltavam-se, e tentavam corresponder aos acenos. Alguns dos que subiram, não voltarão vivos. A guerra é assim, e eu vi o navio começar a deslizar nas águas do Tejo. O cais da Rocha Conde de Óbitos deixou de ser da carga a granel e passou a ser também de soldados a granel. Muitos espíritos estão revoltados, nos que ficaram e nos que foram e as famílias estão destroçadas. A maldição tinha batido à porta de cada soldado que embarcava – Daqui a 50 anos, depois dos cravos e de hossanas à Liberdade, ainda vai haver um Presidente da República que elogiará o desígnio da Guerra Colonial a que ele vai voltar a chamar “Guerra do Ultramar” – Mas o “botas” disse: «depressa e em força para Angola», e o “botas” e o “inteligente”e a pide e o marido da Gertrudes e os peões do tabuleiro e os de brega, ainda mandam, e o Zé, não consegue reverter a situação, ainda…

(Qualquer dia continua)

Extraído do escrito – “O Cabouqueiro e a Ciência da Pedra” – de autoria de Silvestre Félix

Dicas: Charrete – Garrafa de mais ou menos 40 cl cheia de vinho tinto do barril; Cigana – A mesma coisa, mas a garrafa é de 33 cl; Marretinha – Marreta pequena para trabalhar pedra.

1 comentário:

  1. Pelos vistos o Caladinho só falava quando passeava de charrete ou abraçado á cigana.Pudera,diz o ditado que dá vista aos cegos e fala aos mudos.
    E venha o livro.Parabéns

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