Pela manhã deste tempo estava,
tentando perceber que sinais me chegavam da “Lua Crescente” bem à vista e a dominar a encosta da Serra. Da Lua nada, e que até se
ofenderia se lhe perguntasse:
Que ali estava a fazer a esta hora
do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.
Quadro natural melhor, não me
podia ser oferecido. Bem na frente, a encosta da Serra com Santa Eufémia e a
Cruz Alta, algumas antenas a mais e a torre do Palácio da Pena em destaque e, na ponta da encosta à direita de
quem olha, a muralha do Castelo dos
Mouros. Voltei a perguntar só para mim, porque a Lua, lá por cima do Monte, não está disponível para
satisfazer curiosidades de abrunhenses mal acordados:
Que ali estava a fazer a esta
hora do dia? Sim, porque o lugar dela é de noite.
Nestes dias revoltos não se
encontram respostas para nada. Mesmo as que parecem óbvias, nunca indicam um
caminho com convicção. É forçoso partirmos à descoberta nem que, para isso,
tenhamos que transformar em “navegável”
o “Rio das Sesmarias”.
Lá muito atrás, em tempo, mais ou
menos cinquenta contados em anos, o meu roteiro também era de descoberta. Era
procura sem fim e nem dava a devida importância à Lua suspensa, a proteger o Monte. Quando pelos meus longos dias
passavam, várias vezes, o Rio das
Sesmarias, o Largo do Chafariz, o Largo do Olival e, sendo Verão, as figueiras do meu quintal, era
esta tela, com a Lua encavalitada, que se me apresentava pela frente e eu, o Rui, o Zé Fernando, o Fernando Pedroso, o
Meno Caravaca e o Zé Augusto a olhávamo-la com a naturalidade do ar que se
respira. A procura continuou sempre e imaginava a inquirição a cada personagem
passada à frente do Chafariz:
Que faz ali a Lua a esta hora do
dia? Sim, porque o lugar dela é à noite.
Nem no sono profundo alguma vez
sonhei com uma resposta de jeito. Todos passavam, olhavam e sorriam para mim e
desapareciam ainda mais depressa. Como acontece na maioria dos sonhos, quando
acordava, não me lembrava de quase nada mas, o que estava sempre presente, era
o Tavinho. Sempre bem-disposto, à
porta da “casa das vacas”, apoiado
com as duas mãos e o queixo no cabo da sachola apreciando o desfile. O Ti Álvaro, às vezes, também assistia ao espetáculo.
Com a esferográfica BIC atrás da orelha, ao meio da porta do lado da taberna,
lá apreciava tudo. Mas a verdade é que nem em sonhos me respondiam ao que eu
precisava de saber e, embora não se deixassem ver, decerto, no Largo do Chafariz se cruzavam: A Ti Natália aos gritos com o Zé e com o Ti Hilário, o Coutinho que
era Bernardino com a picareta ao
ombro e a gritar para quem o quisesse ouvir, «que tinha a ciência da pedra»
ou o Ti Joaquim Cagachuva a
caminho da “ajuntadeira” ou o Pena com um “palhinhas” de 5L da sua água-pé pela mão. Toda a Abrunheira
ao longo do dia, mais cedo ou mais tarde, lá passava de certeza mas, do que
estou a falar, é dos sonhos e das respostas que nunca me foram dadas.
Era preciso partir à descoberta…
Naquela época de descobrimento com
o tempo a correr mais à frente – sem saber ainda o que fazia a Lua naquele
lugar e aquela hora do dia – ia vendo, ouvindo e aprendendo muitas
outras coisas. Eu, que ainda nem mancebo era, na branca “Palhinha” para a Estação de Mem-Martins
e, mais tarde, na azul “Boa Viagem”
para Sintra, lá ia para o horário do
comboio até ao Rossio. Um puto da Abrunheira,
com todos os dias passados na Capital,
aumentava, a grande velocidade, capacidade de observação e aperfeiçoamento no
drible. Duma janela dum terceiro andar no Cais
do Sodré, aprendi a ver tudo. As faluas que ainda “bailavam” no Tejo, os
cacilheiros que iam e vinham deixando aquele rasto de espuma branca quando
ganhavam velocidade apanhando e descarregando passageiros, a construção da
grande doca-seca da Lisnave entre Almada e Cacilhas e até os grandes petroleiros que descansavam no mar-da-palha.
Até descobri o que era marisco ou
os bichinhos a que chamávamos “gambas”.
Lá as via passar no “Califórnia” em
bandejas inox com imperiais bem tiradas pelo Chico, das quatro da tarde em diante. Para mim inacessíveis eram,
porque só uma daquelas bandejas devia custar perto do que ganhava numa semana
inteira. Naquela passagem dos anos sessenta para os setenta, marisco, incluindo
as mais económicas “gambas”, era só
para rico. Tempos depois em anos contados, no mesmo sítio e às mesmas horas,
com rendimento mais gordo, alguns daqueles bichinhos me satisfizeram a gula e
me aconchegaram o estômago.
De paladar afinado nas “gambas”encontradas na bandeja inox do Chico, para aquele almoço de marisco na Ericeira, foi um pulo. Gambas,
lagostins, caranguejos, mexilhão, berbigão, pãozinho torrado, maionese,
mostarda, salada de tomate e alface e muita imperial. O Caravaca (Pai) fazia as contas dos erros na chave do totobola de
cada um de nós e cobrava. A sede do “Grupo
do Totobola” (eu, o Meno Caravaca, o
Rui, o Zé Fernando, o Zé Costa, o Mário e mais?) era no café do Ramos que, mais tarde, viria a ser do Cabaço. O Caravaca (Pai), que no seu trabalho guardava outros com pistola e
cassetete à cinta na Colónia, aproveitava
as folgas e horas vagas para faturar mais algum, no dito café, que nós
começávamos a tomar como lugar seguro e pronto a responder a tantas dúvidas e
incertezas e onde, pelo menos eu, cheguei a acreditar que descobriria
porque é que a Lua se mantinha
naquele lugar e aquela hora do dia quando só lá devia estar à noite…
Também descobri com o tempo a
correr que, ainda muito antes da hora de almoço, já escasseava lugar para tanto
petisco e respetivo acompanhamento onde, antes, tinha estado tudo o que
pertence a um bom “mata-bicho”. A Assembleia Eleitoral tinha aberto as
portas às 8 horas mas todos já lá estávamos desde as 7 para preparar tudo a
tempo. A primeira vez que lá estive, a Escola
Velha já não era e a Nova era um
pré-fabricado de cor verde. Depois lá veio a definitiva que passou por cima do
tempo, acompanhando
a Lua que continua sem se
explicar porque está naquele lugar e aquela hora do dia…
Na Abrunheira havia sempre
voluntários de sobra para aquele serviço cívico – colaborar nas mesas de voto. Júlio’s, eram sempre pelo menos dois; O Simplício e o Silva, António Vieira, o
João Alberto Peniche, o António Bento, o Joaquim Santos e outros e outros e
mais outros. Sentido do dever de cidadania autêntico, todos garantíamos a
função sem receber nada em troca, exceto o carinho e o apoio da comunidade.
A água corre pelo Rio
das Sesmarias, os anos são contados à nossa maneira e as respostas,
quando as há, nunca dizem tudo.
Se o tempo da Lua é de noite, o
que fazia ela naquele lugar e aquela hora do dia?
Silvestre Félix
30 de Setembro de 2011