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sexta-feira, 27 de maio de 2011

UMA QUARTA DE MANTEIGA…

Muito longe do manual de adivinhação perdido em qualquer pobre prateleira de livros, do poder “hipnótico” do Rui, da visão perspicaz e penetrante do Caravaca, da “elétrica” inteligência do Fernando Pedroso, da singular engenhoquice do Zé Fernando, das certezas e pontarias do Zé Augusto, do magnetismo enigmático do Julinho … e, mais alguns, que a minha prodigiosa (já agora) memória não consegue creditar, muito longe… dizia, que duma só estalada, e uns quase cinquenta de tempo em anos contados, abrissem quase trezentas lojas mesmo aqui às portas da Abrunheira. O sonho de qualquer esposa ou Mãe consumidora passava pela taberna ou mercearia do Ti Álvaro, da Menina Emília e do Ramos, materializada num restrito cabaz que incluía: Uma quarta de manteiga, uma quarta de café de cevada, uma quarta de sal, meio – quilo de arroz do mais barato, meio – quilo de açúcar amarelo, meio – quilo de massa cotovelo, duas postas de bacalhau da parte do rabo que pesa menos e meio – quilo de atum de barrica. Na hora do pagamento; «É para “assentar” se faz favor».


E o dinheiro?
Será que todas essas lojas vão ter livro de “assentar”?
O “sonho” só ia comandar a vida lá muito mais para a frente.


Nessa época, em que o Francisco “Frouxo” e o Ti Sabino ainda vestiam camisas aos quadradinhos, calças com o cós subido por cima da barriga de cor cinzenta, colete com fio do relógio de bolso pendurado, botas cardadas com polainas, barrete preto bem enterrado na cabeça e acompanhavam com o respetivo pau, em que o João de Leião passava bem sentado no seu carro, geringonça quase única na Abrunheira mais o carocha do Peixoto lá para o Caracol, quando o Silvestre” Velho” ainda pagava “jorna” para lavrar, desterruar, gradar, semear, mondar e ceifar, quando a Ferreira de Castro era “Curronquinho” e a “Arroteia” dava a melhor cevada, nos “Quatro-Donos” a ceara de trigo sempre se deixava dominar pelo verde, quando os “Celões” mostravam a sua grandeza nas várias colorações e inclinações ao sabor do vento, quando a Beloura era o Casal da Beloura do Chico da Beloura, quando a Escola era na futura Rua da Escola, quando a Ti Natália corrigia a tendência vitivinícola do Ti Hilário, do Zé e do João todos ditos – da Natália, quando o Coutinho que era Bernardino abria as valas da água canalizada que aí vinha a correr cheia de pressa porque já era tarde, quando ainda se comemorava a chegada da eletricidade, ainda uma criança com dois ou três anos, com festanças largas e foguetório até ser noite no sítio que era largo em frente à Quinta do Olival, quando eu já começava a conseguir ler as crónicas da Guerra do Vietname no jornal “O Século” naquela grande mesa de mármore da taberna do Ti Álvaro, quando os camions começaram a trazer os tijolos, o cimento, o ferro para armar e pôr de pé a que viria ser a “Lixa”, quando os gansos do Ti Veríssimo e do “Tavinho”, imitando bem nos gestos e na vontade os atuais A320, faziam do largo do Chafariz, no sentido descendente, a grande pista de descolagem, quando os putos com botas cardadas calçadas, praticando aquela coisa que, no reinado da Angela Merkel estará em desuso e que se chama solidariedade, se descalçavam para estarem iguais aos que não tinham botas nem chinelos, quando, aí em tempo doze ou treze a contar em anos de distância, eu perguntava: Mãe, quando for grande ainda há guerra? Se ainda houver Guerra eu tenho de ir? Os putos da Abrunheira, depois Homens, também foram à Guerra. Eu já não fui! Foram muitos e o meu litígio permanente com a lembradura dos nomes não me aconselha a arriscar. Mas, quando lia e escrevia os “aerogramas” do meu primo Chico, e o “Pézinhos”? e o Fernando? Os Putos da Abrunheira também lá estiveram ..., nessa época, quem havia de imaginar que a negra para Lisboa ia ter três faixas para cada lado com entrada direta para a Abrunheira com destaque na sinalética principal? E que mesmo com tanta faixa, a certas horas todas entupiam de andantes nos dois sentidos? Nenhum destes prosados da Abrunheira daquele tempo, acreditariam que os andantes da negra numa ida até Lisboa, iriam consumir em gasolina mais dinheiro do que quatro semanas de “jorna”.


E o dinheiro?
Onde iam ganhar dinheiro que chagasse para toda a gasolina?
E como iam conseguir construir as negras?


Quando o Julinho se atirava à lata de sebo do pai, o Zé da Natália, e esfregava com jeito único a ponta da melhor cana que escolheu no canal da Horta do Manel da Colónia, acompanhando a função com emissão de sons e assobios assim como se fosse uma folha de serrote a abanar (iong! iong! iong!) criando aquele ambiente de mistério para interiorizar a superior capacidade de atrair os morcegos à ponta da cana, não lhe passava pela cabeça nem aos outros que, alguma vez, os “putos” não precisassem mais de atrair morcegos por brincadeira, nem de construir os carrinhos de arame na “oficina” do Zé Fernando, nem de fazer telefones inventados pelo Fernando Pedroso com tampas das caixas de graxa dos sapatos…, pois teriam milhares de brinquedos à distância dum cartão de plástico que serve de dinheiro nas dezenas de lojas existentes à volta da Abrunheira.


E o dinheiro?
Como iam ter dinheiro para todas essas coisas?
E os Putos? Como iam aprender a fazer os brinquedos?


Mesmo que em vez de cinquenta sejam mais ou menos quarenta contados em anos, muito longe continuávamos de imaginar, considerando mesmo a sabedoria das barbas do Zé, a capacidade inventiva do Zé Alentejano ou o imparável drible do “Pele-e-Osso”, a indefensável “cagadinha” do Rui nos matraquilhos que, para assistirmos, olhando para uma tela de cinema, às pantominices dum qualquer “Trinitá” que era um “Cowboy” insolente, ou uma lição de história gastando a tarde de Domingo soalheiro para ver os “Canhões de Navarone” ou o “Ben-Hur” ou até o moderno musical “Jesus Cristo Superstar”, depois de muito penar até conseguir poupar o suficiente para comprar o bilhete, e em vez de calcorrearmos deste a Abrunheira até ao “Cinema Chaby” em Mem Martins ou até ao “Carlos Manuel” em Sintra, caminhos que no ano da Troika e dos troikados se iriam fazer, de cajado na mão, por prazer e a conselho médico para promover o gasto das gorduranças e o desentupimento das artérias com vista a um transporte adequado e sem constrangimentos do nosso precioso sangue, em vez disso dizia …, bastaria estacionarmos o indispensável carro no parque subterrâneo de quase dois mil lugares, esticar o pé que logo a escada rolante ou o elevador nos leva até sete ou oito salas com outras tantas “fitas” a correr. É só escolher… e se calhar até acabamos por ver o que não queremos.


E o dinheiro?
Como vai ser possível poupar dinheiro para os carros e para os cinemas?
Será só para os ricos?


No universo da Abrunheira daquele tempo muitas perguntas se fizeram e muitas continuam sem resposta. O sonho continua a ter o mesmo significado, raramente passou a “comandar a vida” como se chegou a acreditar.


Silvestre Félix